sábado, 25 de março de 2023

Medido, pesado e julgado insuficiente???


Medido, pesado e julgado insuficiente???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quando você pensa que a contemporaneidade já chegou no seu limite de deselegâncias, de desrespeitos, de violências e de desumanidades, eis que você é surpreendido dentro das nuances mais corriqueiras do cotidiano.

Há tempos que venho trazendo reflexões a respeito da precarização do trabalho, seja em forma ou em conteúdo; mas, ainda não tinha abordado nuances mais sutis desse processo, como por exemplo, dispensas e demissões.

Daqui e dali se ouve histórias de pessoas, famosas e comuns, que já experimentaram o dissabor de se descobrirem preteridos no mercado de trabalho, por redes sociais ou mensagens de aplicativos ou e-mail.

A questão não é somente o modo em si da demissão, que nos leva a entender esse mecanismo frio, calculista e desumanizado de tratar as relações sociais de trabalho. Acontece que por trás desse modus operandi se estabelecem vazios dialógicos que jamais serão respondidos.

Na medida em que o ser humano é visto e entendido como objeto mercantilizado, por conta do seu conhecimento, habilidades, competências, talentos, o mundo contemporâneo o desconstruiu e destituiu da sua dignidade humana, o que implica necessariamente na perda do direito ao respeito, à deferência, à cortesia.  

De repente, o ser humano é só mais um na fila do pão! Suas crenças, valores, convicções, emoções e sentimentos, nada disso importa no mercado de trabalho. O curioso é que, independente das circunstâncias de contratação, faz parte da praxe trabalhista a escolha do candidato mediante a apresentação de um currículo, o qual representa o início do processo seletivo.

Entretanto, na hora de dar-lhe um feedback quanto à contratação ou demissão, as palavras do contratante desaparecem como em um passe de mágica. Sem saber o que dizer, ou como justificar uma escolha, acaba não sendo incomum se deparar com um discurso assim, “na etapa de atividade prática, as habilidades e competências requeridas pelo cargo não apresentaram total aderência às habilidades apresentadas pelo fulano de tal, neste momento”.

Tão vaga a tentativa de justificar ao candidato que ele foi preterido na seleção, não é mesmo? Mas o pior não é isso. O pior é que retira dele (a) a possibilidade de saber efetivamente em que pontos ele (a) ficou aquém das possibilidades e deveria melhorar para a participação em um outro momento, em uma outra seleção.

Acontece que nem tudo pode ser dito, no caso do trabalho, porque certas justificativas configuram elemento potencial de judicialização. Etarismo, racismo, misoginia, homo e transfobia, gordofobia, são só alguns dos inúmeros critérios de seleção trabalhista que recorrentemente aparecem no Brasil do século XXI; mas, desaparecem nas entrelinhas de estratégias de entrevista de recrutamento, as quais não costumam deixar rastros dessa materialidade ofensiva e criminosa. Como se tentassem deixar o dito pelo não dito.

Recentemente, o anúncio de uma vaga de emprego para uma feira agropecuária, no interior de SP, gerou polêmica e indignação ao estabelecer que os candidatos homens e mulheres tivessem perfil de academia, corpo malhado 1.  Ainda que a empresa contratante e os organizadores tenham manifestado repúdio a qualquer tipo de discriminação e conduta de seleção por tal critério, foram unânimes em dizer se tratar de uma exigência do cliente. Mas, pouco importa de quem foi a ideia abjeta, o que importa é que ela foi colocada em prática.

E ao cair como uma bomba, nos veículos de comunicação e informação, trouxe à luz de um viés pouco explorado, quando o assunto é a relação desemprego e falta de mão de obra qualificada. Será que as análises dos institutos de pesquisa especializados no assunto dão conta, realmente, de mergulhar nas entrelinhas dessa subjetividade indigesta, que tanto favorece a distorções repugnantes nas relações trabalhistas? Será que o Ministério do Trabalho e Previdência e a Justiça do Trabalho já se atentaram para essa realidade absurda no país?

Afinal, ao que tudo indica, esse movimento sutil e vergonhoso que acontece na esteira das discussões sobre precarização trabalhista, pode estar privando o ingresso formal de milhares de cidadãs e cidadãos altamente talentosos e qualificados, com vasta habilidade e competência nas suas áreas de atuação, em nome de critérios nada ortodoxos. Um país que fala de desenvolvimento e progresso não pode se dar ao luxo de tratar sua força de trabalho de maneira tão constrangedora e desumana.  

Desse modo, quando ouvir falar sobre precarização trabalhista preste atenção. Bem mais do que tratar da flexibilização das relações de trabalho para elevar a margem de lucro dos empregadores, ela começa a agir sorrateira e vergonhosamente na desqualificação dos pretensos candidatos.

A precarização do trabalho, portanto, criou uma ponte importante para a desumanização, a qual faz todos perderem dia a dia seus valores éticos e morais, a sua sensibilidade e a sua empatia, por conta de sua franca alienação nas estranhas cápsulas de individualismo contemporâneo.

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