Temos
que recordar os Direitos das Crianças e dos Adolescentes·
Por
Alessandra Leles Rocha
A violência e o abuso sexual
contra crianças e adolescentes são práxis antigas no Brasil. Mas, engana-se quem
pensa que este é um mal restrito às camadas menos privilegiadas da população. Infelizmente,
não. O que muda é a maneira como a própria sociedade enxerga e lida com o problema.
É cansativo me repetir; mas, tornou-se
cada vez mais necessário. O Brasil de origem colonial é fundamentalmente controlado,
ainda hoje, em pleno século XXI, pelas correntes conservadoras da direita e
seus matizes.
Esse é o grupo que detém os
poderes econômico, político e social no país. São eles, então, que ditam as
regras do jogo, na base do “dois pesos e
duas medidas”. De modo que toda e qualquer mazela social, por aqui, é
tratada segundo o viés da própria desigualdade, com requintes, muitas vezes, de
uma hipocrisia abjeta.
Nesse contexto, as camadas mais vulneráveis
e desassistidas da população acabam sendo culpabilizadas, várias vezes, pelos
infortúnios e adversidades que lhes cruzam o caminho, à revelia da sua própria responsabilidade.
Enquanto aqueles que fazem parte
do topo da pirâmide social não só tratam o assunto como um desajuste de
percurso, um lamentável incidente, um azar, como o resolvem à boca pequena, a
fim de manter as aparências da sua pseudossuperioridade.
Acontece que esse é apenas um dos
lados desse prisma que envolve o direito à vida. Porque essa é uma questão que
não cabe dois ou mais lados, dois ou mais pontos de vista, duas ou mais
posições distintas. Vida é um todo indivisível. Não é simplesmente deixar
nascer ou deixar morrer.
Vida é um percurso biológico a
ser cumprido sob o amparo da dignidade e do respeito ao ser humano. O que torna
necessário, antes de tudo, o provimento de uma assistência integral que permita
ao indivíduo usufruir de maneira satisfatória e plena os seus direitos sociais 1.
Portanto, o X da questão a se
questionar é: o brasileiro, sem distinção de qualquer natureza, tem seu direito
à vida assegurado, respeitado? Só para refrescar a memória, nesse exato
instante há mais de 33 milhões de pessoas passando fome no país.
Isso sem contar os desempregados,
os que estão morando nas ruas, os vulnerabilizados pelas doenças físicas e
mentais, os usuários de drogas lícitas e ilícitas, enfim. E não há atentado
maior contra à vida humana do que esse, em que se permite uma vida marcada pela
indignidade, pelo sofrimento, pela privação da própria sobrevivência.
Mas, na outra ponta dessa
história, há também os bem-nascidos, bem-criados, bem nutridos, bem... cujo
desafio, talvez, seja lidar com a fluidez contemporânea que arrasta as
correntes do individualismo, do narcisismo, do consumismo, que ameaçam o equilíbrio
e a estabilidade da vida a todo instante.
Não é à toa que, segundo dados da
Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), “Cerca
de 800 mil pessoas morrem por suicídio todos os anos. Trata-se da segunda
principal causa de morte entre jovens com idade entre 15 e 29 anos. E 79% dos suicídios
no mundo ocorrem em países de baixa e média renda” 2.
Portanto, as ameaças contra a
vida humana não pertencem a um estrato social específico. Elas decorrem de uma miscelânea
de componentes que vão desde os psicocomportamentais até os sociais. A maneira
como a sociedade brasileira vem reagindo aos episódios de violência e de abuso
sexual contra crianças e adolescentes, então, não parece representar uma defesa
à vida; mas, uma rasa e inconsistente oposição a prática de interrupção da
gestação.
A maneira com a qual o assunto
vem sendo abordado faz parecer que há um movimento social imbuído em
transformar a prática de interrupção da gestação em método contraceptivo,
quando não é isso. A lei brasileira é bastante clara e só permite tal prática
nas seguintes situações: para salvar a vida da gestante, em caso de anencefalia
do feto ou de estupro.
E olhando, com olhos de ver, a
verdade é que há um fenômeno crescente de episódios de violência e de abuso
sexual no país; sobretudo, em relação as crianças e adolescentes, de tal forma
que os casos de estupro que culminam em gestação precisam ser amparados
adequadamente.
A desatenção e a negligência a
esse problema podem resultar sim, em um desafio para a saúde pública, na medida
em que a desassistência do Estado e as repercussões ideologizadas dentro do
contexto da opinião pública conduzem a situações extremas de risco para essas crianças
e adolescentes.
Isso significa que a prática de
interrupção da gestação passa a acontecer fora de ambientes médico-hospitalares,
sem a observância criteriosa das medidas de higiene, sem acompanhamento psicológico,
sem assistência e amparo social. À mercê da própria sorte.
Em casos extremos, quando o medo
ou a vergonha de muitas famílias domina o controle das ações e obriga a
manutenção da gestação pela criança ou adolescente, os problemas decorrentes
podem ser ainda mais desafiadores, pois se trata de um movimento de reafirmação
da violência sofrida.
A gestação não é um processo
meramente corpóreo, de transformação estritamente física, ela é também emocional
e comportamental. Assim, a infância e a
juventude ao serem sumariamente ceifadas pelas imposições das obrigações e deveres
intrínsecos à maternidade, moldam um indivíduo com importantes desajustamentos
sociais.
Não nos esqueçamos de que a vida
humana importa. Mas, ela não é autossuficiente o bastante para resistir e
sobreviver à sombra do acaso. O que adianta trazer uma vida ao mundo e
impor-lhe os rigores e a crueldade das desigualdades?
Qualquer indivíduo para nascer,
crescer, se reproduzir e morrer precisará de meios suficientes para fazê-lo,
como explicam os estudos sobre expectativa de vida 3.
Precisa de paz, de afeto, de cuidado, de proteção, ... elementos que nem sempre
estão disponíveis e acessíveis a todos.
Temos que pensar que a omissão e
a negligência em relação a violência e o abuso sexual contra crianças e
adolescentes podem acabar se legitimando, porque obstaculiza, na maioria dos
casos, o afastamento entre as vítimas e seus algozes.
Portanto, o que temos visto em
relação ao trato da prática de interrupção da gestação é só mais um viés da necropolítica
elitista e conservadora, nada mais. No fim das contas, é como escreveu Luis
Fernando Veríssimo, “É ‘de esquerda’ ser
a favor do aborto e contra a pena de morte, enquanto direitistas defendem o
direito do feto à vida, porque é sagrada, e o direito do Estado de matá-lo se
ele der errado”.
1
CF de 1988, art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância,
a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.