sexta-feira, 10 de junho de 2022

Amazônia: O retrato de um viés absolutista contemporâneo


Amazônia: O retrato de um viés absolutista contemporâneo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Há quatro anos a ladainha em torno da soberania nacional é entoada pelo governo federal; sobretudo, quando o alvo do discurso é a Amazônia. No entanto, a imponência da palavra soberania é inconsistente para desconstruir o princípio do “faça o que eu falo, mas não faça o que eu faço”, que é exatamente o que acontece no país.  

Caro (a) leitor (a), essa distinção narrativa de poder absoluto e incontestável em relação a uma respectiva área, assunto ou pessoa, só faz remontar mais uma vez ao terrível ranço colonial a que o Brasil se vê contaminado. Além disso, havemos de concordar que não se trata apenas de vociferar esse poder; mas, de exercê-lo com a responsabilidade e o compromisso que ele exige.

Portanto, diante do desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, no Vale do Javari, no Amazonas 1, há quase uma semana, essa reflexão se torna imperiosa.

Tudo leva a crer que eles foram vítimas da consumação das ameaças feitas por pessoas ligadas a grupos ilegais que exploram as riquezas naturais do local e colocam em risco as populações indígenas.

O que aponta para uma total fragilidade da soberania nacional na Amazônia. Se o exercício do poder, garantido constitucionalmente, estivesse de fato acontecendo não haveria espaço para a criminalidade no local sob diferentes formas e expressões.

A Amazônia estaria sendo defendida e preservada como parte integrante e integrada do território nacional e a população que nela vive ou transita não estaria privada do direito de ir e vir pela ameaça da violência.

Segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), “a Amazônia Legal tem 5 milhões de quilômetros quadrados” e “abrange 59% do território brasileiro, distribuído por 775 municípios”, além de representar “67% das florestas tropicais do mundo” 2. Trata-se, então, de uma área considerável para administrar e cuidar de maneira tão “despótica”.

A prática da soberania sobre a Amazônia Legal brasileira é onerosa. Tanto do ponto de vista orçamentário, quanto das demandas humanas e operacionais.

Daí ser impossível discutir soberania por soberania. Há uma imposição real e natural da construção cooperativa para se lograr êxito nesse tipo de empreitada.

Cooperação com os povos originários que vivem e conhecem perfeitamente bem o local e suas necessidades. Cooperação com a população que vive nos centros já urbanizados da Amazônia. Cooperação internacional com países, entidades e Organizações Não-Governamentais (ONGs) que se interessam pela preservação e desenvolvimento sustentável ao redor do planeta.

Pois, como explica muito bem o Dicionário Aulete, cooperar significa “atuar juntamente com outrem ou com outros para um fim comum; contribuir para que algo ocorra; COLABORAR” 3.

De modo que não há risco nenhum para a soberania, a busca pela construção cooperativa. Aliás, foi com esse pensamento que se criou, em 2008, pelo Decreto n. º 6527, o Fundo da Amazônia, a ser gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

São, portanto, recursos financeiros que objetivam promover projetos para a prevenção, o combate ao desmatamento e a conservação e uso sustentável das florestas na Amazônia Legal.

Para que haja interesse de investidores nesse fundo é necessária a transparência nas ações, com regras claras quanto ao uso e a aplicação dos recursos, com mensuração dos resultados obtidos, com projeções futuras e outros pontos a se considerar.

Exigências normais dentro de um contexto global, repleto de problemas e desafios a serem enfrentados, que não pode permitir desperdício de recursos a partir de práticas embasadas na má gestão.

Assim, em 2019, dada a intenção do governo federal em alterar o funcionamento do Fundo Amazônia, que Alemanha e Noruega, importantes investidores, decidiram suspender o repasse de recursos.

Desde então, o fundo foi paralisado, a pedido da Noruega; posto que um decreto do governo brasileiro dissolveu o Comitê Orientador do Fundo Amazônia (Cofa) e o Comitê Técnico do Fundo Amazônia (CFTA), responsáveis por estabelecer os critérios e diretrizes para aplicação dos recursos.

A partir daí o cenário de destruição e de abandono começou a se efetivar pela ampliação maciça de pessoas ligadas a grupos ilegais que exploram as riquezas naturais do local e colocam em risco as populações indígenas.

“Rios na Terra Yanomami têm 8600% de contaminação por mercúrio, revela laudo da PF” 4. “30 anos após demarcação, terra Yanomami vê crescimento de garimpo e destruição” 5. “STF adia mais uma vez julgamento sobre marco temporal de terras indígenas” 6. “Massacre, abuso sexual, invasão e mais: o histórico de violência no Javari” 7. ...

Desse modo, paira no ar a dúvida indigesta sobre quem, realmente, exerce a soberania na Amazônia Legal brasileira. Porque não parece ser os povos originários, nem os habitantes locais, nem o governo. Quem parece estar dando as cartas e dominando a região são pessoas ligadas a grupos ilegais que exploram as riquezas naturais.

Portanto, a ameaça à soberania não chega através das ONGs, ou das entidades ambientalistas, ou dos países parceiros na sustentabilidade socioambiental, como alguns tentam fazer parecer.

A grande questão é que enquanto nos deixamos envolver pelas discussões superficiais que orbitam a palavra soberania, nos esquecemos de enxergar o declínio da Amazônia.

Seja pela destruição do ambiente natural, do seu povo nativo, da sua importância no equilíbrio climático global, da possibilidade da dignidade humana, quando se sabe que “no Norte brasileiro 71,6% das famílias sofrem algum tipo de insegurança alimentar” 8, apesar de toda a riqueza que é consolidada pela exploração natural da região.

Portanto, há uma dose gigantesca de hipocrisia nessa história toda. Não, não é possível falar em soberania esquecendo-se de falar sobre cidadania e sobre dignidade da pessoa humana. Sem falar de cooperação, de respeito, de coletividade.

Quando o Estado deixa de cumprir seus deveres e obrigações constitucionais; sobretudo, aquelas de interesse dos direitos sociais 9, ele abre sim, espaço para que outros o façam.

O que quase sempre vem regado pela tirania, pela violência, pela exacerbação de interesses próprios em detrimento da coletividade, como forma de garantir o (pseudo) poder através da força.   

Que fique claro, então, a soberania não é algo que se resume na verborrágica manifestação lexical para cumprir seu efeito prático. Soberania não é truque de mágica. Soberania é, portanto, consciência, equilíbrio e ação.

 



9 Art. 6º, CF de 1988.