Pecamos
por atos. Pecamos por omissões.
Por
Alessandra Leles Rocha
Assim manifesta a Constituição
Federal de 1988 sobre o direito à saúde: “A
saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos
e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação” (art. 196).
E como todos estão cansados de
saber, a manutenção e custeio desse direito advém dos impostos que o cidadão
brasileiro permite que o Estado arrecade mensalmente à custa de seus sacrifícios.
Portanto, saúde não é de graça. Não é só para alguns. Não é só para atender a
isso ou aquilo preestabelecido pelo governo. ...
Então, qual a razão dessa
reflexão? Muito simples. Considerando o fato de que os números da COVID-19
voltaram a subir, que mortes e internações estão de volta ao cenário da saúde
pública nacional e, que a vacinação vem ocorrendo de maneira irregular e
insuficiente para impedir a persistência do vírus entre nós, é preciso discutir
a respeito.
Lamento, mas me parece haver um
certo conformismo por parte de alguns setores da sociedade, quando reproduzem
sem maiores questionamentos o movimento da pandemia no país. E isso realmente
me incomoda, porque muito do que se encontra nas entrelinhas da realidade atual
também reflete a realidade de outras questões de saúde importantíssimas.
Sabe, é muito fácil atribuir e
enfatizar que a vacinação contra a COVID-19 esteja abaixo das expectativas como
fruto exclusivo do negacionismo que se alastra pelo mundo, quando esta é uma
questão muito mais complexa do que se pode imaginar. Então, vou lançar mão de
um desses vieses para despertar um novo olhar sobre o assunto.
Infelizmente, apesar de não se
tratar de um fenômeno exclusivo da população brasileira, a presença de doenças preexistentes
atinge um imenso contingente. Hipertensos. Diabéticos. Cardiopatas. Obesos.
Renais crônicos. Hepáticos crônicos. Indivíduos que já desenvolveram trombose
e/ou embolia pulmonar. Enfim...
De modo que essas pessoas, com o
histórico clínico de doenças preexistentes deveriam receber uma orientação
médica para escolher o imunizante que pudesse minimizar eventuais intercorrências
e riscos. Digo isso, depois de verificar no próprio site da Anvisa, a
orientação de que o esquema vacinal de reforço deveria respeitar “a aplicação de vacina homóloga (mesma
vacina) ao esquema primário” 1.
No entanto, a maioria dos municípios não levou
em consideração essa orientação, apenas o que foi preconizado pelo Ministério
da Saúde, e têm disponibilizado um único tipo de imunizante para a 4ª dose de
reforço da faixa populacional determinada, independentemente do esquema vacinal
primário desses cidadãos, em suas salas de vacina.
O que acaba transformando a prevenção contra a
COVID-19 em uma miscelânea perigosa e arriscada na medida em que muitos
indivíduos não conseguem um atendimento clínico, para avaliação adequada do profissional
de saúde, a fim de uma melhor definição do tipo de imunizante a ser utilizado
na dose de reforço.
Afinal, para o esquema primário de vacinação o
país contou com as vacinas Butantan/Sinovac (Coronavac), BioNTech/Pfizer, Oxford/AstraZeneca
e a da Janssen. Cada uma com suas especificidades, protocolos de aplicação
(número de doses, intervalo entre as mesmas) e anotações sobre eventuais
efeitos colaterais.
E muitos cidadãos até a conclusão do esquema
primário já haviam experimentado a situação de 2 tipos de imunizantes
diferentes, por conta da determinação do próprio Ministério da Saúde. Então, a
possibilidade de um 3º tipo, na imunização da 4ª dose, poderia representar a
potencialização de eventuais riscos desnecessários.
Mas, se engana quem pensa que o obstáculo
se resume nisso. Não. Os cidadãos que conseguem uma avaliação
adequada de um médico, a fim de uma melhor definição do tipo de imunizante a
ser utilizado na 4ª dose de reforço, começam uma verdadeira peregrinação pelas
unidades de saúde para saber se elas dispõem ou não daquele tipo de vacina indicado
pelo referido profissional.
