sexta-feira, 6 de maio de 2022

Destruir o HD???


Destruir o HD???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A notícia de que o Senado Federal, em cumprimento a uma decisão expedida por um dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), vai destruir o HD contendo todas as informações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a COVID-19 1, dá bem a dimensão de como o país lida com a sua história.

Haja vista as recorrentes tentativas de tornar nebuloso e confuso os recortes mais importantes da história brasileira como, por exemplo, o período entre 1964 a 1985 ou o recente processo de impeachment da primeira presidenta do Brasil.

Invisibilizar. Dissimular. Mascarar. Esconder. Negar. Destruir. São essas as únicas palavras que conseguem estabelecer a razão para que movimentos dessa natureza, com certa frequência, aconteçam por aqui. No entanto, não precisa ser nenhum gênio para entender que se trata de algo totalmente inócuo. A história não deixa de existir por conta desses movimentos.

Afinal, a história é feita por gente. Seres humanos. Cidadãos. Cujas experiências se alinhavam sob a forma de um gigantesco coletivo de informações. Basta ver como se mantiveram, até hoje, as memórias da Segunda Guerra pelos remanescentes do Holocausto através do seu total empenho em relatar de geração em geração as suas experiências.

Além disso, a história se dissemina feito rastilho de pólvora. Veículos de informação e comunicação encontram-se presentes, também, como testemunhas oculares dos acontecimentos, ao redor do planeta. Onde há fatos a serem registrados, lá estão eles.

De modo que os documentos decorrentes de seus trabalhos permanecem nos arquivos ao redor do mundo, tanto nos acervos públicos quanto privados. Há, portanto, uma impossibilidade real de invisibilizar, dissimular, mascarar, esconder, negar, destruir o que existe no campo da materialidade.

Além disso, a materialidade é só um lado da moeda. Não nos esqueçamos de que a vida é a história e a história é a vida. E ambas são atravessadas também pelo imaterial e subjetivo, traduzido em lembranças, em memórias, em sentimentos, em emoções.

O que significa que não é pelo exercício de invisibilizar, ou de dissimular, ou de mascarar, ou de esconder, ou de negar, ou de destruir, que se consegue tornar possível passá-las a limpo ou recontá-las de uma outra maneira.

O único jeito que existe para não precisar fazer uso desses recursos seria buscando escrevê-las com o mínimo possível de desacertos, de vergonhas, de absurdos, de atrocidades, que mancham definitivamente a sua reputação.

Portanto, me parece claro que está no temor em admitir os próprios erros e fracassos o que leva certas pessoas a buscar tais subterfúgios para tentar aplacar a consciência. Contudo, não precisa ser nenhum gênio para entender que isso é, também, algo totalmente inócuo.

A história tem essa peculiaridade, ela assombra silenciosamente. Sem contarmos a existência de uma subestimação de dados estatísticos, em torno da própria Pandemia da COVID-19, como já afirma a própria Organização Mundial de Saúde (OMS), só no Brasil já foram mais de 660 mil mortos. E ainda que façam parte da imortalidade a sua existência não despareceu para familiares, amigos, colegas.

Curiosamente, os mortos são registros vivos de uma história. Como escreveu Victor Hugo, “Os mortos são uns invisíveis, e não uns ausentes”. Eles não desaparecem da lembrança, da memória, dos sentimentos, de seus familiares, amigos e/ou colegas, da noite para o dia, como num piscar de olhos.

Tudo aquilo que delineou o seu falecimento pela COVID-19, por exemplo, não será esquecido por aqueles que lhe eram próximos, renovando através do tempo a manutenção materializada e imaterializada dos fatos. Cada morto, cada sobrevivente, cada sequelado, é um pedaço desse período da história.

Portanto, destruir o HD tem um caráter simbólico muito diferente do que invisibilizar, dissimular, mascarar, esconder, negar. Destruir o HD simboliza matar de novo a história dessas mais de 660 mil vítimas, é reviver a agonia dos milhares de sobreviventes e de sequelados. Destruir o HD fortalece a eternização de todas as lembranças, as memórias, as emoções e os sentimentos experimentados pelos cidadãos. Como se as páginas da história fossem marcadas a ferro, restando uma cicatriz feia e profunda.

Durante muito tempo se acreditou na fragilidade ou em uma eventual seletividade da memória brasileira, como justificativa para agir na contramão da ética, da moral, da civilidade. Certos aspectos da dinâmica social, de fato, davam mesmo essa legitimação.

No entanto, a experiência global da Pandemia, nos últimos três anos foi tão avassaladora, tão impiedosa, tão imprevisível, que não há meios dessa “caduquice” social agir.

A começar pelo fato de que a Pandemia ainda não acabou, que o vírus circula por aí e sofre mutações à revelia da presença das vacinas. Que muitos países, especialmente os mais pobres, não atingiram um mínimo sequer de imunização.

As lembranças, as memórias, os sentimentos, as emoções ainda estão à flor da pele, muito além de quaisquer HDs. Não é à toa que William Shakespeare escreveu, “Lembrar é fácil para quem tem memória, esquecer é difícil para que tem coração...”; afinal de contas, “Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória” (José Saramago).

Talvez, por isso, “Aquele que não tem memória arranja uma de papel” (Gabriel Garcia Márquez); uma que possa caber dentro dos seus interesses, das suas necessidades, do seu próprio senso de humanidade.  

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