O melancólico
fim dos “Salvadores da Pátria” diante da contemporaneidade
Por Alessandra
Leles Rocha
Há um provérbio que diz, “há
males que vêm para o bem”! Verdade. A derrubada, pelo Congresso Nacional,
do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), ao menos em tese, deveria
expandir nossas fronteiras reflexivas. Afinal de contas, por trás de todo o
ranço colonial que vigora no país, incluindo os espaços de poder, há muito mais
a ser analisado e discutido.
Para início de conversa, cada
cidadão brasileiro deveria fazer um "mea culpa", pela teimosia
em insistir na dissociação da realidade. Ora, o tempo foi, é e sempre será
fluido, portanto, passível de sofrer inúmeras transformações e rearranjos. De modo
que a historicidade cotidiana não permanece a mesma. Não há como.
Sei que costumo tecer muitas
considerações sobre a contemporaneidade; mas, faço isso, justamente, pela importância
que esse recorte temporal vem exercendo sobre a humanidade, em diferentes
aspectos. Afinal de contas, ele começa
na Revolução Francesa (1789) e continua até os dias de hoje. De modo que
podemos percebê-lo mais concretamente em razão das grandes transformações
sociais, políticas e tecnológicas, incluindo o desenvolvimento do capitalismo, da
industrialização e da globalização.
Assim, a realidade brasileira até
o início do século XXI nem de longe é a mesma duas décadas depois. As mudanças
trazidas pela Revolução Industrial 4.0, tais como a inteligência artificial, a
internet das coisas (IoT) e a robótica na produção e em diversos setores, reformulou
as relações no mais profundo da estrutura socioeconômica.
Passamos a conviver com a ingerência
maciça das redes sociais na dinâmica cotidiana. A precarização do trabalho se
acentuou, em razão da tecnologização, ou seja, da utilização e integração tecnológica
com o propósito de otimizar processos, melhorar a eficiência e promover
inovações. Algo que resultou na aceleração do empobrecimento social; sobretudo,
pelo desaparecimento de inúmeras frentes de trabalho.
Acontece que isso não é pouco. Trata-se
de mudanças ocorridas em um curto espaço de tempo, de poucas décadas, e de
maneira brutal, não oportunizando, à uma imensa parcela da sociedade, uma preparação
ideal. Sim, fomos pegos de calças curtas! O que não é de se espantar dada a genuína
incapacidade nacional de acompanhar com atenção o que acontece no mundo, além
das suas fronteiras. Como se o modelo colonial, ainda em curso, tornasse os
assuntos presentes na realidade contemporânea desimportantes.
Mas esse descaso, essa negligência
voluntária, não deixam de marcar suas consequências. E a pior delas diz
respeito ao sentimento de incerteza, de instabilidade, em relação ao amanhã. Qualquer
um que esteja abaixo do topo da pirâmide social brasileira não tem como negar
os fatos. As próximas décadas do século XXI tendem a ser cada vez mais
desafiadoras, do ponto de vista socioeconômico, em razão das contínuas
transformações impostas pelo desenvolvimento científico e tecnológico.
Bem, e se a população brasileira
não estava preparada para a nova face da realidade contemporânea, é importante
que os gestores públicos e seus asseclas prestem bastante atenção. Para agravar,
um bocadinho mais a situação, não se pode esquecer que o mundo está
envelhecendo. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o “Número de
pessoas com mais de 65 anos deve dobrar até 2050, chegando a 1,6 bilhão;
expectativa média de vida também vem subindo; estudo do Departamento para
Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas alerta para a necessidade de
investimentos e políticas públicas para atender demandas de um mundo em
envelhecimento” 1. Portanto,
um contingente populacional que transitará à margem das futuras revoluções
industriais, já em curso.
É nesse sentido, que as
discussões em torno das desigualdades socioeconômicas, especialmente, no que
diz respeito à distribuição de renda, não é desproporcional e, nem tampouco, absurda.
Dados do Relatório Mundial Social de 2025, divulgado pelas Nações Unidas,
“revela que mais de 690 milhões de pessoas vivem atualmente em pobreza
extrema, sobrevivendo com menos de US$ 2,15 por dia. Além disso, cerca de 2,8
bilhões, mais de um terço da população mundial, vivem com rendas entre US$ 2,15
e US$ 6,85 por dia, o que as torna extremamente vulneráveis a qualquer choque
externo, como uma crise econômica ou desastre natural” 2.
E mesmo “Viver com mais de US$
6,85 por dia não garante segurança econômica. A maioria dos trabalhadores em
países de rendas baixa e média está inserida no setor informal, sem garantias
de salário justo, proteção social ou estabilidade. Em muitos casos, os
trabalhadores permanecem nesse tipo de emprego ao longo de toda vida”.
Enquanto isso, o mesmo relatório mostra
que “Desde 1990, a desigualdade de renda aumentou em muitos países,
incluindo os mais populosos do mundo, que são China e Índia. Atualmente, os
países onde a desigualdade cresceu concentram dois terços da população mundial”.
Sem contar que “os 1% mais ricos detêm mais riqueza do que 95% da
humanidade”.
Em linhas gerais, isso significa
que “A concentração de renda está diretamente ligada à instabilidade social
e à erosão da confiança pública”. Aos olhos da população economicamente
ativa (PEA), ou seja, a parcela da população de um país que tem idade para
trabalhar e está empregada ou procurando emprego, o cenário contemporâneo parece
reafirmar uma total insegurança econômica, uma desigualdade persistente e um colapso
da confiança social, principalmente, na classe política.
Daí não se poder subestimar e/ou
negligenciar o papel das redes sociais, no agravamento desse fenômeno. Apesar do
seu potencial de conexão e informação, elas também têm sido palco de
desinformação, discurso de ódio e polarização política, comprometendo não só o
exercício consciente da cidadania; mas, de uma busca coletiva para o enfrentamento
desses grandes desafios globais.
Além disso, em paralelo a todos
esses movimentos e acontecimentos, no caso brasileiro, não se pode esquecer de
analisar o papel do Legislativo Federal, a partir do início do século XXI. A mesma
postura tomada pelo Congresso Nacional, recentemente, em relação ao IOF, trouxe
prejuízos imensos à população brasileira, em inúmeras outras vezes, ao longo
desse período, e sequer foram devidamente publicizadas.
É preciso frear os impulsos em
dissociar a realidade! Gostem ou não, o Brasil está diante do melancólico fim
dos “Salvadores da Pátria”, imposto pelas conjunturas contemporâneas. Desse
modo, dissociar os fatos em nome de reduzir o desconforto, em relação a uma série
de comportamentos inconsistentes e incoerentes, sustentados por crenças e
valores distorcidos e equivocados, torna-se uma ameaça, uma verdadeira
temeridade à sobrevivência social. Não adianta
fugir, se esconder, desconversar; pois, a realidade atual exige
responsabilidade e bom senso, tanto individual quanto coletivo.