quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Mude a perspectiva e ajude a mudar o mundo


Mude a perspectiva e ajude a mudar o mundo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É uma pena que a realidade contemporânea venha conseguindo subverter a lógica das prioridades pela força bruta da alienação que estabelece desimportâncias. Algo essencial para refletir, porque afeta diretamente a sobrevivência humana em diferentes formas e conteúdos.

Bem, não é de hoje que essas questões me desconfortam. Graduada em Ciências Biológicas e com Mestrado em Geografia, eu dediquei a minha formação acadêmica a entender a gigantesca teia que envolve a discussão sobre os resíduos sólidos.

E se muita coisa mudou positivamente, no período de 2003 para cá, outro tanto se arrasta lentamente na trilha resistente do negacionismo socioambiental. Embora muito se propague, em termos de reduzir, reutilizar e reciclar, o inconsciente coletivo da chamada sociedade de consumo permanece refratária a outras propostas tão importantes ao processo, tais como repensar, recusar, reparar e reintegrar.

Pois é... é por essas e por outras que nos deparamos, por exemplo, com a seguinte situação: “Brasil tem mais de 21 milhões de pessoas que não têm o que comer todos os dias e 70,3 milhões em insegurança alimentar, diz ONU. No mundo, são 735 milhões de pessoas passando fome e 2,3 bilhões em situação de insegurança alimentar” 1.

Muitos podem se ater aos números, mas o mais importante nesse caso é entender a dinâmica do processo que constitui esse cenário. Especialmente, quando se olha para o Brasil, com sua potente dimensão geográfica e vasta produção agropecuária de exportação, e se estabelece uma ideia estereotipada que, de certa forma, invisibiliza a existência de quaisquer problemas.

Bem, o país é majoritariamente um celeiro exportador de commodities agrícolas – soja, trigo, milho, café, laranja, açúcar, algodão, carne –, ou seja, dedica as suas vastas extensões de terra aos produtos primários comercializados “in natura” ou com baixo teor de industrialização.

De modo que não importa a origem (nacionalidade) da commodity, o preço é cotado pelo mercado internacional, segundo a lei da oferta e da procura, extremamente influenciada por fatores como os eventos climáticos, macroeconômicos e geopolíticos.

Assim, o restante dos alimentos que compõem a mesa dos brasileiros deriva das cooperativas de pequenos produtores. E tanto no caso das commodities quanto dos demais alimentos, diversas razões influenciam na perda qualitativa e quantitativa dos mesmos, interferindo diretamente no valor de comercialização.

Considerando o fato de serem alimentos perecíveis, aspectos como o manuseio incorreto, condições de embalagem inadequadas, ineficiência no transporte e no armazenamento, aquisição excessiva por parte dos centros de distribuição e comercialização, falta de critério do consumidor e descarte indevido, se mostram não só como os principais causadores de desperdício alimentar; mas, da geração ininterrupta de resíduos sólidos orgânicos.

E aí, concentrando apenas na questão do descarte indevido, ele acontece muitas vezes, não porque o alimento está fora da data de validade ou apresenta-se com aspecto contaminado por bolor ou insetos; mas, por não se alinhar a um padrão de perfeição.

Só que não para, por aí, há também um preconceito institucionalizado em relação à xepa, ou seja, os alimentos perecíveis vendidos na feira, ao final das atividades, por um preço menor. Uma opção para muitas pessoas que não têm como pagar o preço normal. Acontece que a xepa atrela o preço a produtos imperfeitos e, às vezes, de qualidade questionável.

E como a contemporaneidade instituiu que a raça humana exigisse de tudo e de todos uma perfeição absoluta, como se isso fosse possível, toneladas e toneladas de alimentos que poderiam ser consumidos são descartados diariamente, numa realidade que ostenta milhões de seres humanos passando fome.

Aliás, não raras às vezes, acredito que essa busca alucinada pela perfeição é só um estratagema para encobrir as mais terríveis imperfeições humanas, um jeito equivocado de desviar o foco. Mas, deixando a digressão de lado, voltemos aos alimentos feios ou imperfeitos. Acontece que a aparência do alimento fora do tido padrão convencional não tem quaisquer implicações quanto ao seu valor nutricional ou sabor 2.

Daí a necessidade de trazer esse assunto à baila. Não apenas pela imposição da sazonalidade para muitos; mas, porque os eventos extremos do clima vêm impactando severamente o setor agrícola e pecuário, dificultando a manutenção quantitativa e qualitativa dos alimentos, o que acaba resultando em elevação dos preços.

Queiram ou não admitir, o fato é que a intensidade com a qual as mudanças climáticas vêm se operacionalizando tende sim, a aumentar a ocorrência de pragas e doenças nas plantações, aumentar as concentrações de dióxido de carbono (CO) na atmosfera contribuindo para fenômenos de seca grave ou inundações, sem contar na redução de proteínas e conteúdo nutricional em alguns alimentos.

Se hoje o mundo assiste a um quadro de fome mediante a existência de alimentos, pode ser que, em pouco tempo, a fome seja pela mais absoluta ausência de alimentos. Portanto, podemos dizer que essa é uma discussão, sob diferentes aspectos, ética. A fartura criou no ser humano um modo de se relacionar com os alimentos muito deturpado, daí o imenso desperdício. Acontece que o cenário mudou e as conjunturas exigem uma ruptura com velhos paradigmas e uma reconstrução de valores, de princípios.

Por isso, caro (a) leitor (a) lembre-se das palavras de São Basilio, “Pertence aquele que tem fome o pão que tu guardas; àquele que está nu a capa que tu conservas nos teus guarda-vestidos; àquele que está descalço, os sapatos que apodrecem em tua casa; ao pobre o dinheiro que tu tens guardado. Assim tu cometes tantas injustiças quantas as pessoas às quais poderias dar”.

Porque uma citação como essa nos remete exatamente ao tipo de gente que ilustra os valores, os princípios e as convicções da sociedade contemporânea; sem, no entanto, sustentar garantias suficientes para sobreviver ao futuro que se vislumbra no horizonte.

Como dizia José Saramago, em seu Ensaio sobre a Cegueira (1995), “A pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos pela frente” e, dessa maneira, “Estamos a destruir o planeta e o egoísmo de cada geração não se preocupa em perguntar como é que vão viver os que virão depois. A única coisa que importa é o triunfo do agora. É a isto que eu chamo a cegueira da razão”.



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