terça-feira, 26 de março de 2024

A precificação da desobediência jurídica


A precificação da desobediência jurídica

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Diante de recentes acontecimentos, dois exemplos chamaram a atenção de como o poder capital tem precificado a desobediência jurídica, no sentido de uma flexibilização tendenciosa do cumprimento das decisões dos tribunais.

Após condenação por estupro, jogador de futebol brasileiro pagou fiança de 1 milhão de euros para aguardar em liberdade os trâmites dos recursos impetrados junto à justiça espanhola.

Mesmo com decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, barrando o evento no Teatro Municipal, em homenagem a ex-primeira dama do país, com imposição de multa a um eventual descumprimento, a Prefeitura da capital paulistana não desistiu de realizá-lo.

Há quem não veja gravidade nessas situações; mas, há. Quando o dinheiro é colocado a serviço de uma manipulação enviesada do ordenamento jurídico, no contexto de uma flagrante afronta à Justiça, isso representa sim, um acirramento da desigualdade, uma ruptura com o princípio da igualdade e da equidade social.

Trata-se de uma maneira de precificar o delito, o crime, a infração. Aquele que pode pagar, que dispõe de poder capital suficiente para arcar com determinado custo, é beneficiado de certas regalias e privilégios. Como se lhe fosse dado um aval para infringir a lei.

Isso não só transmite uma ideia de impunidade aos que detém o poder capital, como banaliza o delito, o crime, a infração, construindo um movimento de insegurança jurídica, na medida em que possibilita divergências e tendenciosidades na interpretação do ordenamento legal. Diante de diversos pesos e medidas, a lei se perde no resguardo do direito, mediante o peso do poder capital.   

Acontece que isso, de certa forma, desnuda uma verdade histórica. A velha máxima de uma justiça cega, que advém necessariamente desse modelo. É preciso olhar com atenção, e isenção, para entender que a justiça é constituída e estruturada por um padrão social elitista, por um grupo restrito e privilegiado de pessoas.

De modo que sua aplicação, ao longo de séculos e séculos, nunca foi homogênea. Houve sempre um protecionismo, uma parcialidade, um partidarismo, nos cursos processuais e decisórios. O que significa um trato assimétrico à população.

Não é uma questão de instância, ou de foro. Desde o início dos trâmites legais já se percebe a desigualdade e, por consequência, o conjunto de impossibilidades que tendem a marcar o desenrolar do processo. Afinal de contas, as marcas do poder capital não deixam dúvidas como os seres humanos são, ainda, em pleno século XXI, tratados na base do “vale quanto pesa”.  

O que explica essa epidemia contemporânea de superioridade que se alastra, cada vez mais desumana, por todo o planeta. Parece existir um temor tão grande, tão exacerbado, por parte dos grupos sociais dominantes, quanto a perder suas regalias e privilégios históricos ou conquistados em razão da sua imersão em classes emergentes, que eles não se constrangem em usar o artifício do poder capital para moldar a justiça, segundo seus interesses.

Precificar o delito, o crime, a infração, é, então, uma manifestação de caráter narcísico.  Um modo de reafirmar uma liberdade que não encontra limites ou obstáculos, de nenhuma natureza. Que amplifica a sensação de poder absoluto sobre o mundo. Que não se importa em se despir da dignidade cidadã e humana. Em suma, uma ruptura completa com os valores éticos e morais, mais fundamentais. Como quem manda às favas, todos os escrúpulos!

Como disse Mario Sergio Cortella, “É necessário cuidar da ética para não anestesiarmos a nossa consciência e começarmos a achar que tudo é normal”. Sobretudo, nesse país, em que o ranço colonial ainda permite que o poder capital estabeleça, em torno de uns e outros, uma aura de respeitabilidade e de reverência, a qual os absolve, de antemão, de quaisquer delitos, crimes ou infrações que tenham cometido. Infelizmente, construindo uma legião de indivíduos impunes e acima de qualquer suspeita.  

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