quarta-feira, 3 de abril de 2024

Nada é de repente


Nada é de repente

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Olhando para as imagens dos danos causados pelo terremoto de magnitude 7.4, em Taiwan, ontem 1, não se pode negar a fúria da natureza, em seus episódios cada vez mais intensos e aterrorizantes. Mas, há um aspecto que sempre me captura a atenção nesses casos, constatar a presença de grandes edifícios e arranha-céus retorcidos, como se fossem feitos de papel.

A explicação natural para o meu desconforto é, um tanto quanto, óbvia. São cada vez mais presentes, na contemporaneidade, a existência dessas edificações. O processo de verticalização urbana é só mais um dos efeitos produzidos pela revolução industrial.

Pois é, em nome do progresso, de uma melhor ocupação dos espaços geográficos, da especulação imobiliária para agregar ainda mais valor às edificações, o processo surgiu como um grande avanço para a urbanização.

Acontece que, longe de resguardar o direito e o acesso à moradia digna pela população, como um todo, a verticalização sempre atendeu às parcelas mais bem remuneradas da sociedade. Haja vista os anúncios dos lançamentos imobiliários verticais, como deixam visíveis as marcas do status socioeconômico e tudo que se pode usufruir de benefícios, além do espaço residencial, através daquela aquisição.  

Assim, enquanto grandes edifícios e arranha-céus se erguem nos centros urbanos, luzindo o esplendor envidraçado e metalizado de suas torres, “para zerar o déficit habitacional do Brasil em 10 anos vai exigir 1,98 trilhão de reais, segundo dados de um estudo da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (Cbic) divulgado nesta quarta-feira” 2.

E não nos esqueçamos de que “dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania revelam que, em 2022, 236,4 mil pessoas viviam em situação de rua no país – um em cada mil brasileiros” 3.

Bem, mas este é um viés de reflexão que poderia se alongar por muitas páginas e não foi, neste momento, o que me fez escrever. Daí vou retomar as considerações a partir do processo de verticalização urbana, tendo em vista a dinâmica de recrudescimento dos eventos climáticos e ambientais extremos.

Afinal, desenha-se no horizonte uma situação de ameaça iminente nesse sentido. As ocorrências estão cada vez mais assustadoras e desafiando as normas técnicas de engenharia, já existentes.

Basta uma simples observação das tragédias recentes, ocorridas no Brasil e no mundo, para entender que apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos, no campo da engenharia civil, eles têm se mostrado insuficientes e ineficientes para a nova realidade ambiental contemporânea.

A destruição tem sido muito rápida e acachapante. Num piscar de olhos, bairros inteiros são engolidos pela cólera da natureza. Estruturas são levadas pelos ventos. Seres humanos perdem tudo, incluindo a própria vida.

No entanto, não vemos as autoridades, os especialistas, ninguém se movendo no sentido de promover um realinhamento das práxis de engenharia e construção civil dentro desse novo panorama.

Ora, é fundamental trazer à tona essas discussões. Informar, orientar, a população a respeito das inovações, das mudanças, que possam trazer-lhe uma pouco mais de tranquilidade. Mas, particularmente, limitar os excessos e vaidades egóicas na hora de propor a construção de novos grandes edifícios e arranha-céus.

Aliás, em termos desse tipo de edificação, o que se vê é uma explosão imobiliária; sobretudo, em regiões litorâneas.  São muitas as manchetes 4 dando conta desse movimento, no país.

No entanto, a visão limitada e imediatista contemplada pela monetização e mercantilização no setor, não muda o curso da realidade, não protege as pessoas, não evita as calamidades.

Negar as ciências ambientais é inútil, diante de dados estarrecedores que provam uma franca mudança nos regimes pluviométricos, nos movimentos meteorológicos, no volume das águas oceânicas, na instabilidade dos terrenos, enfim.

De modo que as novas edificações vêm desafiando os fatos e colocando em risco a população, nos locais onde são erguidas. Inclusive, no que diz respeito à lei n.º 10.257, de 10 de julho, de 2001, conhecida como Estatuto da Cidade, que não só regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, como estabelece as diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.

Bem como, a lei n.º 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano e dá outras providências e, a lei n.º 12.651, de 25 de maio de 2012, o Código Florestal, que estabelece normas para proteção da vegetação nativa em áreas de preservação permanente, reserva legal, uso restrito, exploração florestal e demais assuntos relacionados.

Infelizmente, as legislações acabam deslocadas para último plano de prioridades, em nome da proliferação desmedida de grandes edifícios e arranha-céus e do enriquecimento de gigantescas incorporadoras imobiliárias.

O que significa que a vida é, mais uma vez, valorada com baixo preço no mercado. A importância é dada ao status, ao poder econômico, impressos na materialidade desses imóveis. Grandes, suntuosos, imponentes, belíssimos. Totalmente despreocupados em afrontar os limites da natureza, como se ela, por um segundo sequer, pudesse ser constrangida ou contida pelo poder capital.

O que prova como o ser humano anda desatento ao fato de que “uma pessoa inteligente resolve um problema, um sábio o previne” (Albert Einstein). O exercício do negacionismo contemporâneo, sob suas mais diferentes formas e conteúdos, é só uma forma de deixar a digital dos indivíduos na cena da sua própria morte. Negar é uma escolha; mas, como tal, tem suas inevitáveis consequências.

Portanto, lembre-se de que “a maior parte das pessoas morre apenas no último momento; outras começam a morrer e a ocupar-se da morte vinte anos antes e às vezes até mais. São os infelizes da terra” (Louis-Ferdinand Céline, Viagem ao Fim da Noite – 1932).    



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