sábado, 23 de abril de 2022

Só mais uma gota de hipocrisia!


Só mais uma gota de hipocrisia!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Vamos e convenhamos, há limite até para a hipocrisia! Sim, porque todo o espanto, toda a perplexidade, manifestado nos últimos dias não passa disso, hipocrisia. Sim, porque é só uma forma bastante fajuta de tentar aplacar a consciência pelo pecado da omissão, da inação, da covardia negligente. Afinal, quem nunca ouviu que “é melhor prevenir do que remediar”, hein?! Pois é.

Nunca as verdades estiveram tão às claras como na contemporaneidade. Talvez, pela ideia de que tudo é efêmero, passageiro, volátil, as pessoas perderam o pudor de dissimular, de esconder, de ofuscar o que, de fato, lhes habitava alma. Assim, perderam o freio, os modos, a compostura, e transbordaram a sua verborragia de maneira incontrolável. Só não viu e ouviu quem não quis ver e ouvir!

Sem contar, que é de a natureza humana testar os limites. Verificar até onde se é permitido e tolerável transitar nas relações sociais. Desde pequenino é assim. Então, a medida em que a permissividade flexibiliza as regras do jogo, as situações vão saindo naturalmente fora do controle. Não é à toa o alerta trazido por um outro provérbio, que diz “é de menino que se torce o pepino”!

Mas, todos querem liberdade de maneira ampla e irrestrita. Para fazer e acontecer, sem medir as consequências. Então, começam a se constranger em impor limites uns aos outros. Afinal de contas, não querem melindrar nem constranger seus pares, para não terem que provar do mesmo remédio. Vão fazendo, portanto, vista grossa para tudo e para todos. Não importa se é uma bobagem ou algo gravíssimo. O padrão definido passou a ser “lavar as mãos” para quaisquer absurdos.

Entretanto, eis o dia em que a vida cobra a fatura. Às vezes, até mesmo, com certo requinte de crueldade e escárnio. Foi o que aconteceu pelas mãos do decreto da graça concedido, há dois dias, pelo Presidente da República.

Depois de tudo que ele já disse e fez na sua longa carreira política, tal atitude só manteve a linearidade da sua própria coerência. Tomando por base os cenários configurados por suas atitudes, totalmente isentos de represálias ou punições contundentes e assertivas, ele deu continuidade ao seu repertório de distensões aos limites.

Paremos de tampar o sol com peneiras, porque ele se sente plenamente confortável com a retórica hipócrita que se manifesta diante de suas atitudes intempestivas. Tratam-se de discursos e narrativas vazias de qualquer efeito inibidor ou resolutivo, que só fazem satisfazer as manchetes midiáticas e nada mais. Ele sabe que no jogo dos interesses políticos, no fim das contas, ninguém quer se indispor, como já ficou claro até aqui.

É contemporização aqui, outra acolá. Sempre no aguardo que os ânimos esfriem e o assunto caia no esquecimento da opinião pública. Não importando os prejuízos que se avolumem para o país, em decorrência dessa total desgovernança.

Sim, porque o país está nitidamente à deriva. Padecendo de um emaranhado de crises socioeconômicas gravíssimas, sem que ninguém tome providências cabíveis a respeito. E nem se pode dizer que a inação que se vê seja produto do ano eleitoral, porque não é. Ela está presente há tempos bem anteriores à eleição desse ano. Vai ter a coragem de dizer que não?

Foi essa dinâmica toda que deixou a população à mercê do próprio azar. Sim, azar. Aliás, algo que é fruto de um excesso de confiança no que ela chama de esperteza, de malandragem; mas, que não passa de uma preguiça ignorante de assumir as responsabilidades inerentes à sua cidadania. Porque o silêncio da população referenda a inação do poder público. Não dizem por aí que “a voz do povo é a voz de Deus”, então...

O adoecimento da nossa República, da nossa Democracia, do nosso Estado de Direito, então, é o efeito cumulativo de todo tipo de hipocrisia que se tece no país. O pior disso é ter a certeza de que “As nossas maiores dissimulações são desenvolvidas não para esconder o que há de ruim e feio em nós, mas o nosso vazio. A coisa mais difícil de esconder é aquilo que não existe” (Eric Hoffer – escritor norte-americano).

O que em síntese é a inexistência de uma identidade nacional que seja verdadeiramente capaz de sustentar o nosso compromisso cidadão. Infelizmente, não conseguimos ter uma identidade que vai além do nosso individualismo selvagem. Vivemos com os olhos fixos no próprio umbigo, nos próprios interesses, o que significa que, na maior parte do tempo, “os seres humanos definem a realidade através da desgraça e do sofrimento” (Matrix) 1.

Então, quando a situação aperta, se torna insustentável, o mecanismo mais prático para lidar com a inconveniência é a hipocrisia. Dessa forma, parafraseando o escritor francês, Honoré de Balzac, os costumes acabam se tornando a hipocrisia de uma nação. A tal ponto de que, gota a gota desse veneno, vamos adoecendo rumo ao fim. 



1 Matrix (The Matrix 1999) - https://www.youtube.com/watch?v=2KnZac176Hs 

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