segunda-feira, 11 de novembro de 2024

O essencial e o supérfluo

O essencial e o supérfluo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Dois pesos e um milhão de medidas. Essa é a receita rançosa que os descendentes diretos da herança colonial brasileira empregam, quando almejam defender seu conjunto histórico de regalias e privilégios. Haja vista a proposta do corte de gastos, pelo governo federal, sob imensa pressão de representantes e simpatizantes da direita nacional e de seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas.

Para essa gente, o que importa é o topo da pirâmide social. O resto é, literalmente, resto. E esse é um pensamento velho e roto! Na história do mundo, as camadas mais frágeis e vulneráveis das sociedades sempre foram alvo preferencial da sanha econômica das elites dominantes. Figurando à beira da indignidade, como os verdadeiros pagadores de impostos.

Não é à toa que, um belo dia, viu-se acontecer a primeira revolução popular da história, a Revolução Francesa! O limite da espoliação social culminou na insurreição popular. A desigualdade social afrontou a tirania dos poderosos. De repente, a liberdade, a igualdade e a fraternidade invadiram as ruas de Paris, no século XVIII, para jamais serem esquecidas.

E mesmo, com todos os esforços da Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, na Inglaterra, para silenciar os arroubos populares pela Europa, o precedente havia sido aberto. A discussão, a reflexão, a crítica, sobre as relações sociais estavam postas para sempre. Um lampejo de visibilidade havia sido ofertado às camadas populares. Desde esse momento, então, a luta contra as desigualdades sociais vem sendo travada, mundo afora.

No Brasil, com sua historicidade colonial muito bem marcada, não poderia ser diferente. O modelo social não foi alterado a partir da ruptura da condição de ex-colônia de exploração portuguesa. Os herdeiros diretos da monarquia e da burguesia permaneceram repetindo os mesmos valores, crenças, princípios e protocolos, presentes entre os séculos XVI e XIX. O que significa que as camadas populares permaneceram alijadas dos seus direitos humanos e cidadãos.

De modo que é dessa conjuntura que emerge o ódio da direita nacional e de seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas, contra a esquerda. Que ultrapassa as fronteiras e limites das divergências ideológicas para alcançar um desejo incontrolável de banimento social de determinados indivíduos. Algo que se materializa pelas atitudes contínuas de reafirmação da necropolítica 1, no país. Relembrando a sabedoria poética de Chico Buarque, “Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir / A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir / Por me deixar respirar, por me deixar existir / Deus lhe pague ...” 2.

Então, quando se tenta inviabilizar um governo de esquerda, tomando como alvo o enrijecimento dos seus recursos econômicos, segundo os parâmetros e perspectivas impostos pelas forças direitistas, se estabelece uma inviabilização dos projetos de políticas públicas. De maneira simplista, o tensionamento impositivo para cortes de gastos profundos, sob pretexto de equilíbrio fiscal do país, não passa, na verdade, de uma camada da necropolítica.

Afinal de contas, quando observados os detalhes e as entrelinhas desses cortes, ficam evidentes todos os tipos de desigualdade. As camadas mais frágeis e vulneráveis irão pagar pelo ônus dos seus prejuízos sociais, na medida em que suas históricas demandas e mazelas permanecerão à margem de qualquer solução concreta e efetiva. Demonstrando como os cortes de gastos governamentais têm sim, um caráter de impedir qualquer melhoria que possa desencadear esperança de uma futura mobilidade social.  

Além disso, atingir as políticas públicas através de cortes orçamentários profundos representa uma maneira sutil de esgarçá-las até o ponto de se chegar a um discurso justificante para privatizar questões de suma importância social.  Saúde. Educação. Segurança. ... Levando à uma precarização total da dignidade humana e, por consequência, inevitável, do país.  

Infelizmente, não é de se espantar que as políticas públicas sejam entendidas como gastos. Porque a história política e social brasileira foi constituída invisibilizando parcelas inteiras da população. Os direitos, os poderes, as regalias e os privilégios eram de propriedade exclusiva das elites nacionais, dos donos dos meios de produção, das oligarquias. Como uma herança que se transmitiu de geração em geração até os dias atuais.

Mas, observando com total atenção a realidade contemporânea, fico me questionando quanto ao estrabismo intelectual dessas pessoas, ao não perceberem que o engessamento econômico que estão impondo, tão severamente, pode ruir, não pelas demandas populares; mas, pela força impetuosa dos agentes imponderáveis que rondam o planeta. Suas certezas podem virar fumaça, de uma hora para outra, à revelia de suas vontades e quereres.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Mais um capítulo da história estadunidense

Mais um capítulo da história estadunidense

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, o mundo não acabou! A Terra continua girando na imensidão azul! É preciso recapitular o óbvio, quando milhares de pessoas estão exercitando sua futurologia apocalíptica a respeito do resultado das eleições nos EUA.

