Amazônia:
O retrato de um viés absolutista contemporâneo
Por
Alessandra Leles Rocha
Há quatro anos a ladainha em
torno da soberania nacional é entoada pelo governo federal; sobretudo, quando o
alvo do discurso é a Amazônia. No entanto, a imponência da palavra soberania é
inconsistente para desconstruir o princípio do “faça o que eu falo, mas não faça o que eu faço”, que é exatamente
o que acontece no país.
Caro (a) leitor (a), essa
distinção narrativa de poder absoluto e incontestável em relação a uma
respectiva área, assunto ou pessoa, só faz remontar mais uma vez ao terrível ranço
colonial a que o Brasil se vê contaminado. Além disso, havemos de concordar que
não se trata apenas de vociferar esse poder; mas, de exercê-lo com a responsabilidade
e o compromisso que ele exige.
Portanto, diante do
desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno
Pereira, no Vale do Javari, no Amazonas 1,
há quase uma semana, essa reflexão se torna imperiosa.
Tudo leva a crer que eles foram vítimas
da consumação das ameaças feitas por pessoas ligadas a grupos ilegais que exploram
as riquezas naturais do local e colocam em risco as populações indígenas.
O que aponta para uma total
fragilidade da soberania nacional na Amazônia. Se o exercício do poder,
garantido constitucionalmente, estivesse de fato acontecendo não haveria espaço
para a criminalidade no local sob diferentes formas e expressões.
A Amazônia estaria sendo
defendida e preservada como parte integrante e integrada do território nacional
e a população que nela vive ou transita não estaria privada do direito de ir e
vir pela ameaça da violência.
Segundo o Instituto do Homem e
Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), “a Amazônia
Legal tem 5 milhões de quilômetros quadrados” e “abrange 59% do território brasileiro, distribuído por 775 municípios”,
além de representar “67% das florestas
tropicais do mundo” 2.
Trata-se, então, de uma área considerável para administrar e cuidar de maneira
tão “despótica”.
A prática da soberania sobre a
Amazônia Legal brasileira é onerosa. Tanto do ponto de vista orçamentário,
quanto das demandas humanas e operacionais.
Daí ser impossível discutir
soberania por soberania. Há uma imposição real e natural da construção cooperativa
para se lograr êxito nesse tipo de empreitada.
Cooperação com os povos
originários que vivem e conhecem perfeitamente bem o local e suas necessidades.
Cooperação com a população que vive nos centros já urbanizados da Amazônia. Cooperação
internacional com países, entidades e Organizações Não-Governamentais (ONGs)
que se interessam pela preservação e desenvolvimento sustentável ao redor do
planeta.
Pois, como explica muito bem o
Dicionário Aulete, cooperar significa “atuar
juntamente com outrem ou com outros para um fim comum; contribuir para que algo
ocorra; COLABORAR” 3.
De modo que não há risco nenhum
para a soberania, a busca pela construção cooperativa. Aliás, foi com esse pensamento
que se criou, em 2008, pelo Decreto n. º 6527, o Fundo da Amazônia, a ser
gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
São, portanto, recursos
financeiros que objetivam promover projetos para a prevenção, o combate ao
desmatamento e a conservação e uso sustentável das florestas na Amazônia Legal.
Para que haja interesse de
investidores nesse fundo é necessária a transparência nas ações, com regras
claras quanto ao uso e a aplicação dos recursos, com mensuração dos resultados
obtidos, com projeções futuras e outros pontos a se considerar.
Exigências normais dentro de um
contexto global, repleto de problemas e desafios a serem enfrentados, que não
pode permitir desperdício de recursos a partir de práticas embasadas na má
gestão.
Assim, em 2019, dada a intenção
do governo federal em alterar o funcionamento do Fundo Amazônia, que Alemanha e
Noruega, importantes investidores, decidiram suspender o repasse de recursos.
Desde então, o fundo foi
paralisado, a pedido da Noruega; posto que um decreto do governo brasileiro
dissolveu o Comitê Orientador do Fundo Amazônia (Cofa) e o Comitê Técnico do Fundo
Amazônia (CFTA), responsáveis por estabelecer os critérios e diretrizes para
aplicação dos recursos.
A partir daí o cenário de
destruição e de abandono começou a se efetivar pela ampliação maciça de pessoas
ligadas a grupos ilegais que exploram as riquezas naturais do local e colocam
em risco as populações indígenas.
“Rios
na Terra Yanomami têm 8600% de contaminação por mercúrio, revela laudo da PF” 4. “30 anos após demarcação, terra
Yanomami vê crescimento de garimpo e destruição” 5.
“STF adia mais uma vez julgamento sobre marco temporal de terras indígenas” 6. “Massacre, abuso sexual, invasão e
mais: o histórico de violência no Javari” 7.
...
Desse modo, paira no ar a dúvida
indigesta sobre quem, realmente, exerce a soberania na Amazônia Legal
brasileira. Porque não parece ser os povos originários, nem os habitantes locais,
nem o governo. Quem parece estar dando as cartas e dominando a região são
pessoas ligadas a grupos ilegais que exploram as riquezas naturais.
Portanto, a ameaça à soberania
não chega através das ONGs, ou das entidades ambientalistas, ou dos países parceiros
na sustentabilidade socioambiental, como alguns tentam fazer parecer.
A grande questão é que enquanto
nos deixamos envolver pelas discussões superficiais que orbitam a palavra
soberania, nos esquecemos de enxergar o declínio da Amazônia.
Seja pela destruição do ambiente
natural, do seu povo nativo, da sua importância no equilíbrio climático global,
da possibilidade da dignidade humana, quando se sabe que “no Norte brasileiro 71,6% das famílias sofrem algum tipo de
insegurança alimentar” 8, apesar
de toda a riqueza que é consolidada pela exploração natural da região.
Portanto, há uma dose gigantesca
de hipocrisia nessa história toda. Não, não é possível falar em soberania
esquecendo-se de falar sobre cidadania e sobre dignidade da pessoa humana. Sem
falar de cooperação, de respeito, de coletividade.
Quando o Estado deixa de cumprir
seus deveres e obrigações constitucionais; sobretudo, aquelas de interesse dos
direitos sociais 9, ele abre sim, espaço
para que outros o façam.
O que quase sempre vem regado
pela tirania, pela violência, pela exacerbação de interesses próprios em detrimento
da coletividade, como forma de garantir o (pseudo) poder através da força.
Que fique claro, então, a soberania
não é algo que se resume na verborrágica manifestação lexical para cumprir seu
efeito prático. Soberania não é truque de mágica. Soberania é, portanto, consciência,
equilíbrio e ação.
1 https://www.terra.com.br/nos/dom-phillips-e-bruno-pereira-o-que-se-sabe-sobre-o-desaparecimento,87c27920c2b1763d0361a60ef168eaf37mt190yb.html
4 https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2022/06/06/rios-na-terra-yanomami-tem-8600percent-de-contaminacao-por-mercurio-revela-laudo-da-pf.ghtml
5 https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2022/05/30-apos-demarcacao-terra-yanomami-ve-crescimento-de-garimpo-e-destruicao.shtml
6 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/06/02/stf-adia-mais-uma-vez-julgamento-sobre-marco-temporal-de-terras-indigenas.htm
7 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/06/08/historico-de-violencia-e-abuso-conheca-a-terra-indigena-vale-do-javari.htm
8 https://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/2022/06/08/geografia-da-fome-regiao-norte-do-brasil-e-a-mais-impactada-pela-inseguranca-alimentar.ghtml
9 Art. 6º, CF de 1988.