sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Não. Não acabou ...


Não. Não acabou ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ainda que o julgamento da Ação Penal 2668, referente ao Núcleo 1 da ação por tentativa de golpe de Estado, seja um marco importante para história nacional, ele não encerra definitivamente com as intenções e as pretensões antidemocráticas, que pairam sobre o Brasil.

Como esquecer a presença de uma gigantesca bandeira estadunidense, em pleno dia de comemoração da Independência brasileira? Ou todo o farto acervo de episódios antidemocráticos, anticidadãos, ocorridos no país, nos últimos anos? A cada momento surge uma nova “cereja do bolo”.

Brincadeiras à parte, esse comportamento social brasileiro tem muito a dizer. Talvez, agora, muitos consigam perceber o efeito nefasto da historicidade nacional, em relação à sua herança colonial.

Afinal, a estrutura e organização social brasileira tem raízes profundas no período colonial, caracterizado pela exploração de mão de obra escrava, racismo, latifúndio, monocultura e um sistema patriarcal e elitista, baseado em um poder concentrado nas mãos de poucos e na exclusão de grande parte da população.

Acontece que, chegado o tempo republicano, no país, essa base não só permaneceu como se perpetuou, ainda que através de novas roupagens.  Além disso, questões como o mandonismo, coronelismo e o clientelismo, demonstraram a sua força e importância.

Vejam, por exemplo, o mandonismo, uma prática social e política onde um indivíduo local, o mandon, exercia controle autoritário sobre a população, limitando sua autonomia e poder de decisão, geralmente através do controle de recursos econômicos e sociais, como a posse de terras.

De seus vieses, emergiu o coronelismo. Uma complexa estrutura de poder característica do Brasil, entre 1889 e 1930, quando os chamados “coronéis", grandes fazendeiros e políticos locais, exerciam poder sobre suas populações através de trocas de favores e violência, controlando votos por meio do voto de cabresto.

Quanto ao clientelismo, trata-se de uma prática política de troca direta de benefícios materiais ou serviços por apoio eleitoral, violando assim os critérios públicos e a transparência na distribuição de recursos estatais, que manteve as oligarquias no poder e a desigualdade social, com a elite econômica garantindo seus privilégios e aprofundando a exclusão.

Portanto, apesar de estarmos em pleno século XXI, parece difícil que essa herança seja extirpada do (in)consciente coletivo nacional. Algo que faz lembrar a “fábula do elefante acorrentado", que trata das crenças limitantes, a partir da história de um elefante grande e poderoso que não se liberta de uma corda fina e uma estaca pequena, porque, na infância, não teve força para fazê-lo e, com o tempo, internalizou a crença de que era incapaz de se libertar. De modo que ele nunca mais tentou testar sua força, aceitando sua impotência e vivendo preso por uma memória de seu passado, por uma crença antiga, sem questioná-la.

Ocorre que a falta de protagonismo social, por parte dos 99,9% da população brasileira, ao longo desses pouco mais de 500 anos de história, resultou na perda do potencial transformador, tanto individual quanto coletivamente, perpetuando não só as desigualdades; bem como, limitando a autonomia e o desenvolvimento de habilidades essenciais, tais como o pensamento crítico, a resiliência e a resolução de problemas.

Se estabeleceu, nesse país, uma inevitável crença de baixa autoestima, de insegurança e de dependência, a qual impediu aos cidadãos moldarem suas próprias vidas e o mundo ao seu redor, segundo sua própria consciência.  

Nesse sentido, pode-se dizer sim, que a identidade nacional foi corrompida e/ou fragilizada por fatores que foram desde o ciclo de exploração histórica ao patrimonialismo (apropriação do que é público para uso privado), os quais contribuíram para a falta de participação popular nos debates públicos e a imposição de interesses particulares.

O que inevitavelmente acentuou não somente a ausência de autoestima e a hipervalorização do que vem de fora; mas, a construção do chamado “jeitinho brasileiro" e a aceitação da corrupção como um traço da identidade. Questões que acabaram resultando em uma identidade nacional que reflete uma realidade insatisfatória, a qual se permite, então, manifestar publicamente o desejo projeção em outra imagem.

Bem, foi reconhecendo tais vulnerabilidades e fragilidades brasileiras, que a "Internacional de Direita" vem se articulando e se conectando por meio de partidos políticos, movimentos ideológicos, especialmente de ultradireita, em um contexto transnacional, que abrange diversos países, incluindo o Brasil.

Ora, o Brasil reluz como importante expoente, no que se refere à ultradireita global, por conta da sua articulação de valores conservadores e de discurso antiglobalista, com forte interconexão e influência entre grupos da direita radical e neofascista nos EUA e na Europa.

Como escreveram Gilberto Gil e Caetano Veloso, em 1969, “É preciso estar atento e forte...” 1! O Brasil não pode se abster, então, da compreensão de que as estratégias, comumente usadas por eles, tais como o evento CPAC (Conferência Política da Ação Conservadora), tem por propósito reafirmar, cada vez mais, o país no centro da ultradireita internacional, promovendo a formação de alianças transnacionais e o intercâmbio de estratégias para combater o avanço do progressismo, no Brasil e no mundo.

Eles estão convictos na empreitada de impedir que todo o conjunto de ideias, filosofias e movimentos sociais e políticos que defendam a evolução e o aperfeiçoamento da condição humana através da reforma social, do avanço científico e tecnológico, e de mudanças políticas e econômicas, tenha espaço para se consolidar no território brasileiro.

Daí a bandeira estadunidense, as sanções tarifárias, a ingerência arbitrária em relação às decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e a estigmatização de alguns de seus ministros. É, não se pode acreditar que está tudo resolvido! Não. Não acabou! Segundo Mário de Andrade, poeta, romancista e ensaísta brasileiro, “O passado é lição para refletir, não para repetir”.

Assim, apesar das mudanças profundas na historicidade não serem tarefas simples, fáceis e rápidas, ainda que extremamente necessárias, como nesse caso, deve-se continuar empenhando todos os esforços no sentido de realizá-las.  Sobretudo, tomando como base o alerta de José Saramago, em seu Ensaio sobre a Cegueira (1995), quando escreveu que “A pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos pela frente”.

Caso contrário, a repetição de erros, mentiras e/ou dissimulações, sem análise, reflexão e criticidade, permanecerá conduzindo as pessoas à estagnação, à confusão e ao sofrimento, na medida em que passa a existir uma "ilusão da verdade".

E não se pode negar o fato de que, infelizmente, para muitos (as) brasileiros (as), esse comportamento tem se mostrado ativo na sua aversão ao desconhecido, mantendo-os (as) na sua velha zona de conforto e status quo.

Talvez, por isso, é que “Nascer sabendo é uma limitação porque obriga a apenas repetir e, nunca, a criar, inovar, refazer, modificar. Quanto mais se nasce pronto, mais refém do que já se sabe e, portanto, do passado; aprender sempre é o que mais impede que nos tornemos prisioneiros de situações que, por serem inéditas, não saberíamos enfrentar” (Mario Sergio Cortella - filósofo, escritor e professor brasileiro).



1 Divino, maravilhoso (1969) / Compositores: Gilberto Gil / Caetano Veloso - https://www.youtube.com/watch?v=Emu4JrrfpM0