Sim, porque apesar de fatos e informações fornecidas pelo próprio vencedor, entre o discurso e a prática existe um espaço de incertezas que não pode ser jamais desconsiderado. Essa lacuna misteriosa faz toda a diferença para o curso da história!

Nem mesmo a grande potência global está isenta das conjunturas e do imponderável. O poder não manda e desmanda, como acredita ser possível. Tudo esbarra em limites, os quais nem sempre são contornáveis ou intransponíveis.

A cadeia de acontecimentos, que rege a dinâmica cotidiana, carrega em si uma cota de desdobramentos inimagináveis. Afinal, a vida não é um script muito bem definido e linear. Por mais que se planeje, se organize, de repente, tudo foge ao controle e o resultado não é o esperado.   

Ora, o mundo não é só os EUA. Cada nação está travando suas próprias batalhas contemporâneas, que já se mostram bastante desafiadoras e complexas. De modo que são os resultados dessas equações enigmáticas que fazem mover as engrenagens da geopolítica global.

Por mais individualista, ou narcísico, ou egoísta, que se mostre um país, na mesa de negociações o pragmatismo da governança se impõe.  Interesses nacionais e estratégicos se priorizam frente aos interesses egóicos dos governantes.

Haja vista a recente história brasileira, no seu recorte entre 2019 e 2022. Anos difíceis, concordo! No entanto, vamos e convenhamos, nada foi exatamente como haviam planejado.  Os planos infalíveis falharam!

Toda a ardilosa tecitura da ultradireita nacional, respaldada pelo forte apelo da legalidade do verniz jurídico, começou a se esfacelar diante de milhões de olhos estupefatos. Atos e figuras foram desnudos, trazendo à tona verdades bastante indigestas e inconvenientes.

E o entorpecimento gerado pelo delírio de poder, esgarçou qualquer vestígio remanescente da ética e da moral, pelos corredores da República.  Simplesmente, meteram os pés pelas mãos, de uma maneira constrangedora.

Sim, porque apesar da dimensão dos delitos cometidos, a covardia não lhes permitiu assumi-los. Tentaram ganhar tempo, conclamando uma insurreição abjeta, com o intuito de transformar o absurdo em verdade conveniente e colar os caquinhos do seu projeto de (des) governança, para permanecer no poder.

Mas, no fim das contas, as linhas tortas da história os levaram a ficar próximos de acertar a fatura, de seus gestos e atitudes reprováveis, com a Justiça brasileira.  Não adiantou o teatro autoritário, a verborragia, a bravata, o menosprezo ao país, enfim ...

Uma prova de que ganhar não representa o ponto final. A vida segue, caro (a) leitor (a)! O tempo não para de correr! De modo que as perspectivas do poder não são absolutas. Muito pelo contrário! Elas são totalmente relativas.

Portanto, não há, de fato, a mínima necessidade de se aborrecer ou se amedrontar pelo amanhã. Reside nas conjecturas uma toxicidade que é muito perigosa, porque ela nos afeta diretamente a razão, na medida em que cria uma ansiedade exacerbada sobre algo que, talvez, possa acontecer.

Veja, é preciso admitir que a vida não assinou qualquer compromisso em ser exatamente, segundo as nossas idealizações e projeções. Por mais que tenhamos bons argumentos para defendê-las, a vida não se sujeita às determinações alheias. Ela é livre, autônoma, imprevisível, incerta. Tudo pode acontecer. Tudo pode mudar.

Portanto, cabe aos viventes um dia de cada vez e a dedicação em atentar-se ao que está bem diante do nariz, ou seja, “Estamos a avançar rapidamente rumo a uma tempestade perfeita, desencadeada por um excessivo consumo de energia, excessivo crescimento populacional e escassez de alimentos e de água que não poupará ninguém, sejam ricos ou pobres” (Parag Khanna – Como governar o mundo, 2011).

É sobre isso que a raça humana deveria realmente se preocupar. Afinal, “Não podemos mudar o passado; podemos ter arrependimentos, remorsos, lembranças de momentos felizes. O futuro, pelo contrário, é incerteza, desejo, inquietude, espaço aberto, talvez destino. Podemos vivê-lo, escolhê-lo, porque ainda não existe; nele tudo é possível ... O tempo não é uma linha com duas direções iguais: é uma seta, com extremidades diferentes” (Carlo Rovelli – A ordem do tempo, 2017).