quinta-feira, 9 de junho de 2022

A mercê da própria sorte...


A mercê da própria sorte...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Infelizmente, o Brasil caminha para o mais absoluto retrocesso. Não. Não se trata de mera impressão ou especulação; mas, de constatações diárias e plurais que configuram a dimensão desse movimento.

A notícia mais recente é de ontem. Segundo decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que aparece nos sites de busca como “O tribunal da Cidadania”, os “planos de saúde não precisam cobrir procedimentos fora da lista da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar)” 1.

Antes de qualquer coisa, não nos esqueçamos de que essa decisão é fruto de uma intensa necessidade de judicialização, ou seja, tornou-se cada vez mais necessário que a resolução de questões de grande repercussão social seja decidida pelo Judiciário nacional, tendo em vista a inabilidade, a incapacidade ou a simples negligência dos atores sociais tradicionalmente responsáveis por elas – Legislativo e Executivo.

E isso ocorre, não por obra do acaso; mas, pode-se dizer das próprias tramas da necropolítica brasileira que obstaculizam de todas as maneiras o preceito constitucional que estabelece que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (art. 196, CF de 1988).

Ora, a Pandemia da COVID-19 não deixou quaisquer dúvidas a respeito da importância do arcabouço do Sistema Único de Saúde (SUS) para o enfrentamento da mais grave situação de emergência sanitária já vivida pelo país na contemporaneidade.

Ainda que, resistindo a todo tipo de desmantelamento e restrição de recursos orçamentários, o SUS teve importante papel para que a tragicidade dos acontecimentos não constituísse uma estatística muito mais aterrorizadora e cruel.

Isso porque ele trabalhou como um suporte ao sistema de saúde suplementar, ou seja, o SUS durante o momento mais crítico da pandemia ainda conseguia dar vazão de atendimento ao seu contingente, porque muitas pessoas dispunham de planos de saúde privados e foram por estes atendidas.

Acontece que, em meio a tais acontecimentos, o Brasil foi se deparando, também, com o acirramento de uma crise econômica vultosa que levou milhões de cidadãos a perder seus postos de trabalho e, por consequência, a possibilidade de manutenção dos planos de saúde.

Estabeleceu-se, então, um claro desequilíbrio na lei da oferta e da procura no campo da saúde pública brasileira. Porém, sem que nada fosse feito por parte do governo federal. Muito pelo contrário, os processos de desmantelamento, sucateamento e cortes orçamentários prosseguiram dentro da realidade do SUS.  

Mas, muito além disso, se expôs o fato de que o mundo está em franco adoecimento. A pandemia da COVID-19 foi o grande alerta; mas, atrás dela se coloca uma realidade de total vulnerabilidade sanitária.

Algo que contempla não somente o surgimento de novos vírus, como foi o caso do Sars-Cov-2 e suas variantes; bem como, de inúmeras outras patologias, síndromes e transtornos, decorrentes dos impactos diretos e indiretos das relações humanas com o meio ambiente.

Sim, no campo das Ciências Médicas a relação com o desequilíbrio ambiental não é mais uma especulação. Estudos ao redor do planeta consideram a influência da elevação das temperaturas, do uso exacerbado de insumos químicos e agrotóxicos na produção agropecuária, da carência de água potável e saneamento básico, da poluição intensa pelos gases do chamado efeito estufa, da dizimação das áreas de flora naturais que expõem e aproximam a fauna silvestre da população urbana, dos eventos climáticos extremos que atingem diretamente a salubridade populacional, para a potencialização de antigas e novas doenças.

E a pergunta a se fazer é: O Brasil está preparado para o previsível e o imprevisível, nesses casos? Bem, considerando a realidade atual, creio que não, tendo em vista o gargalo que a crise econômica agravou para a saúde pública.

Faltam remédios básicos em diversas localidades do país. Persistem as macas nos corredores superlotados dos hospitais públicos. Ampliam-se as filas de espera por atendimento na rede SUS. Há insuficiência de leitos de Unidade de Terapia Intensiva e Semi-Intensiva (adulto e pediátrica). O teste do pezinho ampliado ainda não é oferecido na maioria dos estados da federação. Vive-se o negacionismo científico e a resistência à imunização da população. ...

No entanto, o mundo não para de girar. Dengue, Zika e Chikungunya estão aí em números preocupantes. A Varíola de Macaco já chegou ao Brasil. A hepatite misteriosa em crianças segue trazendo desconforto às autoridades. A COVID-19 continua fazendo seus estragos na população. As recentes enchentes trouxeram a possibilidade de surtos de cólera, febre tifoide, hepatites A e E, leptospirose, tétano. ... Então, as realidades se sobrepõem tingindo com mais força e intensidade os problemas.

Pois é, quero dizer que uma doença não é só uma doença. Ela acontece de acordo com as especificidades e particularidades de cada organismo humano. Não, não é uma receita bolo! Para uns é mais simples, para outros mais complexa ou, até mesmo, letal.

Depende do estado clínico do paciente, se ele está em condições saudáveis, bem nutrido, em ambiente sem riscos, sem doenças preexistentes, enfim.  E ainda que supere o estágio patológico inicial, eventuais desdobramentos representam um desafio imenso para a grande maioria da população.

Olhando, mais uma vez, para as fragilidades presentes no atual Sistema Único de Saúde, nos deparamos com a ausência e/ou insuficiência de uma rede multidisciplinar de apoio nesses casos. Assistentes sociais. Fisioterapeutas. Terapeutas ocupacionais. Psicólogos. Nutricionistas. Enfermagem domiciliar. Farmácias especializadas em fornecer as medicações e insumos essenciais ao desenvolvimento da terapêutica. Serviços que são fundamentais para uma pronta recuperação ou para uma manutenção da qualidade de vida e sobrevivência do indivíduo.

Portanto, quando o STJ delibera por 6 votos a 3 que os “planos de saúde não precisam cobrir procedimentos fora da lista da ANS”, é como se atribuísse ao cidadão o controle sobre a própria saúde, no sentido de só poder adoecer dentro de parâmetros que o seu plano de saúde possa atendê-lo.  

Além disso, em defesa dessa decisão, houve dentre os ministros votantes a alegação de que a mesma contribuiria para o controle nos reajustes dos preços dos planos de saúde. O que é profundamente perverso, na medida em que a utilização dos planos de saúde se dá com base na existência de uma demanda real e urgente.

Ninguém vai ao médico a passeio! Ninguém faz exames por falta de ter o que fazer! Ninguém depende deste ou daquele tratamento porque decidiu à revelia da Ciência! A vida não funciona assim!

Só posso dizer que essa decisão soa ultrajante, repugnante. Sobretudo, quando no mesmo dia, o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (REDE PENSSAN) apontou que “o país soma atualmente cerca de 33,1 milhões de pessoas se ter o que comer diariamente, quase o dobro das pessoas em situação de fome em 2020. Em números absolutos, são 14 milhões de pessoas a mais passando fome no país” 2.

Isso significa que diante da precarização das condições socioeconômicas da população brasileira, decorrentes do somatório da desconstrução das políticas públicas assistenciais, da crise econômica gerada pelas conjunturas internas e externas do país, e da pandemia da COVID-19, o cidadão está sendo alçado à própria sorte, à nefasta roleta da desigualdade.