Entre
emendas e emergências...
Por
Alessandra Leles Rocha
Não há nada que proíba o indivíduo
de ser irresponsável. No entanto, é necessário que ele tenha consciência do que
está fazendo e dos desdobramentos e consequências que podem advir disso.
Essa é uma questão a se pensar;
sobretudo, depois de os Senadores da República aprovarem, ontem, uma Proposta
de Emenda Constitucional (PEC) que prevê estado
de emergência para viabilizar um pacote social de R$41,2 bilhões 1.
Ninguém melhor do que eles para
saber que tudo isso não passa de promessa vazia em ano eleitoral. Na história
da humanidade já se usaram muitas figuras para justificar atos terríveis e inomináveis;
mas, dessa vez, foram os pobres.
O que não significa
necessariamente se referir aos mais vulneráveis e desassistidos como possa parecer.
Talvez, a maioria desses nem chegue a ver a cor desse dinheiro.
Então, é esse o ponto de partida
para se tecer uma reflexão. O Brasil nunca vai ao cerne dos problemas para
tentar resolvê-los. Tudo permanece na borda, na superficialidade, no mais
absoluto raso das discussões.
O que leva a uma incongruência fatídica
entre teoria e prática, discurso e ação. Meras tentativas de fazer parecer, uns
e outros, pessoas responsáveis e envolvidas nas suas atribuições, quando a
verdade não é essa.
Em plena Pandemia, no auge do
horror lançado sobre o Brasil e o mundo, também ouviu-se falar em “estado
de emergência” e de uma série de medidas a serem aplicadas em favor da
população. A pergunta a se fazer é: deu certo? Os problemas foram resolvidos?
Bem, a falta de análise, de
planejamento, de organização, constituiu um verdadeiro caos que culminou em
revelar a dimensão da desassistência que permaneceu entre muitos que precisavam
desse suporte do Estado.
Os recursos não chegaram a todos
que precisavam. Não chegaram em tempo hábil. Não cumpriram o seu papel social. Do
mesmo modo que as medidas previstas para os setores produtivos e do comércio.
O que resultou em um acirramento
da pobreza, da fome, do desemprego, do fechamento de empresas, simultaneamente,
aos impactos sofridos em ampla escala pela economia global, como a baixa
produção, as oscilações no comércio do petróleo e seus derivados, o
ressurgimento da inflação.
Acontece que, nessa ocasião,
nossos percalços já eram um fato consolidado. O desenho que havia sido proposto
pela atual gestão federal para a Economia era profundamente idealizado para um
contexto hipotético perfeito, ou seja, sem o menor risco de altos e baixos, de
imprevisibilidades.
Sem contar, que tinha como público
alvo o estrato dominante da população com todo o seu potencial de expansão de
riquezas – banqueiros, industriais, latifundiários.
Então, quando a Pandemia chegou a
ideia ruiu e pegou a todos na total imprevidência. De modo que o cenário que
passou a se configurar não conseguiu ser de recuperação. Por mais que tentem
mascarar os dados e fazê-los parecer alvissareiros, não é bem assim.
Os anúncios em torno dos números do
desemprego, por exemplo, não trazem à tona os flagelos da precarização do
trabalho, com sua sazonalidade, seu achatamento brutal da renda e sua insuficiência
diante da inflação voraz, o seu desamparo frente as perdas de direitos
trabalhistas, enfim...
Eis que agora, mais um “pacote
de bondades” emerge no horizonte. Palavras. Palavras ao vento. Alguém realmente
acredita que enquanto se debatia essa PEC, os responsáveis por colocar em prática
aquele conjunto de propostas já estava a pleno vapor analisando, planejando,
organizando o acesso dos recursos aos beneficiados? Quantos milhões de
brasileiros sequer tiveram pensadas as suas demandas mais básicas no contexto
desse “estado de emergência”?
Não, não são absurdos esses
questionamentos. O exemplo do “Vale gás”2,
aprovado pelo Congresso em outubro de 2021 e sancionado pelo Presidente da
República em novembro de 2021; mas, que só começou a ser pago em janeiro de
2022, expõe o grau de desorganização e lentidão desse tipo de proposta.
O fato de essa PEC ter sido
aprovada pelo Senado não significa a efetividade de nada. Ainda terá que passar
pela Câmara dos Deputados, depois sancionada pelo Presidente. E o relógio
girando... De modo que até que algum recurso chegue de fato as mãos dos
cidadãos, muita água já terá rolado por baixo dessa ponte.
O que significa que no curso da
inflação que se apresenta, quando aqueles que foram incluídos na proposta estiverem
diante de receber o dinheiro verão que este terá perdido substancialmente o seu
poder de compra e pouca relevância terá para auxiliá-los nas suas demandas, ou
seja, a promessa ficará na promessa, mais uma vez.
Portanto, não sei se o mais
triste nessa história é a ineficácia explícita da prática ou a má fé de quem
aprova algo dessa natureza, sabendo exatamente como transita a burocrática
gestão pública, com todos os seus labirintos de lentidão.
Paliativos não darão conta jamais
das mazelas brasileiras. A conta dessa irresponsabilidade em não agir no cerne
dos problemas tende a agigantar ainda mais a crise socioeconômica brasileira,
enquanto não significou absolutamente nada de melhoria ou transformação
positiva para o país.
Isso sem considerar a vexatória (escandalosa)
perda de credibilidade que se instituiu com a ruptura inconsequente e
desorganizada do teto de gastos públicos.
Foi um dinheiro perdido nos
desvarios da gastança, da politicagem, incapaz de traduzir soluções,
estabilidade ou acenar com melhores perspectivas ao povo brasileiro. Apenas mais
uma afronta, mais um drible, mais uma malandragem contra a legislação
brasileira. Mais um acintoso episódio de anticidadania.
Se houvesse algum vestígio de cautela,
especialmente, depois de terem sido pegos de surpresa pela Pandemia e pela Guerra
na Ucrânia, deveriam se lembrar do provérbio “Prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém”.
A dilapidação do dinheiro
público, como acontece amiúde no país, é uma operação de altíssimo risco,
considerando que o aprofundamento das crises econômicas nacionais não se reverte
com a mesma facilidade e velocidade da noite para o dia.
Começando pelo fato de que nada
foi feito, até aqui, para que houvesse um equilíbrio competitivo, o suficiente,
para equilibrar os setores produtivos da economia ao ponto de torná-los expoentes
verdadeiramente importantes no comércio exterior.
Ainda somos os mesmos...
exportadores de matérias-primas, de commodities
agrícolas, de carnes e derivados, enquanto importamos bens, produtos e
serviços, a preços nada módicos, fazendo o entusiasmo de quem compramos.
Valer-se do termo “estado
de emergência” , portanto, soa escárnio, piada de mau gosto, desprezo. Afinal,
esse é o estado natural do país. Há mais de 500 anos vivemos a emergência de
soluções para nossas mazelas, para o nosso desenvolvimento, para o nosso
progresso.
A emergência bate à porta dos
brasileiros todos os dias. Na fome, na miséria, no desemprego, nos baixos salários,
na precarização do trabalho, na fragilidade educacional, na desassistência médico-hospitalar,
na insuficiência habitacional, nas carências da mobilidade urbana, ...
De modo que bondade mesmo, seria arregaçar as mangas e desconstruir os velhos e ineficientes paradigmas que estão aí. Pois como disse Bocage 3, “Pior a emenda que o soneto”.
2 https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/11/22/bolsonaro-sanciona-projeto-do-auxilio-gas-para-familias-de-baixa-renda.ghtml
3 Manuel Maria Barbosa du Bocage – poeta português.