Manda
quem pode. Obedece quem tem juízo. ...
Por
Alessandra Leles Rocha
Na verdade, não se trata
necessariamente de seguir o antigo provérbio espanhol “quando você ver as barbas do seu vizinho pegar fogo, ponha as suas de
molho”. Não, é bem mais profundo do que isso. É perceber como as peças do
tabuleiro da vida estão se movendo e sendo capazes de desconstruir as regras do
jogo.
E o exemplo mais contundente a
esse respeito é a investigação do Comitê do Congresso norte-americano a
respeito da invasão ao Capitólio, em janeiro de 2021 1.
Afinal, esta foi a maior afronta já assistida pelos norte-americanos e pelo
mundo à Democracia contemporânea. Pela força e pela barbárie um coletivo de cidadãos
tentou mudar a história das eleições presidenciais nos EUA.
Cada dia mais, exemplos daqui e
dali nos dão conta da incapacidade do ser humano em aceitar as normas e
diretrizes coletivas. A noção de limite, de respeito, de ordem, se perdeu no
caos do gigantismo narcísico individualista que toma conta do mundo.
As pessoas estão afeitas a se
colocarem constantemente na priorização das suas vontades e quereres em
detrimento do que seja estabelecido pela manifestação democrática da maioria.
Como se cada um precisasse agir,
de qualquer forma e a qualquer preço, para garantir a defesa de seus interesses
particulares. Como se tivéssemos desaprendido a lógica básica do ganhar e
perder. Todos só querem ganhar. E buscam pretextos diversos para se manterem
inebriados por essa sensação. Porque ganhar implica em experenciar um extremo
prazer.
Portanto, não é o bom senso o que
comanda esse movimento. Não está na capacidade analítica, crítica e/ou
reflexiva a tomada de decisão e posicionamento. Aliás, chego a pensar que eles
não têm a menor ideia do porquê estão agindo dessa ou daquela maneira. Trata-se
de algo instintivo, impulsivo, desorientado, que só busca o resultado final
expresso no que entendem como vitória.
Isso significa que não é apenas a
Democracia que se encontra ameaçada por essa situação. São todos os pilares que
vieram sendo milenarmente erguidos para a manutenção do equilíbrio da convivência
e coexistência social que estão em iminente perigo.
São as leis, os códigos, as
doutrinas, os conhecimentos, que estão sendo sumariamente confrontados e
desafiados pela exacerbação do individualismo nas expressões mais absurdas dos
pseudopoderes.
Não é uma questão de rever
conceitos, de quebrar paradigmas obsoletos, de arejar o pensamento, de alinhar
as ideias ao movimento natural da própria sociedade. O que se vê é a destruição
daquilo que serve e que não serve mais para a humanidade, em estado genuinamente
bruto, sem qualquer sinal de ponderação. Há um imediatismo pulsando essa efervescência.
Entretanto, é preciso dizer que
os regentes desse processo não são pessoas que se rebelaram ao longo do tempo,
depois de sentirem o amargor das injustiças, das desigualdades, das opressões
e/ou das omissões.
Na verdade, toda essa tensão
desestabilizadora chega pelas mãos de quem sempre esteve no topo da pirâmide social
e que ainda consegue exercer influência, controle e poder sobre o mundo. Aqueles
que têm o poder do e sobre o capital.
De certa forma, como sempre
esteve a cargo deles a construção e a deliberação das regras do jogo, eles se
sentem perfeitamente confortáveis em mudar tudo, da noite para o dia, à revelia
dos demais.
Acostumados com o mundo se
curvando às suas alterações de humor e de interesses, eles não se constrangem
ou se intimidam em impor, até com certa violência, os seus pontos de vista e
desejos.
O que não se pode esquecer é de
que gente assim, com esse perfil, se encontra em todo canto do mundo. Desse modo,
quando menos se espera, a continuar nessa sanha, eles acabarão digladiando
entre si por espaços sociais e geográficos cada vez maiores.
O que significa que a deflagração
de conflitos pode se decompor em uma beligerância descomunal e fora de
controle. Cada um dispondo das armas mais potentes e destruidoras que se possa
imaginar. Desdobramentos, consequências, repercussões, nada disso compõe o
vocabulário dessas pessoas.
Desde que os seus interesses
particulares estejam sendo satisfeitos, nada mais importa. Razão pela qual elas
primam pela insistência, pela persistência, pela guerra de nervos que estabelecem
até conseguir os seus propósitos. Quem não se lembra da Teoria do Direito
Divino dos Reis 2, durante o Absolutismo? O
que se vê na contemporaneidade faz jus ao passado.
Pois é, a história é mesmo cíclica.
Mudam-se os cenários, as personagens, as figurações; mas, os roteiros mantêm a
sua essência, porque tudo não passa da representação da eterna desigualdade socioeconômica,
na qual os mais abastados precisam sempre reafirmar as suas posições sociais.
Precisam deixar bem claro quem manda e quem obedece. E aí está um ponto chave
para se pensar.
Afinal, dentro desse contexto, é
possível encontrar pessoas aplaudindo e referendando os discursos, as
narrativas e as ações desses mandatários. E por que isso acontece? O inconsciente
coletivo da humanidade está impregnado pela subserviência, pela obediência. Ele
aprendeu a viver das migalhas, das promessas, das esperanças.
Por isso não é difícil construir legiões
de asseclas. Gente que passa uma vida esperando pela vez de protagonizar, de
ser visto, de ser minimamente importante. Assim, ainda que temporariamente, se
permitem esquecer de que “quem nasceu para
tostão, nunca chega a dez réis”.
Paulo Freire já dizia que “A educação não transforma o mundo. Educação
muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo”. Portanto, temos que nos
reeducar, reaprender a ler o mundo nas suas linhas e entrelinhas. Parar com a
preguiça de pensar e deixar a trivialização, a banalização, a normalização,
tomarem conta do nosso pensamento. Precisamos questionar a vida até a última
gota.
Temos nos satisfeito com as
respostas que nos convêm. Temos nos solidarizado diante da rudeza da vida,
segundo as convicções de uns e outros, não as nossas. Temos sido parciais onde
só caberia a imparcialidade. Temos emitido opiniões sem qualquer condição de
estabelecer juízo de valor a respeito. ... E assim, prestamos “voluntariamente” o serviço que esperam
aqueles que se consideram os donos do mundo.