O
que dizer de nós e da nossa necropolítica, hein???
Por
Alessandra Leles Rocha
Se engana, ou quer se enganar,
quem pensa que não há ordem no caos. O que estamos assistindo no Brasil não é
um coletivo de absurdos aleatórios, não. Tem método. Tem planejamento. Tem
propósito. Só não tem espírito coletivo de nação. Só não visa trabalhar em prol
do desenvolvimento e do progresso nacional. Daí vem a pergunta, então, por quê?
Colocar o país na bancarrota. Um
país quebrado sob diferentes formas, conteúdos e intensidades, estabelece
necessariamente uma legião de indivíduos obrigados a aceitar o que lhes for
imposto para não morrer. Isso significa que as pessoas sairiam da luta pela
sobrevivência para uma condição ainda mais extrema, que não oferece quaisquer
opções de dignidade.
O que estamos presenciando mais
explicitamente nesse momento, no Brasil, tem nome, é a necropolítica. Segundo o
filósofo Achille Mbembe, trata-se da “capacidade
de estabelecer parâmetros em que a submissão da vida pela morte está
legitimada”, ou seja, “a
necropolítica não se dá só por uma instrumentalização da vida, mas também pela
destruição dos corpos. Não é só deixar morrer, é fazer morrer” 1.
De modo que isso se configura na
desordem, no conflito armado, na crise humanitária, na exclusão, na perseguição
e todos os demais mecanismos sociais que permitem a consolidação de um regime
de medo e precarização. Basta colocar reparo nas notícias, para perceber como
elas se encaixam na formação desse mosaico perverso.
Entretanto, ao se permitir
submergir em águas tão turbulentas e conflituosas, o Brasil se abstém de olhar
o mundo ao qual pertence sob a perspectiva da realidade. Não adianta exterminar
esse ou aquele, porque a dinâmica da vida impõe a necessidade de um contingente
humano amplo e plural para dar conta de suprir todas as demandas. Quando o país
se fragmenta e se coloca na posição de atender a alguns poucos em detrimento de
muitos, ele acaba não chegando a lugar algum. São mais de 500 anos de história
demonstrando isso, será que ainda não foi possível entender?
Aliás, a morte é sim, o ponto
nevrálgico para a sustentação do todo. Mortos não votam. Mortos não produzem.
Mortos não pagam impostos. Mortos não consomem. Mortos não fazem as engrenagens
do país girarem. E segundo dados coletados mais recentemente pela OCDE
(Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o desempenho do PIB
(Produto Interno Bruto) se apresenta muito ruim, na medida em que a “conjuntura internacional é preocupante e
foi profundamente agravada pela Guerra da Ucrânia, que teve início em
fevereiro, e também pesaram as novas interrupções nas cadeias de fornecimento,
ainda por conta da pandemia” 2.
Sendo assim, as expectativas de
crescimento global se reduzem em face do risco de uma inflação generalizada
mundo afora, a qual já dá sinais aterrorizantes no Brasil. “A economia mundial deverá crescer 3% este ano, muito menos do que os
4,5% esperados quando a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) atualizou suas previsões pela última vez em dezembro. O crescimento vai
desacelerar ainda mais no próximo ano, diminuindo para 2,8%, em relação a uma
previsão anterior de 3,2%”3.
Portanto, de acordo com a
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), por exemplo, “a estimativa é que a população abaixo da
linha da pobreza chegue a 33%, acima dos 32,1% de 2021, enquanto aqueles abaixo
da linha da extrema pobreza passem de 13,8% no ano passado para 14,5%” 4.
Olhar para esse cenário é, então,
importantíssimo, porque ele nos dá a dimensão do quão perigoso é se encher de
certezas e convicções em um mundo que gira sob a mais absoluta instabilidade.
Nunca foi tão imperioso ponderar prós e contras antes de quaisquer atitudes,
ainda que isso signifique apenas uma possibilidade de mitigação mínima de
riscos e de perdas 5.
O cotidiano está pressionado pelo
“E se …”. E se vier outra pandemia? E se vierem outras catástrofes climáticas,
assolando a produção global de alimentos e a sobrevivência humana em certas
regiões? E se não conseguirmos reequilibrar os padrões de vida e consumo tão
abalados nesses últimos anos? E se a guerra não for superada? ...
Nesse sentido, não basta se ater
apenas a conjuntura atual brasileira, na perspectiva da eleição pela eleição. A
realidade desses últimos 4 anos é um balizador fundamental para as perspectivas
futuras, tanto no contexto interno quanto internacional, posto que não podemos
dissociar um do outro.
Afinal de contas, por mais que
esse “uso do poder político e social,
especialmente por parte do Estado, de forma a determinar, por meio de ações ou
omissões, quem pode permanecer vivo ou deve morrer”6
esteja vigorando sob aplausos de uns e outros por aí, ele está corroendo a
estrutura que sustenta todo o país, sem exceção. A necropolítica não é e nem
nunca foi solução de nada, ainda que esteja presente em vários momentos no
curso da história.
No caso brasileiro, por exemplo,
desde a colonização. Não é à toa que computamos avanços pífios no
desenvolvimento e no progresso nacional.
Na base de um passo à frente e dez para trás, o que acaba resultando em
nada. Ora, enquanto você se permite esconder na sua própria omissão
questionadora, o país não muda, sabia? Não é porque o cotidiano sempre
transitou por esse viés que está certo, que tem que permanecer assim.
A necropolítica é, portanto, um instrumento tóxico, nocivo, destrutivo. Como escreveu Mario Sergio Cortella, “Na vida é preciso ter raiz, não âncora. A raiz te alimenta, a âncora te imobiliza”. Mas, até aqui, a sociedade brasileira se permitiu agir assim, imobilizando seus estratos, destruindo pessoas e direitos, segregando, oprimindo, invisibilizando, negando, obstaculizando. No entanto, está mais do que evidente de que ela não aluiu do lugar, porque represou-se em si mesma. Porque, de acordo com Isaac Newton, isso resume o fato de que “Construímos muros demais e pontes de menos”.
1 https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/necropolitica#:~:text=%E2%80%9C'Necropol%C3%ADtica%20%C3%A9%20a%20capacidade%20de,morrer%2C%20%C3%A9%20fazer%20morrer%20tamb%C3%A9m.
2 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/06/veja-o-desempenho-do-pib-de-varios-paises-no-1o-trimestre-de-2022.shtml
3 https://www.terra.com.br/economia/ocde-corta-perspectiva-de-crescimento-mas-ve-risco-limitado-de-estagflacao,693ee05a3b10e52590d2a5a18ffd06ddzm4aorli.html
4 https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/06/06/pobreza-pode-chegar-a-13-da-populacao-da-america-latina-este-ano-estima-cepal.ghtml
5 https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/06/08/economia-global-crescera-5-vezes-mais-que-brasil-em-2022-diz-ocde.ghtml
6 Idem 1.