Terra
de Cego. ...
Por
Alessandra Leles Rocha
Diante dos recentes
acontecimentos no país, não pude deixar de me lembrar do antigo provérbio “Em terra de cego quem tem um olho é rei”,
porque ele traz a dimensão exata da realidade brasileira na expressão da sua frágil
e inconsistente identidade cidadã.
Pois é, não é por acaso que temos
visto tantas interpretações enviesadas e tendenciosas, quase verdadeiras
aberrações jurídicas, acontecendo bem em frente aos nossos olhos. Afinal de
contas, é com base nesse modus operandi
que se torna possível tecer discursos e narrativas capazes de exercer o
controle social esperado.
Ora, quando o cidadão desconhece
a sua própria cidadania, no campo dos seus direitos e deveres, ele é facilmente
enganado e manipulado por quem conhece e habilmente sabe se valer disso. Sim,
porque ele tem dois caminhos. Ou ele acredita piamente no outro, ou ele busca
por si mesmo a verdade dos fatos.
Acontece que depois de mais de
500 anos de história, a legitimidade discursiva das classes dominantes sobre as
classes dominadas ainda resiste como palavra final, como decisão inquestionável.
De modo que muitos não se sentem
no direito de discutir ou argumentar, porque se entendem em posição social desfavorável.
Além disso, há de se considerar também que as deficiências e as insuficiências de
sua escolaridade não lhes permitem rebater a convicção de palavras
aparentemente pomposas e firmes, fazendo-os, então, optar pelo silêncio
subserviente.
E assim, se institucionaliza a
tal “terra de cegos”; pois, como
escreveu José Saramago, “O medo cega...
são palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos
cegou, o medo nos fará continuar cegos” (Ensaio sobre a Cegueira, 1995).
Aliás, um exemplo disso foi o que
aconteceu “em audiência pública sobre ‘manual’,
em que o governo refuta o aborto como questão de saúde pública e diz que todos
são ‘crime” 1, apesar de especialistas
manifestarem que “o documento gera ‘insegurança
jurídica’ e está em desacordo com a legislação” 2.
Ao disseminar a ideia da criminalização, inevitavelmente, gera-se o medo e a
insegurança na população.
Portanto, não se trata
necessariamente de uma cegueira, de uma incapacidade de ver e compreender os
acontecimentos; mas, de ter que fechar os olhos pela força das conjunturas
opressoras e abusivas impostas pelos interesses de uma classe dominante. O que
faz dessa “cegueira” o mais importante
caminho para a vulnerabilização social.
Por isso, quando os veículos de
comunicação e informação tentam fazer parecer que a população tem poder de
escolha, fico me questionando se eles realmente acreditam nisso.
Escolher, decidir em sentido
pleno e absoluto demanda necessariamente uma fundamentação ampla e sem ingerências
externas, sabendo apontar e medir exatamente o peso dos prós e dos contras.
Mas, não é isso o que acontece amiúde
entre nós brasileiros. Dos tempos coloniais até aqui, nada mudou no sentido de
recebermos “goela abaixo” as
imposições diversas advindas das classes dominantes. E estas, cientes da nossa “cegueira”, consideram desperdício de tempo
e dinheiro abrir as discussões, as deliberações, as consultas, à participação
popular.
Afinal, o que importa é o que elas
querem, como elas querem, quando elas querem, e ponto final. Porque são elas
que mandam. Elas que têm o poder capital.
De modo que a todo instante a
grande massa de cidadãos é arrastada pelas correntes da manipulação controladora,
a qual se vê ainda mais poderosa nos tempos da alta Tecnologia da Informação e
Comunicação (TIC).
Os tais algoritmos não estão a
serviço do indivíduo; mas, de satisfazer aos interesses das classes dominantes.
Esse é um caminho sutil de vigilância e controle que possibilita desvendar o
grau de relevância dos assuntos para os diversos estratos sociais e/ou induzir
a interação das pessoas com esses assuntos.
No entanto, em momento algum, há
uma preocupação com o grau de conhecimento do cidadão a respeito; bem como, não
é dada a oportunidade de ele depurar as informações com tempo hábil.
Tudo é rápido, instantâneo, para
que o elevado nível de cansaço e de estresse informativo faça com que as
pessoas se rendam a armadilha de um senso comum, na verdade, já
preestabelecido. Então, elas pensam que fizeram uma escolha. Só que não.
E assim, os mais diversos espaços
da vida cotidiana são controlados e manipulados, graças ao favorecimento
promovido pela ignorância de um grande contingente populacional. A fragilização
das bases educacionais, culturais e científicas de um país representam, portanto,
a consolidação dessa “terra de cegos”.
Porque ela inviabiliza não só a
construção de melhores níveis de conhecimento sobre os mais diferentes assuntos;
mas, também, o desenvolvimento da capacidade de análise crítica e reflexiva,
que permite a elaboração de opiniões próprias, de pontos de vista pessoais.
Isso significa que essa “cegueira”
impede o cidadão de construir suas crenças e valores para viver sob a
homogeneização das crenças e valores alheios.
Desse modo, pode-se dizer que a
síntese desse processo está no fato de que “O
egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do
cotidiano, tudo isso contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que
consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada
momento, for susceptível de servir os nossos interesses” (José Saramago, Diário
de Notícias / Lisboa, 2009).