sexta-feira, 24 de junho de 2022

Heróis “de papel”. Pessoas “de bem”. E tantas outras reflexões contemporâneas.


Heróis “de papel”. Pessoas “de bem”. E tantas outras reflexões contemporâneas.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Basta abrir os olhos pela manhã, para que todas as certezas e as convicções se desfaçam pelo sopro do imponderável, do imprevisível. Os super-heróis e super-heroínas só existem mesmo nas páginas dos cartoons, nas histórias em quadrinhos. De resto, somos mortais, falíveis, vulneráveis, prontos para sermos vítimas das violências que andam por aí, com a nossa anuência.

Aliás, isso me faz lembrar uma canção que compôs a trilha sonora da novela “Roque Santeiro”, entre 1985/1986. “Verdades e Mentiras” 1, de Sá & Guarabyra, é um excelente ponto de partida para essa reflexão. A letra coloca cada palavra no seu devido lugar.  

Sim, porque dessa discussão indigesta, que se formou em torno de mais um episódio de violência e abuso sexual contra uma criança, é preciso tratar as “verdades” e as “mentiras” de maneira bem mais ampla e menos conservadoramente hipócrita. Afinal, esse é um caso de exercício profundo de empatia e de respeito. Não dá para analisá-lo estritamente do prisma da violência pela violência.

Apesar de não ser a raiz da questão, a Pandemia da COVID-19 desnudou a realidade da violência doméstica no Brasil. A ex-colônia que adora bradar a máxima da “Tradição, Família e Propriedade”, infelizmente, se encolhe diante do que isso significa no silêncio restrito das casas.

O poder patriarcal é uma ameaça constante aos lares brasileiros, especialmente, em relação às mulheres, desde a mais tenra idade. O poder que vigia. O poder que pune. O poder que subjuga. O poder que estabelece e institui as regras da convivência e da coexistência intra e extrafamiliar. O poder que invisibiliza as violências no espaço social.

Portanto, não é só o patriarcado do ponto de vista do pai, do chefe da família. É o patriarcado de qualquer figura masculina que exerça influência ou poder dentro de um certo grupo social. É o patriarcado que se sustenta na imagem constituída a partir de valores e princípios reconhecidamente consagrados, tais como respeito, seriedade, compromisso.  

De modo que são as correntes ideológicas extremistas e conservadoras que tecem o arcabouço de sustentação para esse processo. Por isso, se engana quem pensa, ou quer acreditar, que a violência e o abuso sexual; sobretudo, em relação às crianças e as adolescentes, seja caso restrito a Segurança.

Não. É caso de Educação, de Saúde pública, de Assistência Social, de Economia, ... Que explica e dá a devida dimensão do porquê temos que falar sobre o desmantelamento da estrutura do Estado, favorecendo abertamente ao descumprimento das obrigações constitucionais. Quando essas ideias tortas pairam no ar, o desarranjo da sociedade, no que tange ao seu desenvolvimento, progresso e bem-estar, acontece e repercute seu gigantesco prejuízo a todos. 

Coexistir e conviver sob uma atmosfera de tensão, de medo, de pavor, de insegurança, de iminência de morte, impede qualquer cidadão de ser, na inteireza da sua existência. O ser humano, simplesmente, míngua e bloqueia a expressão das suas capacidades, dos seus talentos, das suas aptidões, da sua criatividade, das suas potencialidades.

Vira fantasma de gente viva! Independentemente da idade, do gênero, da religião, do grau de instrução, do saldo bancário. Porque deixa-se de ser para apenas existir, para fazer figuração ao protagonismo alheio. De modo que não se erra ao dizer que a violência e o abuso sexual sejam vieses da escravidão humana, na medida em que ela promove a servidão, o cativeiro, o servilismo, a submissão, a obediência, a resignação.

Em suma, estamos falando da expressão mais ignóbil da objetificação humana, porque anula e destrói qualquer vestígio de humanidade daquele ser. E uma pessoa nessas condições perde o sentido da vida. Porque há um esgotamento psicoemocional tão avassalador, que os dias repercutem um movimento autômato. Não há sonhos. Não há esperança. Não há planos. Não se estabelece a possibilidade de criar e fomentar quaisquer sinais de positividade e otimismo.

Dentro desse contexto, quando a população fecha os olhos para o desmantelamento da estrutura do Estado, seja ela qual for, ela lança a sociedade ao sopro do imponderável, do imprevisível. Sim, porque quando as estruturas estão presentes e ajustadas satisfatoriamente para cumprirem seus papéis, elas trazem aos cidadãos a consciência de que eles próprios são importantes para o país.

Mas, quando ele sabe, por exemplo, que a escola mal consegue atender as demandas de ensino, que não dispõem de corpos multidisciplinares (assistentes sociais, psicólogos, terapeutas ocupacionais, nutricionistas etc.), é óbvio que o cidadão se sinta vítima de outras reproduções da violência que já o acompanha diariamente. Ele não tem um espaço para manifestar as suas dores, as suas angústias, os seus sofrimentos, e encontrar o devido suporte e amparo.

Ou quando ele sabe que no próprio Sistema Único de Saúde (SUS) irá se deparar com instituições despreparadas, sucateadas, ideologizadas, totalmente incapazes de atendê-lo nas suas demandas. A violência se reverbera com o máximo de crueldade e desprezo. Como se deu no caso do não cumprimento da lei de interrupção da gravidez em vigência no país, no caso da criança de 11 anos vítima de estupro de vulnerável. Enfim...

As marcas profundas traçadas pelas desigualdades no Brasil, não podem ser homogeneizadas ou superficializadas pela perspectiva de correntes conservadoras, extremistas e desumanas, como vêm se intensificando. Porque esses discursos e narrativas necropolíticos arruínam o país não só do ponto de vista imagético, no campo das relações exteriores; mas, do ponto de vista prático do desenvolvimento socioeconômico.

Ainda que os números contabilizados pelas estatísticas oficiais sejam aterrorizantes, a verdade é que eles são a ponta de um iceberg de milhares de subnotificações 2. Portanto, as tentativas de negação e/ou de invisibilização desse movimento nefasto, que corrói o país, são inócuas.

A realidade terrível que se abate sobre nós não deixa de existir porque fechamos os olhos, os ouvidos e a boca. Ela está aí, presente na diversidade e na pluralidade social brasileira. Aliás, essa fúria, essa violência, ela é sim, bastante democrática. O que muda o seu trato, a sua percepção, é o grau de exposição do comportamento manifesto dentro dos estratos sociais.

"Pessoas “de bem” não agem assim. Pessoas “de bem” não exercem esse egoísmo tão explicitamente abjeto. Pessoas “de bem” não roubam, não matam, não tratam com indignidade e desrespeito seres humanos. Pessoas “de bem” não precisam se definir dessa maneira; afinal, “O bem não significa simplesmente não fazer o mal, mas antes não desejar fazer o mal” (Demócrito – filósofo Pré-Socrático da Grécia Antiga).

Por isso, quando se deparar com pessoas “de bem”, lembre-se de que para estabelecer qualquer diálogo “Você nunca precisará de um argumento contra o uso da violência, você precisa de um argumento para ela” (Noam Chomsky – linguista, filósofo e sociólogo norte-americano); caso contrário, entre vocês se estabelecerá o mais absoluto silêncio.

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