sábado, 11 de junho de 2022

Simplesmente amor...


Simplesmente amor...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Lamento pela mercantilização, que se faz na contemporaneidade, do afeto, do amor, dos mais profundos sentimentos humanos. Mas, acho muito bacana quando o romance exala no ar. Quando passa a fazer parte das conversas, dos interesses, dos comportamentos, como se buscasse dentro de cada um de nós aquilo que se guarda de mais puro, de mais belo, de mais sagrado.

Como escreveu Zygmunt Bauman, “Em todo amor há pelo menos dois seres, cada qual a grande incógnita na equação do outro. É isso que faz o amor parecer um capricho do destino – aquele futuro estranho e misterioso, impossível de ser descrito antecipadamente, que deve ser realizado ou protelado, acelerado ou interrompido. Amar significa abrir-se ao destino, a mais sublime de todas as condições, em que o medo se funde ao regozijo num amálgama irreversível. Abrir-se ao destino significa, em última instância, admitir a liberdade no ser: aquela liberdade que se incorpora no Outro, o companheiro no amor” 1.

Talvez, por isso, particularmente, nunca acreditei em amor idealizado. Aquele que se constrói investindo numa busca incessante pela cara-metade, em cada esquina da vida, tentando fazer com que ela caiba ajustadinha no seu manual de conveniências. Como quem preenche uma ficha de seleção, com peso, altura, cor dos olhos e do cabelo, religião, conta bancária, predileções, defeitos, qualidades, etc.etc.etc. O que faz das relações humanas algo muito cansativo, além de fadado ao insucesso, desmotivante e, também, acintosamente comercial.

Sem contar que se quebra a obviedade de que nem todo vivente desse mundo vai realmente encontrar um amor que lhe supra o corpo, a alma e os sentidos com essa exatidão de inteireza. Como todo encontro, o amor tem um quê de sorte, de predestinação, de brincadeira do acaso, que não cai nas armadilhas de nenhuma generalização vulgar. Não, não é só escolha. Não é só permissão. Não é só vontade. Não é só uma questão de procura, de investimento de esforço sobrehumano. Simplesmente acontece ou não.

O que não é uma razão para se entristecer. Afinal, chegamos nesse mundo sem maiores informações quanto aos caminhos que irão se descortinar diante de nós. Vivemos. Um dia depois do outro. Experimentamos. Tentamos. Acertamos. Erramos. Às vezes, damos o nosso melhor. Às vezes, não. E nesse processo vamos tecendo as nossas relações humanas, interpessoais, afetivas. Vamos conhecendo pessoas. Nos conectando e desconectando diante das circunstâncias.

Acontece que no curso desse processo não é possível cravar com toda certeza e convicção que no final do arco-íris estará o amor que é amor. Porque esse amor é sim, uma raridade. O que não quer dizer que se possa confundir raridade com perfeição. Pois, amor é algo tão complexo, que dista muito de uma linha reta bem definida. Amor dá voltas. Sobe. Desce. Vira. Revira. Enlouquece. Pacifica. Acalma. Desinquieta. Orienta. Desorienta. ... Mas, o que faz dele amor, com letras garrafais e sentido absoluto, está na materialidade de uma chama perene que aquece de bem-estar e satisfação o coração dos amantes.

Não, não é uma questão de apego ou de dependência. É somente sentir-se pleno de algo que nos faz bem, que contribui de uma maneira muito positiva para a nossa construção existencial. Que nos dá a oportunidade de enxergar através de nossos espelhos interiores a imagem de alguém cada vez mais humanamente aprimorado. O amor nos dá a oportunidade de viver dias de chuva e de sol, usufruindo o que há de melhor neles. Extraindo a beleza contida em cada um, porque simplesmente se tem alguém para compartilhar.

Pois é, o amor foge dos protocolos sociais. Não basta estar do lado. Não basta posar para a fotografia. Não basta viajar junto. Não basta estar. O amor pede ser. Ser parceiro. Ser amigo. Ser companheiro. Ser paixão. Ser afeto. Ser ternura. Ser amor. Um amor que resiste às investidas do tempo, do espaço, das conjunturas, não por quaisquer obrigações ou imposições; mas, porque só sabe ser assim.

Daí o fato de que amar tem tudo a ver com compartilhar. Compartilhar gostos e desagrados. Compartilhar afinidades e aversões. Compartilhar sucessos e derrotas. Compartilhar sonhos e pesadelos. ... Enfim, compartilhar a vida exatamente como ela é. Amando sem pressa, sem olhar no relógio, sem medir o tempo, sem se deixar acelerar por perspectivas e projeções. Amando como quem saboreia uma fruta colhida no pé, sentindo cada nuance daquele prazer.

Confesso que ao longo da minha vida (até aqui) vi alguns exemplos desse amor. Não que a relação desses casais tivesse sido reproduzida como uma receita de bolo; mas, apesar da singularidade e especificidade das experiências, o resultado final era amor. Registros que transcendem quaisquer palavras ou definições; mas, que orbitam o cotidiano em forma de olhar, de toque, de todo um conjunto de subjetividades e imaterialidades que podem ser captadas pelos observadores mais atentos.

Quando penso nisso, estabeleço logo uma conexão com as seguintes palavras de Rubem Alves, “Todo jardim começa com um sonho de amor. Antes que qualquer árvore seja plantada ou qualquer lago seja construído, é preciso que as árvores e os lagos tenham nascido dentro da alma. Quem não tem jardins por dentro, não planta jardins por fora e nem passeia por eles...”. E esse amor que eu vi nesses casais era sim, verdadeiros jardins floridos e encantadores. Havia uma total disposição em amar. Amar sem senões. Sem obstáculos.

Quisera a sociedade contemporânea parar para refletir a esse respeito e desconstruir o ceticismo que teima em liquefazer as relações humanas; sobretudo, o amor. Talvez, nos surpreenderíamos com um contingente muito maior de pessoas que realmente compartilham essa experiência fantástica.

Por isso, não nos esqueçamos de que “não é ansiando por coisas prontas, completas e concluídas que o amor encontra o seu significado, mas no estímulo a participar da gênese dessas coisas. O amor é à fim a transcendência; não é senão outro nome para o impulso criativo e como tal carregado de riscos, pois o fim de uma criação nunca é certo” (Zygmunt Bauman 2). Deixe, então, o amor reverberar e aspergir suas gotas de bem-estar e felicidade por todo lugar.    



1 BAUMAN, Z. Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. (Título original “Liquid Love: On the frailty of Human Bonds).

2 Idem 1.