quarta-feira, 8 de junho de 2022

O que dizer de nós e da nossa necropolítica, hein???


O que dizer de nós e da nossa necropolítica, hein???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Se engana, ou quer se enganar, quem pensa que não há ordem no caos. O que estamos assistindo no Brasil não é um coletivo de absurdos aleatórios, não. Tem método. Tem planejamento. Tem propósito. Só não tem espírito coletivo de nação. Só não visa trabalhar em prol do desenvolvimento e do progresso nacional. Daí vem a pergunta, então, por quê?

Colocar o país na bancarrota. Um país quebrado sob diferentes formas, conteúdos e intensidades, estabelece necessariamente uma legião de indivíduos obrigados a aceitar o que lhes for imposto para não morrer. Isso significa que as pessoas sairiam da luta pela sobrevivência para uma condição ainda mais extrema, que não oferece quaisquer opções de dignidade.

O que estamos presenciando mais explicitamente nesse momento, no Brasil, tem nome, é a necropolítica. Segundo o filósofo Achille Mbembe, trata-se da “capacidade de estabelecer parâmetros em que a submissão da vida pela morte está legitimada”, ou seja, “a necropolítica não se dá só por uma instrumentalização da vida, mas também pela destruição dos corpos. Não é só deixar morrer, é fazer morrer” 1.

De modo que isso se configura na desordem, no conflito armado, na crise humanitária, na exclusão, na perseguição e todos os demais mecanismos sociais que permitem a consolidação de um regime de medo e precarização. Basta colocar reparo nas notícias, para perceber como elas se encaixam na formação desse mosaico perverso.

Entretanto, ao se permitir submergir em águas tão turbulentas e conflituosas, o Brasil se abstém de olhar o mundo ao qual pertence sob a perspectiva da realidade. Não adianta exterminar esse ou aquele, porque a dinâmica da vida impõe a necessidade de um contingente humano amplo e plural para dar conta de suprir todas as demandas. Quando o país se fragmenta e se coloca na posição de atender a alguns poucos em detrimento de muitos, ele acaba não chegando a lugar algum. São mais de 500 anos de história demonstrando isso, será que ainda não foi possível entender?

Aliás, a morte é sim, o ponto nevrálgico para a sustentação do todo. Mortos não votam. Mortos não produzem. Mortos não pagam impostos. Mortos não consomem. Mortos não fazem as engrenagens do país girarem. E segundo dados coletados mais recentemente pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o desempenho do PIB (Produto Interno Bruto) se apresenta muito ruim, na medida em que a “conjuntura internacional é preocupante e foi profundamente agravada pela Guerra da Ucrânia, que teve início em fevereiro, e também pesaram as novas interrupções nas cadeias de fornecimento, ainda por conta da pandemia” 2.

Sendo assim, as expectativas de crescimento global se reduzem em face do risco de uma inflação generalizada mundo afora, a qual já dá sinais aterrorizantes no Brasil. “A economia mundial deverá crescer 3% este ano, muito menos do que os 4,5% esperados quando a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) atualizou suas previsões pela última vez em dezembro. O crescimento vai desacelerar ainda mais no próximo ano, diminuindo para 2,8%, em relação a uma previsão anterior de 3,2%”3.

Portanto, de acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), por exemplo, “a estimativa é que a população abaixo da linha da pobreza chegue a 33%, acima dos 32,1% de 2021, enquanto aqueles abaixo da linha da extrema pobreza passem de 13,8% no ano passado para 14,5%” 4.

Olhar para esse cenário é, então, importantíssimo, porque ele nos dá a dimensão do quão perigoso é se encher de certezas e convicções em um mundo que gira sob a mais absoluta instabilidade. Nunca foi tão imperioso ponderar prós e contras antes de quaisquer atitudes, ainda que isso signifique apenas uma possibilidade de mitigação mínima de riscos e de perdas 5.

O cotidiano está pressionado pelo “E se …”. E se vier outra pandemia? E se vierem outras catástrofes climáticas, assolando a produção global de alimentos e a sobrevivência humana em certas regiões? E se não conseguirmos reequilibrar os padrões de vida e consumo tão abalados nesses últimos anos? E se a guerra não for superada? ...

Nesse sentido, não basta se ater apenas a conjuntura atual brasileira, na perspectiva da eleição pela eleição. A realidade desses últimos 4 anos é um balizador fundamental para as perspectivas futuras, tanto no contexto interno quanto internacional, posto que não podemos dissociar um do outro.

Afinal de contas, por mais que esse “uso do poder político e social, especialmente por parte do Estado, de forma a determinar, por meio de ações ou omissões, quem pode permanecer vivo ou deve morrer”6 esteja vigorando sob aplausos de uns e outros por aí, ele está corroendo a estrutura que sustenta todo o país, sem exceção. A necropolítica não é e nem nunca foi solução de nada, ainda que esteja presente em vários momentos no curso da história.

No caso brasileiro, por exemplo, desde a colonização. Não é à toa que computamos avanços pífios no desenvolvimento e no progresso nacional.  Na base de um passo à frente e dez para trás, o que acaba resultando em nada. Ora, enquanto você se permite esconder na sua própria omissão questionadora, o país não muda, sabia? Não é porque o cotidiano sempre transitou por esse viés que está certo, que tem que permanecer assim.

A necropolítica é, portanto, um instrumento tóxico, nocivo, destrutivo. Como escreveu Mario Sergio Cortella, “Na vida é preciso ter raiz, não âncora. A raiz te alimenta, a âncora te imobiliza”. Mas, até aqui, a sociedade brasileira se permitiu agir assim, imobilizando seus estratos, destruindo pessoas e direitos, segregando, oprimindo, invisibilizando, negando, obstaculizando. No entanto, está mais do que evidente de que ela não aluiu do lugar, porque represou-se em si mesma. Porque, de acordo com Isaac Newton, isso resume o fato de que “Construímos muros demais e pontes de menos”.