quinta-feira, 30 de junho de 2022

Chega de silêncio!


Chega de silêncio!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não é de hoje. Tudo começou com os homens das cavernas puxando suas mulheres pelo cabelo e não parou mais. O trato objetificado da mulher foi diversificando a sua manifestação, foi aprimorando a sua brutalidade; mas, o que é pior, foi se legitimando socialmente.

Pois é, tratar mulheres como objeto, como mercadoria, se tornou parte do cotidiano. E não se engane, pensando que apenas as menos privilegiadas socialmente são o alvo. Nesse assunto, mulheres estão postas no mesmo patamar. A forma com a qual o assunto é discutido ou omitido é que faz a diferença.

Aliás, quem nunca ouviu falar sobre o pagamento do dote, no casamento?!Famílias abastadas precificavam suas filhas, pagando ao futuro marido, no dia do casamento, quantias polpudas e outros bens.  A prática acabou se alastrando pelos estratos sociais e se moldando as realidades socioeconômicas de cada grupo sem, no entanto, perder a essência perversa e cruel da objetificação feminina.

E a partir disso é que se torna possível entender o modelo de formação social feminino. Quanto mais bem-educadas, prendadas, recatadas, mais elas agregavam valor ao seu dote. Beleza, nesses tempos, nem era tão fundamental assim! O que contava mesmo era o porte, a desenvoltura, a delicadeza, a submissão em cada gesto e palavra; pois, não poderiam envergonhar o “nome” da família.  

Portanto, as mulheres sempre foram objetificadas pela perspectiva do papel que deveriam desempenhar na sociedade. Sempre estiveram um passo atrás, um degrau abaixo dos homens, nesse mundo que eles tanto se orgulham em dominar. Prontas a servi-los. A ser, pensar, agir, segundo o que eles desejam, esperam e precisam. Afinal, como escreveu Simone de Beauvoir, “A representação do mundo é operação dos homens; eles o descrevem do ponto de vista que lhes é peculiar e que confundem com a verdade absoluta” 1.

Mesmo com todas as evoluções e revoluções do mundo, essa marca resiste e insiste em se manter presente, porque, querendo ou não, as rédeas dos poderes ainda estão nas mãos deles. De tal maneira que se sua domesticação primitiva já não lhes permite sair em público arrastando uma mulher pelos cabelos, isso não significa que não possam exercer outras formas de servidão, de tirania, de subordinação, de submissão, de obediência, de resignação.

Não é à toa que uma das mais importantes expressões desse poder masculino sobre as mulheres se encontra na desigualdade salarial frente ao mesmo exercício profissional que um homem. No universo do mercado de trabalho ainda que as mulheres sejam sabidamente mais qualificadas, com mais anos de estudo e formação profissional, elas são constantemente submetidas aos mais rigorosos escrutínios para, no final das contas, serem preteridas nas escolhas. Especialmente para os cargos de chefia e de liderança.

Infelizmente, elas têm sempre que provar a sua capacidade, o seu talento, a sua aptidão, a sua competência, a todo instante. Acontece que, como diria Eduardo Galeano, “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar” 2.  

Então, ainda que essas palavras inspirem pela beleza da poesia nelas contidas, temos que refletir o quão desnecessário e absurdo é esse movimento inglório das mulheres na busca pelo seu espaço, igualitariamente humano, na sociedade. Porque ele acaba sendo um misto de luta e preservação, dada a fúria da dominação masculina no sentido de impedi-las de qualquer êxito.

A humanidade precisa entender que os casos de abuso, de assédio, de violência sexual, de desqualificação moral e intelectual, que sempre permearam, e ainda permeiam, os caminhos das mulheres são frutos desse processo. Os homens não veem sentido algum em abdicar da sua hegemonia sobre os espaços sociais para compartilhá-los com as mulheres.

Eles entendem isso como um ato de inferiorização; visto que, eles próprios construíram todo um discurso histórico em que se considera as mulheres seres inferiores, menores, incapazes. Abrir espaço para coexistir e compartilhar com elas seria se permitir nivelar por baixo e, por consequência, fragilizar o seu poder, a sua influência, a sua importância social, o seu raio de dominação.

Sem contar que circula pelo inconsciente coletivo uma ideia de que o poder justifica tudo, tanto no campo do Bem quanto do Mal. De modo que permitir às mulheres exercerem também esse poder significaria que elas poderiam ser, pensar e agir como eles, tanto no campo do Bem quanto do Mal. Isso significa que só lhes restariam ou a possibilidade de viver pacífica e harmonicamente ou em franca beligerância e destruição pela impossibilidade de escravizarem-se entre si.

Daí a importância de não silenciar e de nomear corretamente os acontecimentos presentes nas relações humanas. Porque o caminho da transformação nessa seara não é simples e nem rápido. Há a necessidade de contar com as ferramentas da Justiça, da Educação, da Comunicação, para desconstruir os paradigmas e instaurar uma nova concepção de igualdade social, onde ninguém seja mais ou menos.

Não se esqueça, “Toda vez que uma mulher se defende, sem nem perceber que isso é possível, sem qualquer pretensão, ela defende todas as mulheres” (Maya Angelou 3). A relevância desse entendimento se dá pelo fato de que a construção narrativa em desfavor das mulheres, performada pelos homens, trouxe também à tona uma disparidade das realidades sociais.

Isso quer dizer que na hora de discutir os casos de abuso, de assédio, de violência sexual, de desqualificação moral e intelectual, a sociedade, por conta do seu próprio histórico colonial, tende a enviesar para um feminismo branco e ocidental, excluindo dessa equação perversa as mulheres negras, indígenas e pobres, como se elas simplesmente não existissem.  

A questão é que “o falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir”; pois, “O feminismo deve contemplar todas as mulheres, é necessário perceber que não dá pra lutar contra uma opressão e alimentar outra” (Djamila Ribeiro 4).

Então, para que todas as mulheres existam, de fato e de direito, é fundamental a consciência de “que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre” (Simone de Beauvoir). Simplesmente, porque “Eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo quando as correntes dela forem muito diferentes das minhas” (Audre Lorde 5).



1 Escritora, Intelectual, Filósofa Existencialista, Ativista Política, Feminista e Teórica Social francesa.

2 Fernando Birri citado por Eduardo Galeano em “Las palavras andantes” (p.310), de Eduardo Galeano e José Borges, publicado por Siglo XXI, 1994.

3 Escritora e poetisa norte-americana negra.

4 Filósofa, Feminista negra, Escritora e acadêmica brasileira.

5 Escritora Feminista, Ativista dos Direitos Civis e Homossexuais norte-americana de descendência caribenha.