Destruir
o HD???
Por
Alessandra Leles Rocha
A notícia de que o Senado
Federal, em cumprimento a uma decisão expedida por um dos Ministros do Supremo
Tribunal Federal (STF), vai destruir o HD contendo todas as informações da
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a COVID-19 1,
dá bem a dimensão de como o país lida com a sua história.
Haja vista as recorrentes
tentativas de tornar nebuloso e confuso os recortes mais importantes da
história brasileira como, por exemplo, o período entre 1964 a 1985 ou o recente
processo de impeachment da primeira presidenta do Brasil.
Invisibilizar. Dissimular.
Mascarar. Esconder. Negar. Destruir. São essas as únicas palavras que conseguem
estabelecer a razão para que movimentos dessa natureza, com certa frequência,
aconteçam por aqui. No entanto, não precisa ser nenhum gênio para entender que
se trata de algo totalmente inócuo. A história não deixa de existir por conta
desses movimentos.
Afinal, a história é feita por
gente. Seres humanos. Cidadãos. Cujas experiências se alinhavam sob a forma de
um gigantesco coletivo de informações. Basta ver como se mantiveram, até hoje,
as memórias da Segunda Guerra pelos remanescentes do Holocausto através do seu
total empenho em relatar de geração em geração as suas experiências.
Além disso, a história se
dissemina feito rastilho de pólvora. Veículos de informação e comunicação
encontram-se presentes, também, como testemunhas oculares dos acontecimentos,
ao redor do planeta. Onde há fatos a serem registrados, lá estão eles.
De modo que os documentos
decorrentes de seus trabalhos permanecem nos arquivos ao redor do mundo, tanto nos
acervos públicos quanto privados. Há, portanto, uma impossibilidade real de
invisibilizar, dissimular, mascarar, esconder, negar, destruir o que existe no
campo da materialidade.
Além disso, a materialidade é só
um lado da moeda. Não nos esqueçamos de que a vida é a história e a história é
a vida. E ambas são atravessadas também pelo imaterial e subjetivo, traduzido
em lembranças, em memórias, em sentimentos, em emoções.
O que significa que não é pelo
exercício de invisibilizar, ou de dissimular, ou de mascarar, ou de esconder,
ou de negar, ou de destruir, que se consegue tornar possível passá-las a limpo
ou recontá-las de uma outra maneira.
O único jeito que existe para não
precisar fazer uso desses recursos seria buscando escrevê-las com o mínimo
possível de desacertos, de vergonhas, de absurdos, de atrocidades, que mancham
definitivamente a sua reputação.
Portanto, me parece claro que
está no temor em admitir os próprios erros e fracassos o que leva certas
pessoas a buscar tais subterfúgios para tentar aplacar a consciência. Contudo,
não precisa ser nenhum gênio para entender que isso é, também, algo totalmente
inócuo.
A história tem essa
peculiaridade, ela assombra silenciosamente. Sem contarmos a existência de uma
subestimação de dados estatísticos, em torno da própria Pandemia da COVID-19,
como já afirma a própria Organização Mundial de Saúde (OMS), só no Brasil já
foram mais de 660 mil mortos. E ainda que façam parte da imortalidade a sua
existência não despareceu para familiares, amigos, colegas.
Curiosamente, os mortos são
registros vivos de uma história. Como escreveu Victor Hugo, “Os mortos são uns invisíveis, e não uns
ausentes”. Eles não desaparecem da lembrança, da memória, dos sentimentos,
de seus familiares, amigos e/ou colegas, da noite para o dia, como num piscar
de olhos.
Tudo aquilo que delineou o seu
falecimento pela COVID-19, por exemplo, não será esquecido por aqueles que lhe
eram próximos, renovando através do tempo a manutenção materializada e
imaterializada dos fatos. Cada morto, cada sobrevivente, cada sequelado, é um
pedaço desse período da história.
Portanto, destruir o HD tem um
caráter simbólico muito diferente do que invisibilizar, dissimular, mascarar,
esconder, negar. Destruir o HD simboliza matar de novo a história dessas mais
de 660 mil vítimas, é reviver a agonia dos milhares de sobreviventes e de
sequelados. Destruir o HD fortalece a eternização de todas as lembranças, as
memórias, as emoções e os sentimentos experimentados pelos cidadãos. Como se as
páginas da história fossem marcadas a ferro, restando uma cicatriz feia e
profunda.
Durante muito tempo se acreditou
na fragilidade ou em uma eventual seletividade da memória brasileira, como
justificativa para agir na contramão da ética, da moral, da civilidade. Certos
aspectos da dinâmica social, de fato, davam mesmo essa legitimação.
No entanto, a experiência global
da Pandemia, nos últimos três anos foi tão avassaladora, tão impiedosa, tão
imprevisível, que não há meios dessa “caduquice”
social agir.
A começar pelo fato de que a
Pandemia ainda não acabou, que o vírus circula por aí e sofre mutações à
revelia da presença das vacinas. Que muitos países, especialmente os mais
pobres, não atingiram um mínimo sequer de imunização.
As lembranças, as memórias, os
sentimentos, as emoções ainda estão à flor da pele, muito além de quaisquer
HDs. Não é à toa que William Shakespeare escreveu, “Lembrar é fácil para quem tem memória, esquecer é difícil para que tem
coração...”; afinal de contas, “Fisicamente,
habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória”
(José Saramago).
Talvez, por isso, “Aquele que não tem memória arranja uma de papel” (Gabriel Garcia Márquez); uma que possa caber dentro dos seus interesses, das suas necessidades, do seu próprio senso de humanidade.