Não. Não acabou
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Por
Alessandra Leles Rocha
Ainda que o julgamento da Ação Penal
2668, referente ao Núcleo 1 da ação por tentativa de golpe de Estado, seja um
marco importante para história nacional, ele não encerra definitivamente com as
intenções e as pretensões antidemocráticas, que pairam sobre o Brasil.
Como esquecer a presença de uma gigantesca
bandeira estadunidense, em pleno dia de comemoração da Independência brasileira?
Ou todo o farto acervo de episódios antidemocráticos, anticidadãos, ocorridos
no país, nos últimos anos? A cada momento surge uma nova “cereja do bolo”.
Brincadeiras à parte, esse comportamento
social brasileiro tem muito a dizer. Talvez, agora, muitos consigam perceber o
efeito nefasto da historicidade nacional, em relação à sua herança colonial.
Afinal, a estrutura e organização
social brasileira tem raízes profundas no período colonial, caracterizado pela
exploração de mão de obra escrava, racismo, latifúndio, monocultura e um
sistema patriarcal e elitista, baseado em um poder concentrado nas mãos de
poucos e na exclusão de grande parte da população.
Acontece que, chegado o tempo republicano,
no país, essa base não só permaneceu como se perpetuou, ainda que através de
novas roupagens. Além disso, questões
como o mandonismo, coronelismo e o clientelismo, demonstraram a sua força e importância.
Vejam, por exemplo, o mandonismo,
uma prática social e política onde um indivíduo local, o mandon, exercia
controle autoritário sobre a população, limitando sua autonomia e poder de
decisão, geralmente através do controle de recursos econômicos e sociais, como
a posse de terras.
De seus vieses, emergiu o
coronelismo. Uma complexa estrutura de poder característica do Brasil, entre 1889
e 1930, quando os chamados “coronéis", grandes fazendeiros e políticos
locais, exerciam poder sobre suas populações através de trocas de favores e
violência, controlando votos por meio do voto de cabresto.
Quanto ao clientelismo, trata-se
de uma prática política de troca direta de benefícios materiais ou serviços por
apoio eleitoral, violando assim os critérios públicos e a transparência na
distribuição de recursos estatais, que manteve as oligarquias no poder e a
desigualdade social, com a elite econômica garantindo seus privilégios e
aprofundando a exclusão.
Portanto, apesar de estarmos em pleno
século XXI, parece difícil que essa herança seja extirpada do (in)consciente
coletivo nacional. Algo que faz lembrar a “fábula do elefante
acorrentado", que trata das crenças limitantes, a partir da história de
um elefante grande e poderoso que não se liberta de uma corda fina e uma estaca
pequena, porque, na infância, não teve força para fazê-lo e, com o tempo,
internalizou a crença de que era incapaz de se libertar. De modo que ele nunca
mais tentou testar sua força, aceitando sua impotência e vivendo preso por uma
memória de seu passado, por uma crença antiga, sem questioná-la.
Ocorre que a falta de
protagonismo social, por parte dos 99,9% da população brasileira, ao longo
desses pouco mais de 500 anos de história, resultou na perda do potencial
transformador, tanto individual quanto coletivamente, perpetuando não só as desigualdades;
bem como, limitando a autonomia e o desenvolvimento de habilidades essenciais,
tais como o pensamento crítico, a resiliência e a resolução de problemas.
Se estabeleceu, nesse país, uma
inevitável crença de baixa autoestima, de insegurança e de dependência, a qual
impediu aos cidadãos moldarem suas próprias vidas e o mundo ao seu redor,
segundo sua própria consciência.
Nesse sentido, pode-se dizer sim,
que a identidade nacional foi corrompida e/ou fragilizada por fatores que foram
desde o ciclo de exploração histórica ao patrimonialismo (apropriação do que é
público para uso privado), os quais contribuíram para a falta de participação
popular nos debates públicos e a imposição de interesses particulares.
O que inevitavelmente acentuou não
somente a ausência de autoestima e a hipervalorização do que vem de fora; mas,
a construção do chamado “jeitinho brasileiro" e a aceitação da
corrupção como um traço da identidade. Questões que acabaram resultando em uma identidade
nacional que reflete uma realidade insatisfatória, a qual se permite, então, manifestar
publicamente o desejo projeção em outra imagem.
Bem, foi reconhecendo tais vulnerabilidades
e fragilidades brasileiras, que a "Internacional de Direita" vem
se articulando e se conectando por meio de partidos políticos, movimentos ideológicos,
especialmente de ultradireita, em um contexto transnacional, que abrange diversos
países, incluindo o Brasil.
Ora, o Brasil reluz como
importante expoente, no que se refere à ultradireita global, por conta da sua
articulação de valores conservadores e de discurso antiglobalista, com forte
interconexão e influência entre grupos da direita radical e neofascista nos EUA
e na Europa.
Como escreveram Gilberto Gil e
Caetano Veloso, em 1969, “É preciso estar atento e forte...” 1! O Brasil não pode se abster,
então, da compreensão de que as estratégias, comumente usadas por eles, tais
como o evento CPAC (Conferência Política da Ação Conservadora), tem por
propósito reafirmar, cada vez mais, o país no centro da ultradireita
internacional, promovendo a formação de alianças transnacionais e o intercâmbio
de estratégias para combater o avanço do progressismo, no Brasil e no mundo.
Eles estão convictos na
empreitada de impedir que todo o conjunto de ideias, filosofias e movimentos
sociais e políticos que defendam a evolução e o aperfeiçoamento da condição
humana através da reforma social, do avanço científico e tecnológico, e de
mudanças políticas e econômicas, tenha espaço para se consolidar no território
brasileiro.
Daí a bandeira estadunidense, as sanções
tarifárias, a ingerência arbitrária em relação às decisões do Supremo Tribunal Federal
(STF) e a estigmatização de alguns de seus ministros. É, não se pode acreditar
que está tudo resolvido! Não. Não acabou! Segundo Mário de Andrade, poeta,
romancista e ensaísta brasileiro, “O passado é lição para refletir, não para
repetir”.
Assim, apesar das mudanças profundas
na historicidade não serem tarefas simples, fáceis e rápidas, ainda que
extremamente necessárias, como nesse caso, deve-se continuar empenhando todos
os esforços no sentido de realizá-las. Sobretudo,
tomando como base o alerta de José Saramago, em seu Ensaio sobre a Cegueira
(1995), quando escreveu que “A pior cegueira é a mental, que faz com que não
reconheçamos o que temos pela frente”.
Caso contrário, a repetição de
erros, mentiras e/ou dissimulações, sem análise, reflexão e criticidade, permanecerá
conduzindo as pessoas à estagnação, à confusão e ao sofrimento, na medida em
que passa a existir uma "ilusão da verdade".
E não se pode negar o fato de
que, infelizmente, para muitos (as) brasileiros (as), esse comportamento tem se
mostrado ativo na sua aversão ao desconhecido, mantendo-os (as) na sua velha
zona de conforto e status quo.
Talvez, por isso, é que “Nascer
sabendo é uma limitação porque obriga a apenas repetir e, nunca, a criar,
inovar, refazer, modificar. Quanto mais se nasce pronto, mais refém do que já
se sabe e, portanto, do passado; aprender sempre é o que mais impede que nos
tornemos prisioneiros de situações que, por serem inéditas, não saberíamos
enfrentar” (Mario Sergio Cortella - filósofo, escritor e professor brasileiro).
1 Divino,
maravilhoso (1969) / Compositores: Gilberto Gil / Caetano Veloso - https://www.youtube.com/watch?v=Emu4JrrfpM0