A
mercê da própria sorte...
Por
Alessandra Leles Rocha
Infelizmente, o Brasil caminha
para o mais absoluto retrocesso. Não. Não se trata de mera impressão ou
especulação; mas, de constatações diárias e plurais que configuram a dimensão
desse movimento.
A notícia mais recente é de
ontem. Segundo decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que aparece nos
sites de busca como “O tribunal da
Cidadania”, os “planos de saúde não
precisam cobrir procedimentos fora da lista da ANS (Agência Nacional de Saúde
Suplementar)” 1.
Antes de qualquer coisa, não nos
esqueçamos de que essa decisão é fruto de uma intensa necessidade de judicialização,
ou seja, tornou-se cada vez mais necessário que a resolução de questões de
grande repercussão social seja decidida pelo Judiciário nacional, tendo em
vista a inabilidade, a incapacidade ou a simples negligência dos atores sociais
tradicionalmente responsáveis por elas – Legislativo e Executivo.
E isso ocorre, não por obra do
acaso; mas, pode-se dizer das próprias tramas da necropolítica brasileira que
obstaculizam de todas as maneiras o preceito constitucional que estabelece que “A saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (art. 196, CF de
1988).
Ora, a Pandemia da COVID-19 não
deixou quaisquer dúvidas a respeito da importância do arcabouço do Sistema
Único de Saúde (SUS) para o enfrentamento da mais grave situação de emergência sanitária
já vivida pelo país na contemporaneidade.
Ainda que, resistindo a todo tipo
de desmantelamento e restrição de recursos orçamentários, o SUS teve importante
papel para que a tragicidade dos acontecimentos não constituísse uma estatística
muito mais aterrorizadora e cruel.
Isso porque ele trabalhou como um
suporte ao sistema de saúde suplementar, ou seja, o SUS durante o momento mais
crítico da pandemia ainda conseguia dar vazão de atendimento ao seu contingente,
porque muitas pessoas dispunham de planos de saúde privados e foram por estes
atendidas.
Acontece que, em meio a tais
acontecimentos, o Brasil foi se deparando, também, com o acirramento de uma
crise econômica vultosa que levou milhões de cidadãos a perder seus postos de
trabalho e, por consequência, a possibilidade de manutenção dos planos de
saúde.
Estabeleceu-se, então, um claro desequilíbrio
na lei da oferta e da procura no campo da saúde pública brasileira. Porém, sem
que nada fosse feito por parte do governo federal. Muito pelo contrário, os processos
de desmantelamento, sucateamento e cortes orçamentários prosseguiram dentro da
realidade do SUS.
Mas, muito além disso, se expôs o
fato de que o mundo está em franco adoecimento. A pandemia da COVID-19 foi o
grande alerta; mas, atrás dela se coloca uma realidade de total vulnerabilidade
sanitária.
Algo que contempla não somente o
surgimento de novos vírus, como foi o caso do Sars-Cov-2 e suas variantes; bem
como, de inúmeras outras patologias, síndromes e transtornos, decorrentes dos
impactos diretos e indiretos das relações humanas com o meio ambiente.
Sim, no campo das Ciências
Médicas a relação com o desequilíbrio ambiental não é mais uma especulação.
Estudos ao redor do planeta consideram a influência da elevação das
temperaturas, do uso exacerbado de insumos químicos e agrotóxicos na produção
agropecuária, da carência de água potável e saneamento básico, da poluição
intensa pelos gases do chamado efeito estufa, da dizimação das áreas de flora
naturais que expõem e aproximam a fauna silvestre da população urbana, dos
eventos climáticos extremos que atingem diretamente a salubridade populacional,
para a potencialização de antigas e novas doenças.
E a pergunta a se fazer é: O
Brasil está preparado para o previsível e o imprevisível, nesses casos? Bem,
considerando a realidade atual, creio que não, tendo em vista o gargalo que a
crise econômica agravou para a saúde pública.
Faltam remédios básicos em
diversas localidades do país. Persistem as macas nos corredores superlotados
dos hospitais públicos. Ampliam-se as filas de espera por atendimento na rede
SUS. Há insuficiência de leitos de Unidade de Terapia Intensiva e Semi-Intensiva
(adulto e pediátrica). O teste do pezinho ampliado ainda não é oferecido na
maioria dos estados da federação. Vive-se o negacionismo científico e a resistência
à imunização da população. ...
No entanto, o mundo não para de
girar. Dengue, Zika e Chikungunya estão aí em números preocupantes. A Varíola
de Macaco já chegou ao Brasil. A hepatite misteriosa em crianças segue trazendo
desconforto às autoridades. A COVID-19 continua fazendo seus estragos na
população. As recentes enchentes trouxeram a possibilidade de surtos de cólera,
febre tifoide, hepatites A e E, leptospirose, tétano. ... Então, as realidades
se sobrepõem tingindo com mais força e intensidade os problemas.
Pois é, quero dizer que uma
doença não é só uma doença. Ela acontece de acordo com as especificidades e
particularidades de cada organismo humano. Não, não é uma receita bolo! Para uns
é mais simples, para outros mais complexa ou, até mesmo, letal.
Depende do estado clínico do
paciente, se ele está em condições saudáveis, bem nutrido, em ambiente sem riscos,
sem doenças preexistentes, enfim. E ainda
que supere o estágio patológico inicial, eventuais desdobramentos representam
um desafio imenso para a grande maioria da população.
Olhando, mais uma vez, para as
fragilidades presentes no atual Sistema Único de Saúde, nos deparamos com a ausência
e/ou insuficiência de uma rede multidisciplinar de apoio nesses casos. Assistentes
sociais. Fisioterapeutas. Terapeutas ocupacionais. Psicólogos. Nutricionistas. Enfermagem
domiciliar. Farmácias especializadas em fornecer as medicações e insumos
essenciais ao desenvolvimento da terapêutica. Serviços que são fundamentais
para uma pronta recuperação ou para uma manutenção da qualidade de vida e sobrevivência
do indivíduo.
Portanto, quando o STJ delibera
por 6 votos a 3 que os “planos de saúde não
precisam cobrir procedimentos fora da lista da ANS”, é como se atribuísse ao
cidadão o controle sobre a própria saúde, no sentido de só poder adoecer dentro
de parâmetros que o seu plano de saúde possa atendê-lo.
Além disso, em defesa dessa
decisão, houve dentre os ministros votantes a alegação de que a mesma
contribuiria para o controle nos reajustes dos preços dos planos de saúde. O
que é profundamente perverso, na medida em que a utilização dos planos de saúde
se dá com base na existência de uma demanda real e urgente.
Ninguém vai ao médico a passeio! Ninguém
faz exames por falta de ter o que fazer! Ninguém depende deste ou daquele
tratamento porque decidiu à revelia da Ciência! A vida não funciona assim!
Só posso dizer que essa decisão
soa ultrajante, repugnante. Sobretudo, quando no mesmo dia, o 2º Inquérito
Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no
Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional (REDE PENSSAN) apontou que “o país soma atualmente cerca de 33,1 milhões de pessoas se ter o que
comer diariamente, quase o dobro das pessoas em situação de fome em 2020. Em números
absolutos, são 14 milhões de pessoas a mais passando fome no país” 2.
Isso significa que diante da precarização
das condições socioeconômicas da população brasileira, decorrentes do somatório
da desconstrução das políticas públicas assistenciais, da crise econômica gerada
pelas conjunturas internas e externas do país, e da pandemia da COVID-19, o
cidadão está sendo alçado à própria sorte, à nefasta roleta da desigualdade.