quarta-feira, 15 de junho de 2022

Lições da incivilidade


Lições da incivilidade

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Diante das expressões mais explícitas de barbárie que a contemporaneidade tem assistido, quando uma autoridade se resume a atribuir o fato como “caso isolado”, indubitavelmente temos a comprovação do fracasso civilizatório.

Ora, a violência seja ela qual for não deve acontecer, não precisa acontecer. Violência não tem gradação para parecer melhor ou pior. Violência é violência e ponto. Afinal de contas, não foram os seres humanos dotados de capacidade cognitiva, intelectual e dialógica? Então... qual a razão para se valer de um comportamento tão primitivo, tão incivilizado?

Dizer que violência tem na sua gênese a componente imediatista, da resolução rápida, me parece insatisfatório.  Porque a pergunta a se fazer é: a violência consegue mesmo suprir todos os quesitos de solução absoluta de um eventual problema?

Pense bem, antes de responder. A morte como destino final para as vítimas não representa necessariamente o silêncio da história que foi interrompida abruptamente. Aliás, observando o mundo passei a acreditar que, por mais estranho que isso possa parecer, os mortos vivem.

Apesar de todo o individualismo presente no mundo contemporâneo, seres humanos não são essencialmente sós. Há sempre alguém conectado ao indivíduo. Família. Amigos. Colegas de trabalho. Amores. Conhecidos. E com cada membro desses grupos existe uma infinidade de lembranças, de memórias, de registros, de recortes temporais passados juntos, os quais são impossíveis de desaparecer a partir da ausência corpórea do outro.

Aliás, acredito que tudo isso ganhe, inclusive, muito mais cor, muito mais vida, na tentativa desesperada e emocionada de resgatar a presença de quem não está aqui em presença material. Porque a história do ser humano é feita de laços. Alguns mais fortes. Outros mais fracos. Emaranhados. Remendados. Enfim... laços.

Assim, a morte, venha ela com que pretexto vier, é sempre impactante, difícil de digerir. Mas, quando ela chega pelas mãos da violência, da barbárie extrema, ela ganha uma dimensão de impossibilidade de aceitação incomensurável. Talvez, porque dentro das concepções culturais a que somos, em grande maioria, instruídos, ninguém tem o direito de matar, de retirar a vida do outro, seja porque motivo for.

Então, as pessoas são tomadas pela brutalidade não apenas da morte em si; mas, pela desconstrução de uma convicção cultural. Ah, e isso é pesado demais para administrar! É uma perda que se decompõe em camadas, que retira toda a base da lógica existencial humana. Um golpe certeiro e indefensável, tanto para quem morre quanto para quem fica. Por isso, os episódios de barbárie não arrefecem jamais, como se os fantasmas permanecessem pairando o seu desassossego entre nós.  

Quem diria, há muito morto por aí com mais notoriedade do que os viventes! Certas violências, certas barbáries, acabam sendo um tiro no pé dos verdadeiros culpados. A morte rápida não garante o esquecimento, na medida em que a complexidade do modus operandi empregado na ação, com o propósito de criar um “crime perfeito”, acaba tecendo um novelo confuso que vai se alongando pelo tempo de investigação.

A história acaba se transformando num roteiro de novela. De tempos em tempos um “plot twist” capta a atenção da opinião pública e traz o assunto para as rodas de conversa. E o morto ganha status de figura importante em um cenário o qual ele não faz mais parte; mas, a sua morte desperta uma série de especulações e conjecturas, as quais provavelmente tiram o sossego dos verdadeiros responsáveis.

Se um dia o Brasil parou para saber “Quem matou Odete Roitman? ”, a personagem vilã da novela Vale Tudo, de 1988/1989, na vida real, o que muitos brasileiros querem saber é “Onde está o Amarildo? ” 1, “Quem matou Marielle Franco e Anderson Gomes? ” 2, “Quem matou Henry Borel? ” 3, “Onde estão Dom Phillips e Bruno Pereira? ” 4, e tantos outros casos de extrema violência e barbárie presentes nas páginas policiais contemporâneas e ainda distantes da sua plena elucidação.

Na verdade, as pessoas não querem apenas saber por saber. O que uma expressão majoritária da população brasileira anseia é pela efetivação da justiça nesses casos, como um ato simbólico de respeito e dignidade às vítimas e seus entes queridos. Um verdadeiro ponto final para uma tragicidade que persiste sendo requentada pela dor e a especulação.

Por trás de cada episódio desses, há culpados diretos. Gente que aguarda como a Rainha Má, da história da Branca de Neve 5, uma prova material, como um troféu do ato cometido contra a vítima indesejada. Pena, que na contemporaneidade “os caçadores” não se apiedam da sua vítima e, de fato, cumprem o ato macabro.  

Entretanto, não se pode negar ou desconsiderar o fato de que as violências e as barbáries só se proliferam em uma sociedade quando encontram condições sociais e institucionais que as favoreça. Violências e barbáries estão se disseminado país afora, sob diferentes formas e conteúdos, porque há sim, um fracasso notório em relação ao papel do Estado na construção da ordem, na manutenção da paz, na proteção da vida humana.

Basta, de tampar o sol com uma peneira! Os casos não são esporádicos. Não são eventuais. Lamentavelmente, nem sempre as ocorrências chegam à contabilidade das estatísticas oficiais, a partir da repercussão nacional e, até mesmo, internacional. Mas, não há como acessar os veículos de informação e comunicação sem se deparar diariamente com a violência e a barbárie presentes, como troféus da lugubridade que se instalou no país.

Concordo com Jean-Paul Sartre quando escreveu: “Creio que estamos mortos há muito tempo: morremos no exato momento em que deixamos de ser úteis”. Porque nossa inutilidade está estampada nessa permissividade tosca de viver em sociedade sob um total estado de alienação, de inação, de silêncio ao que realmente importa. Por isso, assistimos a violência e a barbárie com certo ceticismo, como se elas não pudessem nos afetar. No entanto, esse excesso de confiança, essa extrema convicção, não adianta de nada, não blinda ninguém. Porque jamais saberemos a quem compete ser a próxima bola da vez.