sábado, 31 de agosto de 2024

Além das chamas ...

Além das chamas ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A mancha de fogo que cobre mais de 500 km de extensão na Amazônia não diz respeito apenas ao crime ambiental. Ela fala do total desapreço que se tem à soberania nacional, na medida em que se abre precedentes, para que quaisquer indivíduos desrespeitem, de maneira flagrante, às instituições e às leis brasileiras.

Se o próprio povo não dispõe de consciência sobre a sua identidade nacional, como esperar que ele exerça a sua cidadania de maneira plena e efetiva? Por mais que a nossa historicidade explique as razões desse comportamento anômalo, penso eu, que pouco mais de 500 anos, são tempo suficiente para repensar e redefinir nosso papel enquanto agentes sociais. De modo que não há desculpas que caibam para justificar certas atitudes.  

Queimam os biomas ... Os espaços geográficos ... Mas, sobretudo, queimam a dignidade humana no cerne dos seus valores éticos e morais, quando não restam quaisquer constrangimentos e vergonhas diante da demonstração explícita da sua incivilidade.  É o Brasil mostrando o avesso do seu ser, na expressão absoluta da sua barbárie contemporânea.

Não sei se esse é o fundo do poço civilizatório nacional; mas, é um lugar profundamente desabonador. Estamos diante de uma total inversão de valores e princípios. A vida, no que diz respeito à existência humana, perdeu a sua importância em todos os sentidos. O que rege o curso da história é o poder, em todas suas formas; sobretudo, o poder capital. De modo que o ter, em detrimento do ser, se transformou em palavra de ordem.

De repente, é como se a solução de todas as mazelas estivesse nas mãos do dinheiro, ou da tecnologia, ou do poder. Só que não. A destruição dos biomas e ecossistemas, da maneira como tem ocorrido, acarretará perdas incomensuráveis e irreparáveis. Esquecem-se de que a vida, em todas as suas expressões, depende de água limpa e abundante, de ar respirável, de temperatura equilibrada, de segurança alimentar para suprir suas demandas nutricionais, ...

Acontece que para satisfazer a todas essas necessidades vitais não basta apenas ter o dinheiro. Ele não produz água limpa e abundante. Ele não produz ar respirável. Ele não equilibra a temperatura do ambiente. Ele não produz alimentos. Parece óbvio! No entanto, infelizmente, é preciso repetir essas verdades, quando se vive em um país imerso na sua herança colonial exploratória. Quando os cidadãos não conseguem se desapegar de certos paradigmas, absurdamente retrógrados e nocivos, ainda que isso custe a sua própria sobrevivência.

O que temos bem diante de nossos olhos é o instinto predador, que se manifesta nos modelos exploratórios, conduzindo os recursos naturais renováveis ao status de não renováveis, por sua brutal reincidência a colocá-los no ponto de não retorno (ou ponto de inflexão). Isso significa que os ecossistemas simplesmente ultrapassaram a sua capacidade de suportar alterações, perdendo a capacidade de reestabelecer o seu estado original. Portanto, uma ameaça real que atinge a todos os seres vivos, sem exceção.

Mas, não é só isso. Quanto mais o Brasil se permite reafirmar esse ranço colonial, mais ele estreita a sua dependência, a sua subserviência internacional, em diferentes formas e conteúdos. A destruição nos obriga, por exemplo, a buscar em outros lugares os meios de garantir o suprimento das demandas internas. Passamos a importar ao invés de exportar. Gastamos ao invés de lucrar.  Deixamos de protagonizar para sermos coadjuvantes no cenário internacional. Nos apequenamos de todas as formas possíveis e imagináveis.

E aos que colocam essa questão no rol das picuinhas político-partidárias, para afetar a imagem e o poder desse ou daquele indivíduo, lamento informar que é o país, na sua totalidade, que está sendo prejudicado. Governos vêm e vão. O país fica. E nesse ficar, ele arrasta historicamente as consequências e os desdobramentos nefastos causados pela irresponsabilidade, pela anticidadania, pela antidemocracia, pelo desapreço à soberania, expressos por certos elementos de sua população.