Dois
pesos e duas medidas à luz de uma retumbante vergonha
Por
Alessandra Leles Rocha
Se engana quem acredita que as
linguagens estão sob o domínio absoluto da razão. Por mais que elas expressem
uma função cognitiva essencial para o pensamento, a expressão de emoções ou a
comunicação social, pelo fato de serem meio através do qual o inconsciente se
expressa, elas permitem a análise e o acesso aos conteúdos ocultos que afetam a
psique e o comportamento humano.
Desse modo, a ideia de “dois
pesos e duas medidas” para explicar a prática da aplicação de critérios de
julgamento diferentes para situações ou pessoas semelhantes, resultando em
injustiça, desonestidade e inconsistência, na verdade, não acaba em si mesma. Afinal,
a linguagem atua como uma ponte entre o consciente e o inconsciente, trazendo à
tona, através da fala, aquilo que pode ser compreendido e transformado,
permitindo que conteúdos ocultos se tornem acessíveis para análise e resolução.
Bem, colocando reparo na vida,
como sugeriu José Saramago 1, nos
deparamos com a maneira com a qual o cotidiano se mostra atravessado, de
diferentes formas, pela hipocrisia, pela contradição, pela falsidade, pela dissimulação,
para tentar se ajustar e caber nos protocolos de pertencimento e sobrevivência social.
Nesse sentido, a historicidade brasileira tem muito a nos dizer e ensinar.
Sim, porque nesses pouco mais de
500 anos, certas práxis comportamentais não mudaram, por aqui. O Brasil
permanece sim, marcado por uma sociedade hierarquizada, patriarcal, simpatizante
do trabalho análogo à escravidão e ao racismo, extremamente desigual, com a concentração
de poder e recursos nas mãos das classes dominantes; bem como, sob forte influência
das religiões cristãs.
Dentro desse contexto, a
hipocrisia existente nas elites coloniais brasileiras continuou existindo
através da discrepância entre os valores professados; sobretudo, o
conservadorismo, e as práticas reais, pelo uso da corrupção para o lucro, a
exploração de mão de obra, o abuso de poder e a manutenção de privilégios
sociais e econômicos.
Algo que consolidou a manutenção
de um sistema de dominação que explora, oprime e marginaliza grande parte da
população, enquanto as elites buscam o enriquecimento a qualquer custo e a
perpetuação de seus interesses.
Entretanto, é importante
destacar, também, o fato de que a lei brasileira sempre demonstrou um
tratamento desigual, punindo mais severamente os pequenos contraventores do que
os criminosos de "colarinho branco", segundo farto registro na
sua historicidade. O que não é difícil entender!
Ora, para manter esse quadro
social, ao longo dos séculos, as classes dominantes vêm trabalhando de forma
corporativista a fim de promover a manutenção de suas regalias, privilégios,
interesses e poderes. Além disso, a formação do judiciário brasileiro remonta à
época colonial, o que significa que seus representantes sempre estiveram
ligados às elites, inclusive, as metropolitanas.
Portanto, até o início do século
XIX, quando foram criadas as primeiras faculdades de Direito, no país, os
futuros bacharéis, juízes e promotores eram formados no exterior, principalmente,
em Portugal. Portanto, somente os filhos de famílias abastadas tinham acesso ao
ensino superior.
Em pleno século XXI, embora essa
realidade tenha mudado e a acessibilidade ao ensino universitário, nos mais
diversos campos do conhecimento, esteja em curso, quem permanece ocupando os
principais espaços da Justiça nacional são, na maioria, indivíduos oriundos das
classes dominantes.
O que explica porque não causa estranhamento,
quando a justiça é operada de maneira flagrantemente assimétrica, por conta do status
quo do cidadão. Trata-se de uma reafirmação do tal corporativismo social, o
que o torna eticamente questionável.
Assim, traduzindo em miúdos, o
judiciário brasileiro quando se permite dar voz ao seu ranço colonial, ou seja,
às suas crenças, valores, princípios e convicções absolutamente retrógradas, ele
admite publicamente à sua total disposição em ratificar a sua satisfação em
garantir todos os privilégios, regalias, interesses e poderes das classes
dominantes.
Bem como, demonstra a sua total
incapacidade de conhecer a fundo as demandas que recortam a diversidade e a
pluralidade social brasileira, por se manter ensimesmado na sua bolha pessoal. O
que não só o descreve como membro de um sistema social que privilegia as elites
em detrimento do restante da população, como faz questão de manifestar uma
atitude de quem se considera superior por pertencer a esse grupo.
Então, nesses momentos, não posso
deixar de compartilhar com Rui Barbosa, político, jurista, diplomata e escritor
brasileiro, o conforto da mesma utopia: “Saudade da justiça imparcial,
exata, precisa. Que estava ao lado da direita, da esquerda, centro ou fundos.
Porque o que faz a justiça é o ‘ser justo’. Tão simples e tão banal. Tão puro.
Saudade da justiça pura, imaculada. Aquela que não olha a quem nem o rabo de
ninguém. A que não olha o bolso também. Que tanto faz quem dá mais, pode mais,
fala mais. Saudade da justiça capaz”.
1 “Se
podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Epígrafe do livro "Ensaio sobre a
cegueira" (1995), citando o "Livro dos Conselhos" de El-Rei D.
Duarte.