quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Sobre esportes. Sobre torcedores. Sobre cidadãos.


Sobre esportes. Sobre torcedores. Sobre cidadãos.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Muito importante e oportuno o seminário de combate ao racismo e violência promovido pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF)1. É a parcela de contribuição da entidade dentro de uma discussão tão significativa para o mundo.  

No entanto, é preciso entender que o futebol é só uma gota no oceano desportivo e que a percepção e o entendimento do torcedor também precisam passar por uma profunda desconstrução e ressignificação.

Nem é preciso dizer que o esporte, como um todo, representa uma camada do cotidiano. Portanto, ele também reflete a dinâmica das mesmas relações e das interações sociais do dia a dia.

Acontece que, dada a naturalização das práticas de racismo e de violência, esse processo acaba alcançando a seara desportiva e silenciando a contundência das respostas e das ações de desagravo.

Como se tudo pudesse caber no simplismo de que “é assim mesmo”. Mas, não é. De onde nos chega, por exemplo, essa aceitação em não ver uma representatividade plural em tantos esportes? De onde nos chega essa aceitação em relação ao desrespeito a dignidade humana, hein?

Não se trata apenas de um viés elitista, no campo de uma inacessibilidade econômica que limita a prática desse ou daquele esporte para milhões de pessoas. Esse é só um aspecto importante a ser considerado e transformado.

Algo que não se vê como pauta de debate político, quando deveria ser. Afinal, basta uma observação superficial das grandes potências desportivas mundiais para se perceber que o esporte nesses lugares é parte integrante e integrada da formação educacional, desde a infância mais precoce.

De modo que em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, onde a ausência de priorização de investimentos para a Educação é uma realidade rotineira, a impossibilidade de criar uma infraestrutura para o esporte capaz de furar a bolha e permitir o acesso ao maior número de práticas, é uma consequência inevitável para o enviesamento desportivo.

Isso significa que as escolas deixam de ser verdadeiros celeiros de descoberta e formação de promissores atletas, por conta da fragilidade das políticas públicas destinadas tanto à Educação quanto ao Esporte.

Afinal, esse tipo de filosofia cidadã envolve um planejamento multidisciplinar muito mais robusto e um empenho de recursos financeiros bem planejado. O que, para muitos países, como é o caso do Brasil, um custo tido como desnecessário e que não se pretende arcar.

E isso implica diretamente na junção entre a formação educacional e a formação desportiva, que perpassa pela saúde e bem-estar dos alunos, pela segurança alimentar deles, pelo acesso à água potável e ao saneamento básico, pela disponibilidade de vestuário adequado para as atividades, enfim...

De modo que apesar de algo extremamente básico e elementar, como se vê, ainda sofre com a pecha de futilidade, por parte de muitos governantes.

Uma das consequências dessa inação, dessa negligência governamental voluntária, é o surgimento de episódios de sucesso pontuais, emergidos de projetos independentes, frutos do idealismo de certos profissionais da educação, que lutam sozinhos contra o sistema para colocar suas ideias em prática.

Daí a dificuldade de ampliar a oferta de esportes para os alunos, na medida em que os desafios logísticos e burocráticos, muitas vezes, ultrapassam a capacidade econômica das iniciativas ou da própria escola. Basta imaginar piscinas, quadras, campos, pistas, aparelhos de ginástica olímpica, tatames, ... em cada escola brasileira!

Além disso, em relação aos esportes de alto rendimento, por exemplo, considerando-se o alto nível de profissionalização, não se pode fechar os olhos para o fato de que a falta de representatividade advém, muitas vezes, da construção de uma padronização social estabelecida não só a partir do histórico desse ou daquele esporte; mas, principalmente, pelos patrocinadores que almejam constituir uma imagem para os seus produtos.

O que não torna difícil perceber como certos esportes carregam, há tempos, um perfil étnico-racial predominante. Mais recentemente, alguns indivíduos vêm desconstruindo essa realidade e se afirmando de maneira relevante e significativa a fim de romper com certos paradigmas e acenar com novas possibilidades.

Porém, enquanto tudo isso ainda é um movimento incipiente, os episódios de racismo e violência contra atletas, treinadores e comissões técnicas permanece acontecendo sob o silêncio de muitos torcedores, que se esquecem de que são, antes de tudo, cidadãos.

Ora, não se pode esperar que as ações afirmativas precisem ser deflagradas pelo Estado! O combate às discriminações, intolerâncias e violências étnico-raciais, religiosas, de gênero ou de status social, deve partir de todos aqueles que reconheçam o insulto constrangedor que esse tipo de comportamento promove para o coletivo social.

Todo e qualquer tipo de discriminação, intolerância e violência, quando realizado, estabelece uma associação identitária imediata ao país, criando uma homogeneização ao pensamento populacional. Como se todos comungassem e aceitassem esse comportamento. Como se ele representasse, de fato, a todos os cidadãos e torcedores. Só que não.

Daí a necessidade da discussão, da reflexão, das proposições para transformação. O que adiantam os esforços contra as mais diferentes formas de doping, no que diz respeito a performance dos atletas, se por outras formas e conteúdos se permite macular a igualdade e a equidade entre eles?

Essa é a grande pergunta a se fazer! O mundo à beira de um ataque de nervos é reflexo justamente das tensões deflagradas pela desigualdade e iniquidade que reverberam em cada canto, em cada situação, da mais simples a mais complexa.

E o esporte é um formador de opiniões muito importante. O seu potencial de alcance é gigantesco. Haja vista como os Jogos Olímpicos e Paralímpicos, as Copas do Mundo de Futebol, os torneios de Grand Slam do tênis, os grandes torneios de Vôlei (Liga das Nações, Copa do Mundo e Mundial), a NBA (National Basketball Association) e tantos outros eventos desportivos capturam a atenção de milhões de pessoas ao redor do planeta, enquanto cultivam sonhos, esperanças e projetos.

Por isso, o esporte, na sua inteireza, precisa chancelar esse movimento de metamorfose social. Precisa mostrar que a inovação não se dá somente na técnica, nas regras, nos equipamentos; mas, sobretudo, na ideologia que nutre os indivíduos.

Não adiantam todos os avanços científicos e tecnológicos impulsionando o esporte se as personagens principais, atletas e torcedores, não evoluírem enquanto cidadãos, enquanto seres humanos. A luta antirracista e antiviolência precisa ser o produto mais difundido pelo marketing esportivo.

Porque é a partir dela que se cria a possibilidade de tornar os espaços de convivência desportiva um lugar que caiba verdadeiramente a diversidade e a pluralidade em harmonia, ou seja, onde respeitar aproxima ao invés de afastar e coloca as escolhas e as preferências individuais no devido lugar da racionalidade consciente.

Então, sob essa bandeira, quem sabe a humanidade não possa começar a entender que adversários não são inimigos. Que ali nas arenas, nas piscinas, nos campos, nas quadras, a geopolítica que se conhece se extingue pela batuta de uma única regra para todos os competidores.  

Ora, as diferenças não precisam ser resolvidas pela beligerância de um conflito ou de uma guerra. Derrotas e vitórias fazem parte da vida e alegram na mesma proporção que ensinam. E dentro de cada uniforme bate um coração tão humano quanto o de qualquer outro indivíduo e, por isso, merece a mesma dignidade que você. ...

E aí, se nada disso for suficiente de primeira, joga-se de novo. Afinal, a “persistência pode transformar fracassos em incríveis conquistas” (Matt Biondi – nadador olímpico norte-americano, vencedor de 11 medalhas).

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