quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Dois pesos e duas medidas à luz de uma retumbante vergonha


Dois pesos e duas medidas à luz de uma retumbante vergonha

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Se engana quem acredita que as linguagens estão sob o domínio absoluto da razão. Por mais que elas expressem uma função cognitiva essencial para o pensamento, a expressão de emoções ou a comunicação social, pelo fato de serem meio através do qual o inconsciente se expressa, elas permitem a análise e o acesso aos conteúdos ocultos que afetam a psique e o comportamento humano.

Desse modo, a ideia de “dois pesos e duas medidas” para explicar a prática da aplicação de critérios de julgamento diferentes para situações ou pessoas semelhantes, resultando em injustiça, desonestidade e inconsistência, na verdade, não acaba em si mesma. Afinal, a linguagem atua como uma ponte entre o consciente e o inconsciente, trazendo à tona, através da fala, aquilo que pode ser compreendido e transformado, permitindo que conteúdos ocultos se tornem acessíveis para análise e resolução.

Bem, colocando reparo na vida, como sugeriu José Saramago 1, nos deparamos com a maneira com a qual o cotidiano se mostra atravessado, de diferentes formas, pela hipocrisia, pela contradição, pela falsidade, pela dissimulação, para tentar se ajustar e caber nos protocolos de pertencimento e sobrevivência social. Nesse sentido, a historicidade brasileira tem muito a nos dizer e ensinar.

Sim, porque nesses pouco mais de 500 anos, certas práxis comportamentais não mudaram, por aqui. O Brasil permanece sim, marcado por uma sociedade hierarquizada, patriarcal, simpatizante do trabalho análogo à escravidão e ao racismo, extremamente desigual, com a concentração de poder e recursos nas mãos das classes dominantes; bem como, sob forte influência das religiões cristãs.

Dentro desse contexto, a hipocrisia existente nas elites coloniais brasileiras continuou existindo através da discrepância entre os valores professados; sobretudo, o conservadorismo, e as práticas reais, pelo uso da corrupção para o lucro, a exploração de mão de obra, o abuso de poder e a manutenção de privilégios sociais e econômicos.

Algo que consolidou a manutenção de um sistema de dominação que explora, oprime e marginaliza grande parte da população, enquanto as elites buscam o enriquecimento a qualquer custo e a perpetuação de seus interesses.

Entretanto, é importante destacar, também, o fato de que a lei brasileira sempre demonstrou um tratamento desigual, punindo mais severamente os pequenos contraventores do que os criminosos de "colarinho branco", segundo farto registro na sua historicidade. O que não é difícil entender!

Ora, para manter esse quadro social, ao longo dos séculos, as classes dominantes vêm trabalhando de forma corporativista a fim de promover a manutenção de suas regalias, privilégios, interesses e poderes. Além disso, a formação do judiciário brasileiro remonta à época colonial, o que significa que seus representantes sempre estiveram ligados às elites, inclusive, as metropolitanas. 

Portanto, até o início do século XIX, quando foram criadas as primeiras faculdades de Direito, no país, os futuros bacharéis, juízes e promotores eram formados no exterior, principalmente, em Portugal. Portanto, somente os filhos de famílias abastadas tinham acesso ao ensino superior.

Em pleno século XXI, embora essa realidade tenha mudado e a acessibilidade ao ensino universitário, nos mais diversos campos do conhecimento, esteja em curso, quem permanece ocupando os principais espaços da Justiça nacional são, na maioria, indivíduos oriundos das classes dominantes.

O que explica porque não causa estranhamento, quando a justiça é operada de maneira flagrantemente assimétrica, por conta do status quo do cidadão. Trata-se de uma reafirmação do tal corporativismo social, o que o torna eticamente questionável.

Assim, traduzindo em miúdos, o judiciário brasileiro quando se permite dar voz ao seu ranço colonial, ou seja, às suas crenças, valores, princípios e convicções absolutamente retrógradas, ele admite publicamente à sua total disposição em ratificar a sua satisfação em garantir todos os privilégios, regalias, interesses e poderes das classes dominantes.

Bem como, demonstra a sua total incapacidade de conhecer a fundo as demandas que recortam a diversidade e a pluralidade social brasileira, por se manter ensimesmado na sua bolha pessoal. O que não só o descreve como membro de um sistema social que privilegia as elites em detrimento do restante da população, como faz questão de manifestar uma atitude de quem se considera superior por pertencer a esse grupo.

Então, nesses momentos, não posso deixar de compartilhar com Rui Barbosa, político, jurista, diplomata e escritor brasileiro, o conforto da mesma utopia: “Saudade da justiça imparcial, exata, precisa. Que estava ao lado da direita, da esquerda, centro ou fundos. Porque o que faz a justiça é o ‘ser justo’. Tão simples e tão banal. Tão puro. Saudade da justiça pura, imaculada. Aquela que não olha a quem nem o rabo de ninguém. A que não olha o bolso também. Que tanto faz quem dá mais, pode mais, fala mais. Saudade da justiça capaz”.



1 “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Epígrafe do livro "Ensaio sobre a cegueira" (1995), citando o "Livro dos Conselhos" de El-Rei D. Duarte.