segunda-feira, 4 de março de 2024

A atemporalidade da estereotipização feminina


A atemporalidade da estereotipização feminina

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Diante da citação de Gilberto Freyre, “A civilização do açúcar teve suas santas; suas mulheres, grandes sofredoras, que humilhadas, repugnadas, maltratadas, criaram filhos numerosos, às vezes os seus e os das outras mulheres mais felizes que elas; cuidaram das feridas dos escravos; dos negros velhos; dos moradores doentes dos engenhos. (...) Teve as suas Dona Mariazinhas, Donas Francisquinhas, Donas Mariquinhas que desde meninas, desde a Primeira Comunhão, não fizeram senão cuidar dos maridos, dos filhos, dos escravos, dos santos” (Nordeste, 1937), foi impossível não traçar uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade brasileira.

Para uns e outros pode não parecer; mas, essa citação é totalmente atemporal. Ainda que propicie um olhar bastante atrelado à gênese colonial brasileira, no mais profundo de sua essência, essa não é uma imagem idealizada da mulher; mas, um retrato de como ela aparece no imaginário coletivo nacional.

Sim, “a bela, recatada e do lar” é a marca impressa no DNA feminino brasileiro, apesar de todas as idas e vindas do tempo em transformação. Afinal, foi essa a construção histórica dessa figura tão importante.

Você pode virar daqui mexer dali trazer à tona todos os avanços e conquistas femininas ao longo dos séculos; mas, palavras como santas, sofredoras, humilhadas, repugnadas, maltratadas, cuidadoras, permanecem compondo as mais recentes contextualizações sobre as mulheres brasileiras.

Talvez, não ditas tão explicitamente; mas, muito bem subentendidas nas entrelinhas dos registros sociais. Especialmente, daqueles em que elas aparecem como vítimas frequentes das violências; sobretudo, as contemporâneas.

Ora, não é fácil de desconstruir ideias tão arraigadas quanto aquelas que permeiam a objetificação feminina. Por mais lamentável que seja, mulheres ainda permanecem, de um jeito ou de outro, figurando sob o estereótipo de propriedade dos homens, em um universo onde eles mandam e desmandam, queiramos ou não admitir.

Apesar dos anos de escolaridade a mais, das sucessivas demonstrações de competências e habilidades profissionais diversas, basta um senão qualquer para que sejam abruptamente desqualificadas, invisibilizadas, marginalizadas.

Pois, ainda que o mundo contemporâneo saiba que não pode renunciar aos talentos, a força, a capacidade produtiva feminina, soa desconfortável e indigesta a ideia de trazê-las a um patamar de equidade e igualdade social efetivamente real.

Aliás, a impressão que se tem é de que muitos gostariam de usufruir dos resultados da participação social feminina; mas, tendo absoluto controle e vigilância sobre o seu modo de desempenho das funções. Algo do tipo, voe; mas, não tão alto, não tão livre!

De modo que, por mais obstinadas a tecer uma realidade diferente para suas vidas, muitas acabam rendidas diante dos obstáculos presentes em seu caminho.  Aliás, vale ressaltar que não são quaisquer embaraços.

Do ponto de vista objetivo ou subjetivo há um rol significativo de impedimentos, muito bem alicerçados por discursos conservadores historicamente estabelecidos. E são eles os grandes promotores de uma realidade extenuante para a maioria das mulheres.

Vai dizer que é fácil equilibrar os pratos de uma rotina multitarefas? É difícil cuidar da casa, dos filhos, do marido, da profissão, da beleza, da saúde, dos compromissos sociais, 24 horas por dia, 365 ou 366 dias ao ano. Então, ela acaba doente do corpo, da mente, da alma, porque é levada ao limite da sua capacidade humana.

Porque não basta administrar todas essas questões. Por trás delas existe um protocolo velado, imposto pela sociedade, o que eleva o sarrafo desse desempenho. De um jeito ou de outro a cobrança social chega.

É como se houvesse milhares de julgadores à espreita, observando a dinâmica do cotidiano e apontando notas e comentários a respeito, sem dó e nem piedade. Algo de uma desumanidade, sem tamanho! Que mina os esforços, a autoestima, a dignidade da mulher. Afinal, ela acredita que não pode errar, falhar, adoecer, faltar com todas as suas obrigações.

De fato, houve um tempo em que esse tribunal inquisidor acontecia apenas no campo doméstico. Porém, mais do que atender às transformações sociais do mundo, as mulheres foram alçadas ao exterior de suas casas pelas pressões das demandas socioeconômicas, e aí a inquisição pegou fogo de verdade!

Diante de tantas rotinas a serem cumpridas, muitas vezes, sem quaisquer redes de apoio, as mulheres contemporâneas vêm sendo, cada vez mais, soterradas por uma realidade asfixiante.

Nesse sentido, é preciso entender que nas entrelinhas desse nível atroz de exigências está o fato de elas permanecerem presas a esse estereótipo objetificante imposto pela sociedade, o que retira delas a sua humanidade.

Ora, objetos não sentem, não cansam, não reclamam, não ficam doentes, não questionam, ... Então, é exatamente isso o que a sociedade espera das mulheres. Que elas aceitem a sua “sina”, o seu “destino”, como fizeram as Dona Mariazinhas, Donas Francisquinhas, Donas Mariquinhas e todas as gerações de mulheres que as sucederam. Como se isso fosse legítimo, aceitável, natural.

Quando penso sobre essa desumanização, de pronto, me lembro do filme O Sorriso de Mona Lisa 1, de 2003, que trata exatamente desse tema. Ambientado na Wellesley College, uma das mais tradicionais escolas norte-americanas, onde as melhores e mais brilhantes jovens mulheres, na década de 1950, recebiam uma dispendiosa educação, para se transformarem em cultas esposas e responsáveis mães; até que, uma professora faz com que suas alunas assumam suas identidades culturais, como seres sociais e históricos.  

Vejam só, décadas vêm e vão e a desumanização objetificante das mulheres permanece intocada. Mudam-se as personagens, os cenários; mas, os roteiros, os diálogos, são os mesmos, infelizmente. Bom, isso significa que as dores, os sofrimentos, as humilhações, os maus tratos e as marginalizações, continuam reverberando sem indicativo de fim.

E nenhum ser humano merece viver dessa maneira. Ninguém merece ser desqualificado e obrigado a se submeter a um conjunto de indignidades ferinas e cruéis, porque está condenado a viver à margem, despido do próprio protagonismo.  

É por essas e por outras que Coco Chanel fazia a seguinte pergunta: “Não importa o lugar de onde você vem. O que importa é quem é você! E quem você é? Você sabe?”; afinal, “Para ser insubstituível, você precisa ser diferente”.

É nos detalhes, tantas vezes sutis, que se constrói a verdadeira validação de quem somos, o que significa que “A pessoa mais qualificada para liderar não é a pessoa fisicamente mais forte. É a mais inteligente, a mais culta, a mais criativa, a mais inovadora. E não existem hormônios para esses atributos” (Chimamanda Ngozi Adichie).

Lembrar disso é muito importante; pois, “A linguagem é o repositório de nossos preconceitos, de nossas crenças, de nossos pressupostos” (Chimamanda Ngozi Adichie). Portanto, já passou da hora de rompermos com essa tóxica retroalimentação de ideias desumanizantes.  

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