A
maternidade além do calendário
Por
Alessandra Leles Rocha
A que ponto chegamos! Quando o
ser humano precisa de uma data no calendário para se dar conta da importância do
afeto, do carinho, do amor, da gratidão, ... que sente por alguém importante e
especial, é sinal de que algo não vai tão bem quanto parece.
Estamos próximos de mais uma
dessas comemorações. Amanhã é celebrado, no Brasil, o Dia das Mães. Mas, ao
contrário de alegria, esse momento me traz uma profunda reflexão. Afinal, a
Pandemia da COVID-19 lançou luz sobre a vida, de um modo geral; mas,
particularmente, sobre as relações humanas, o que incluiu o nosso modo de ver e
compreender a maternidade.
Infelizmente, o tempo levou uma
reverência, quase poética, que existia em relação às Mães. Era como se o mundo
orbitasse ao redor delas. Mães eram o esteio, a força, a coragem, a
determinação de inúmeras famílias. Cada mínima coisa acontecia sob o seu crivo,
a sua observação, a sua determinação. Existia um respeito profundo por aquela
figura, tantas vezes, um misto de seriedade e de serenidade.
Mas, de repente, o fascínio do
mundo nos inebriou, a tal ponto, que essa relação, dentro desses moldes, foi se
esgarçando, foi se perdendo. Na medida em que os seres humanos foram descobrindo
e conquistando novos papéis na sociedade, o que lhes exigiu uma transformação no
modo de ser, de existir e de conviver. O que de certa forma fez perder muito da
sensibilidade, para adquirir o pragmatismo da razão.
Embora, não tenha sido tão de
repente assim, esse movimento trouxe um rearranjo para a organização familiar,
possibilitando para as mulheres a conquista de novos espaços e atribuições em
razão, sobretudo, da imposição das necessidades econômicas.
Pois é, chegou-se a um tempo em
que foi imposto para as mães a árdua tarefa de sacrificar a convivência intensa
do lar, para contribuir no orçamento familiar, desdobrando-se em muitas
jornadas e compromissos.
Num piscar de olhos, toda aquela
aura que envolvia as mães desapareceu, como se tivessem despencado de um
pedestal, onde eram incontestavelmente reverenciadas e respeitadas, para
desfrutarem de uma posição menos simbólica e muito mais humana.
Ora, e como qualquer ser humano
podiam ser questionadas, contestadas, confrontadas ..., ou seja, sentindo na própria
pele o ônus das aventuras e das desventuras desse novo modelo de vida.
O problema é que essa
transformação não ficou restrita da porta para fora de suas casas, ela acabou
invadindo o último recanto de segurança daquele ideal de maternidade. Uma pena,
mas não dava para ser diferente! Não dava para dissociar os papéis sociais e colocá-los
em arquivos separados. Tudo se misturava. Tudo se interconectava.
Até que, o peso descomunal de um
sexismo histórico emergiu como a gota d’água para a intensificação de todo um
conjunto de violências – física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. Desse
modo, o desrespeito à figura feminina legitimou o desrespeito à figura materna.
As mães passaram, então, a não dispor
mais de um refúgio de paz e segurança. Afinal, antes de serem mães elas eram
mulheres, elas estavam presas a uma hierarquia social de controle do poder
pelos homens, a qual eles nunca cogitaram perder ou sequer compartilhar
efetivamente.
E ainda que as leis não as coloquem
mais na condição de propriedade da família ou de seus maridos ou companheiros,
no inconsciente coletivo essa compreensão ganhou novos vieses, especialmente,
pela desigualdade econômica.
A explosão do número de casos de
feminicídio comprova isso. Muitas das vezes, ele decorre de aspectos econômicos.
A independência ou a dependência financeira da mulher são apontados como motivos
de violência e morte, na maioria dos casos.
Então, o que dizer do Dia das
Mães? Será que a data consegue encobrir tantas feridas abertas existentes na
sociedade? Fico pensando nas milhares de mães assassinadas de maneira brutal e
covarde por seus maridos, namorados ou companheiros, muitas vezes, diante dos próprios
filhos. Na orfandade de legiões de crianças e adolescentes e no iminente risco
que elas têm de reproduzir essas situações no futuro.
Fico pensando nas milhares de
mães submetidas a todo tipo de indignidade cidadã que lhes impede de desfrutar
da maternidade com toda a paz e a segurança que merecem.
Fico pensando nas milhares de
mães que assistem impossibilitadas de quaisquer reações a morte dos seus filhos,
pela maldade e pela perversidade social existente.
Fico pensando nas mães que
abdicam de si mesmas para devotar suas horas e minutos a uma atenção incessante
aos filhos doentes e/ou hospitalizados.
Fico pensando nas milhares de mães
da guerra, diante dos filhos em perigo, mortos ou feridos. ... Fico pensando nas
milhares de mães ...
Por tudo isso é que eu não creio
que uma data no calendário, ou que almoços ou jantares festivos, ou que
presentes e cartões, sejam exatamente o que as mães do mundo gostariam de
receber.
Vinte e quatro horas me parecem
insuficientes para anestesiar ou invisibilizar os outros 364 dias de luta, de sacrifício,
de dificuldades, de violências materializadas ou subjetivas, a que elas são
expostas à sua revelia.
De modo que seria bem mais digno
e proveitoso se começássemos pelo respeito a elas. Algo básico. Fundamental. Se
as olhássemos com o desejo verdadeiro de enxergá-las na beleza da humanidade que
reside no fundo de suas retinas.
Se as abraçássemos muito além dos
corpos; mas, com a alma, exalando o calor que brota das batidas do coração. Se sentássemos
ao seu lado com a mais plena disposição de ouvir, de conversar, de trocar
ideias, de gargalhar, de aspergir gotas de felicidade. Se nos colocássemos na
posição de cuidá-las, aconchegá-las, fosse nas mais simples ou complexas
situações da vida. ...
Não é porque o mundo, de uma hora
para outra, resolveu se embrutecer, se radicalizar, se desumanizar, que a
figura materna deixou de ser o que é. Certas coisas, nessa vida, o tempo nem
ninguém consegue mudar. Elas são o que são. E a maternidade é uma delas.
Por isso, é, no mínimo, contraditório
defender a vida, desrespeitando de maneira tão aviltantemente absurda as mães. Não
se chega a esse mundo sem elas, nem tampouco, se sobrevive a ele sem elas. Se você
defende a vida, defenda as mães, defenda as mulheres. Todas. Sem exceção. Tenho
certeza de que esse é o verdadeiro presente que elas anseiam receber, todos os
dias.