quarta-feira, 1 de março de 2023

Trabalho análogo à escravidão


Trabalho análogo à escravidão

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não entendo a razão da perplexidade, quando a questão gira em torno se o nosso olhar indiferente é fruto genuíno da nossa insensibilidade humana ou abstenção induzida pelas conjunturas sociais. Fato é que, a cada relato de trabalho análogo à escravidão, no Brasil, não deveria haver surpresa dada a abjeta herança colonial que o país, através das vertentes políticas da direita, faz questão de reafirmar cada vez mais.

Na verdade, o que pede fundamentalmente o momento atual não é somente agir juridicamente em relação ao fato em si, ou seja, dos casos apurados de trabalho análogo à escravidão 1; mas, de depurar as camadas discursivas que vieram à tona a respeito. Porque as palavras dizem muito, enquanto forças motrizes para a perpetuação e a legitimação de tais comportamentos sociais.

Inclusive me chamou muita atenção a diferença marcante de postura entre os governadores da Bahia e do Rio Grande do Sul, no recente episódio das vinícolas brasileiras2. Enquanto, o primeiro foi às redes sociais manifestar repúdio as declarações proferidas contra os trabalhadores e levantar a voz em sua defesa, tendo em vista de que em sua maioria eram trabalhadores baianos e nordestinos 3, o segundo não buscou desculpar-se, publicamente, com nenhum daqueles submetidos aos atos deploráveis praticados no seu estado, limitando-se a dizer que tomaria medidas de caráter administrativo e fiscalizatório sobre o assunto 4.

O que evidencia, no Brasil, a diferença de tratamento entre os cidadãos. Como se houvesse no país uma linha demarcando quem pertence à primeira classe e quem pertence à última classe, ou seja, quem é importante e merece tratamento digno e respeitoso, e quem não é. Acontece que essa visão resultou do sistema colonial que vigorou no país desde a sua descoberta em 1500, ou seja, o Brasil da casa grande e da senzala, sem mobilidade social e todo o poder e capital nas mãos de uma elite.

E isso é algo tão sério, que depois de declarada a abolição da escravatura, no século XIX, sem sequer cogitar a ideia de assalariar os escravos para que continuassem suas atividades nos grandes latifúndios, a elite brasileira decidiu, além de reafirmar o seu ideário eurocêntrico no país, buscar mão de obra imigrante assalariada na Europa, que naquela ocasião enfrentava o desemprego decorrente da Revolução Industrial.

Com a promessa de toda a viagem paga e acomodação, o acordo previa que os trabalhadores saldassem essas dívidas com o trabalho e feito isso participariam dos lucros da plantação. Para muitos deles, a ideia de eventualmente conseguirem recursos para comprar seu próprio pedaço de terra e produzir, era tentadora. No entanto, muitos dos empregadores, acostumados com a exploração dos escravos, tornaram as condições de trabalho totalmente desvantajosas para os imigrantes, enredando-os em tramas de endividamento impagável que acabaram gerando total descontentamento entre eles.

Assim, só depois da intervenção do governo brasileiro sobre essa situação é que se estabeleceu o sistema de colonato e a imigração no país se consolidou de maneira importante e bem-sucedida. Afinal, nenhum indivíduo pode ser submetido à trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes, proibição no seu direito de ir e vir, e/ou endividamento com o empregador ou seu preposto. Uma consciência que o tempo fez manifestar formalmente na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), na Constituição Federal (1988) e outras legislações a respeito.

Contudo, em razão da expansão da direita e de seus matizes, mais ou menos radicais, que representam justamente as sucessivas gerações descendentes desse Brasil Colônia escravocrata, embora estejamos em pleno século XXI, vemos deixarem cair as máscaras de suas mais repugnantes crenças, valores e convicções. A cada novo caso descoberto de trabalho análogo à escravidão, pelas equipes do Ministério do Trabalho e Previdência, percebe-se o movimento contemporâneo de separação do joio e do trigo, na sociedade brasileira. Afinal, lidar com as ameaças e os perigos que se escondem nas sombras e na dissimulação das aparências é sempre muito mais desafiador do que lidar com a verdade nua e crua.

O pensamento dessa elite e de uma parte expressiva da sociedade brasileira, impregnada e manipulada ideologicamente por ela, agora, não resta mais dúvidas. Há racismo, no Brasil. Mas, há também xenofobia, aporofobia, misoginia, sexismo, homo e transfobia, etarismo, gordofobia, capacitismo. Porque a segregação, o banimento, fazem parte da história nacional como ferramentas de garantia das regalias e dos privilégios de certos cidadãos. Assim, basta que essa parcela dominadora da sociedade brasileira decida a respeito, para que a beligerância gratuita e feroz afete alguns de seus concidadãos de maneira brutal e perversa.  

Temos de prestar bastante atenção ao que revela à contemporaneidade, em relação ao trabalho análogo à escravidão. Afinal, como escreveu George Bernard Shaw, “A escravatura humana atingiu o seu ponto culminante na nossa época sob a forma do trabalho livremente assalariado”. Sim, porque a precarização do trabalho é um dos vieses desse prisma.

Enquanto as elites globais apelam para os números do desemprego para argumentar que é preciso socorrer e atender às demandas dessas camadas, fragilizadas pelas conjunturas socioeconômicas, o que fazem, na verdade, é submetê-las conscientemente à precarização trabalhista amparadas pela lógica de que “os fins justificam os meios”. Assim, da precarização para a consolidação do trabalho análogo à escravidão é um piscar de olhos.



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