Agora, imagina alguém ser obrigado a se deslocar
por toda a cidade; sobretudo, aquelas de médio e grande porte, em busca de uma
informação, porque o que poderia facilmente ser disponibilizado pela internet,
ou por telefone, ou pelos veículos de informação e comunicação da cidade, por incrível
que pareça não é.
Sabemos que o Ministério da Saúde estabeleceu o
controle das doses de imunizantes para distribuição gradativa aos Estados e DF,
e estes, na medida do recebimento, repassam às suas Gerências ou Diretorias
Regionais de Saúde, localizadas em cidades polos, as quais, por sua vez, a
fazem aos municípios de sua jurisdição para que distribuam entre as unidades de
saúde com sala de vacinação.
Entretanto, apesar de todo esse processo contar,
inevitavelmente, com planilhas de controle para que se saiba exatamente quantas
doses e de quais tipos de imunizantes foram destinadas a cada local, no momento
de oferecer ao cidadão o conforto da informação precisa a respeito do local
onde ele encontrará o imunizante que lhe foi orientado pelo médico, isso não tem
acontecido a contento.
Na verdade, o que deveria ser apenas uma
questão organizacional permeada de bom senso e de respeito humano; sobretudo, diante
da crise socioeconômica que vive o país, com o preço dos combustíveis e do
transporte público nas alturas, se burocratizou desnecessariamente.
Tornou-se uma prática acintosa, na medida em
que permite que um cidadão tenha que enfrentar um calvário em busca de
informação para ter garantido o seu direito de ser imunizado e não ficar
doente.
Portanto, esse breve recorte traz uma dimensão
muito exata do cansaço ao qual o cidadão brasileiro vem sendo exposto,
diariamente, na busca da consolidação dos seus direitos. São por situações desse
nível e até mesmo, de maior gravidade e complexidade, que a judicialização da
saúde acontece de maneira recorrente.
Acontece que o cidadão brasileiro caminha
nessa luta até o ponto em que as adversidades conjunturais não o impedem de
prosseguir; pois, quando isso acontece ele é obrigado a entregar-se à própria sorte.
Daí é que se precisa cuidado e reflexão na
hora de lançar sobre os ombros do cidadão eventuais responsabilidades. Negacionismo
existe? Sim. Descuido existe? Sim. Mas, diante do cenário conjuntural socioeconômico
brasileiro, não raras às vezes a saúde acaba sendo lançada ao fim da fila no
rol das prioridades, por conta de total impossibilidade de acessá-la.
Sei que em muitos lugares do país, o
calendário de vacinação até incluiu datas específicas para portadores de
comorbidades ou doenças preexistentes. Porém, a grande massa da população
brasileira desconhece a própria realidade da sua saúde. Não sabe que tem isso
ou aquilo, porque só chega a receber atendimento no momento de crise aguda.
Desse modo, o que adiantam as terapêuticas virem
cercadas de bulas, de orientações, de cuidados, de critérios, se na hora de aplicá-las
no ser humano sabemos tão pouco da sua condição clínica e não nos preocupamos
em pesar os prós e contras?
Cada organismo é um. Cada indivíduo responde aos
tratamentos de uma maneira diferente. Não se pode olhar a situação apenas pelo
prisma positivo das testagens terapêuticas prévias, porque exceções existem. E nesse
caso, exceções significam vidas humanas.
Portanto, precisamos discutir saúde pública
pela ótica do protagonismo humano, ele é o elemento principal. É sobre pessoas
de carne e osso, de realidades e demandas sociais que interferem diretamente na
gestão da saúde que precisamos nos ater e questionar, nomeando adequadamente os
fatos, sendo claros e objetivos em nossas explanações.
Caso contrário, estaremos fadados a aceitar
novas pandemias, novas tragédias humanitárias, novos episódios de vidas ceifadas
abrupta e irresponsavelmente, pelas sombras dos silêncios que permitimos roubar
a nossa voz. Não nos esqueçamos de que se peca por atos e pensamentos; mas,
sobretudo, por omissões.