terça-feira, 7 de junho de 2022

Sobre prateleiras vazias e outras carências nacionais...


Sobre prateleiras vazias e outras carências nacionais...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não se pode negar que a Pandemia da COVID-19 revelou uma fragilidade no campo das autossuficiências produtivas, no mundo. O impacto sobre a lei da Oferta e da Procura foi avassalador em diferentes setores da economia. Entretanto, no fundo, esse recorte foi somente o que se pode chamar de “a cereja do bolo”. É fundamental ter em mente que essa realidade vinha sendo construída bem antes de quaisquer rompantes de imprevisibilidade.  

E dentro desse contexto, eis que, ontem, uma série de notícias davam conta da escassez de certos antibióticos no mercado brasileiro. Algo que já havia sido noticiado em relação a outros tipos de medicamentos e produtos farmacêuticos. Seja por falta de insumos para a produção local ou pela impossibilidade de compra direta do produto final, de fornecedores estrangeiros, dada a intensa demanda internacional, fato é que essa situação tem gerado tensão entre milhares de pacientes no país.

Mais uma vez, o que mais me chama atenção é não encontrar nenhum comentário que alcance o cerne da questão. Não adianta, minha gente, o Brasil é o que é por conta do ranço colonial que se arrasta, como grilhão pesado, há mais de 500 anos. Ex-colônia de exploração, o país não se desvencilhou da posição econômica, predominantemente, primária, negligenciando de maneira perceptível os setores secundário e terciário.

Noticia-se, até com certa emoção, os resultados das exportações do agronegócio, como quem narra o placar vitorioso de um jogo de futebol. Queiram ou não admitir, permite-se que o Agro brasileiro permaneça exercendo o mesmo papel poderoso e influente nos rumos do país, como acontecia nos tempos coloniais. De modo que os outros setores figuram como meros coadjuvantes e, em alguns momentos, nem isso.

É uma pena que o Brasil viva debruçado na janela, vendo a banda do progresso e do desenvolvimento passar. Não damos a mínima para os royalties que poderiam proliferar da nossa produção científica e tecnológica, quando desprezamos o papel fundamental das nossas universidades e institutos de pesquisa públicos. Pois é, não nos constrangemos em cortar recursos, perseguir e boicotar pesquisas, desqualificar cientistas, abrir mão do nosso seleto grupo de cérebros para oferecê-los “de mão beijada” a quem possa interessar. E saibam que tem gente interessada neles!

Ora, ora. Eles estão descobrindo. Criando. Produzindo. Temos brasileiros despontando nas ciências em todo o mundo. Mas, por aqui é tudo mais difícil. De modo que entre sobreviver e resistir, eles acabam alçando voos para bem longe. A migração intelectual deveria nos envergonhar, nos sentir diminuídos, humilhados. Mas, o Brasil dos grandes latifúndios, da imensa desigualdade socioeconômica, infelizmente, se acostumou a uma vida sustentada por aquilo que vem de fora.

Qual o problema de não produzirmos isso ou aquilo? Se não tem, a gente importa! A gente paga caro; mas, não tem problema! Sem cogitar, sequer, a hipótese de que, de repente, mesmo com o dinheiro na mão, não haveria como o mercado internacional suprir as nossas demandas. Afinal, o mundo já ultrapassa os mais de 7 bilhões de habitantes.  Nossa visão estreita de mundo; sobretudo, no campo do comércio exterior, nos colocou em xeque-mate. Tornamo-nos reféns da nossa própria inação, do nosso próprio despreparo e ignorância.  

E isso não é pouca coisa, como alguns querem fazer parecer. É gravíssimo. Ao permitir que nosso setor secundário (ou industrial) não acompanhasse as evoluções científicas e tecnológicas, a fim de se manter competitivo no cenário global, também, se reduziu drasticamente a produção e, por consequência, o percentual exportador e a oferta de empregos no setor.

De modo que no setor terciário da economia brasileira, que agrega os serviços formais e informais, o país acaba favorecendo o setor secundário de outros países, especialmente a China. Nos tornamos um franco consumidor de produtos chineses, nas últimas décadas, e grande parte desse comércio atende ao setor de serviços brasileiro, ou seja, pequenos comerciantes, camelôs. No fim das contas, o Brasil vive a onda do “made in China” (fabricado na China) em toda a sua cadeia produtiva e de comércio.  

Enquanto isso, o Agro brasileiro resiste como “garoto propaganda” do PIB (Produto Interno Bruto) nacional. Embora, com uma roupagem high tech (computadores, implementos agrícolas de última geração, sementes modificadas geneticamente, satélites etc.etc.etc.), a pauta do seu modus operandi é a mesma de 500 anos atrás, ou seja, servir aos interesses internacionais. Estatisticamente falando, os números da exportação agropecuária brasileira enchem os olhos do setor, principalmente, quando se sucedem os recordes de produção.

Mas, será que esses números resumem tudo? Produzimos toneladas e toneladas de alimentos anualmente; mas, não conseguimos aplacar a fome e a miséria que se alastram dentro do próprio território. Exaurimos o nosso ambiente físico, o expomos a uma diversidade imensa de produtos químicos e tóxicos para ampliar a produção, contaminamos pessoas e recursos naturais, e no fim das contas, não fazemos senão lustrar as nossas carências, as nossas insuficiências, as nossas desigualdades.

Enquanto falta isso, aquilo, aquilo outro, o problema é que a grande massa da população se deixar levar pela influência de uma euforia construída por notícias que visam atender aos interesses daqueles que se beneficiam com a situação do jeito que está. É como se não houvesse nada de errado nas entrelinhas dessa história. Mas, como não? A realidade só faz expor o quanto a população brasileira não é prioridade, nem nunca foi, do seu próprio país. O “não ter” foi legitimado e institucionalizado historicamente por aqui e chegamos a tal ponto que ele se normalizou.

No entanto, a pergunta não quer calar: será que é normal? Quero ver você achar normal não ter o remédio que precisa, a comida no prato quando tem fome, a água potável para beber, ... Vincent Van Gogh dizia que “A normalidade é uma estrada pavimentada: é confortável para caminhar, mas não há flores crescendo nela”. Portanto, precisamos de lucidez e reflexão antes de sairmos normalizando, trivializando, banalizando, tudo por aí. Afinal de contas, segundo George Orwel, “A linguagem política, destina-se a fazer com que a mentira soe como verdade e o crime se torne respeitável, bem como a imprimir ao vento uma aparência de solidez”.