terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Uma casa. Uma residência. Uma moradia. Um lar.


Uma casa. Uma residência. Uma moradia. Um lar.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Sempre que acontece uma catástrofe, a realidade tende a se descortinar, a se decompor em camadas, para análise e reflexão. As fragilidades sociais, ambientais, urbanísticas, tudo vem à tona de repente. Erros. Acertos. Inações. Postergações. Enfim. Exatamente o que temos visto desde o início do temporal que arrasou diversas cidades no litoral norte de São Paulo, no último fim de semana.

Mas, como um dos pontos básicos de discussão é justamente o mau uso e ocupação do solo, no país, especialmente, em relação as áreas consideradas de risco, como encostas de morros inclinados ou à beira de rios, já é sabido que o contingente de desalojados 1 e desabrigados 2 entre a população atingida é bastante expressivo, como é comum de acontecer em situações desse tipo.

De modo que esse cenário, já visto tantas vezes no Brasil, emerge a complexa situação habitacional no país, a partir de um outro viés. Afinal de contas, sabendo-se que os locais atingidos pelos desmoronamentos são inapropriados para habitação, pela factível possibilidade de novos episódios que ameaçam à integridade de vidas que residem ali, é fundamental buscar outros espaços na geografia das cidades.

Acontece que essa não é uma tarefa simples. Primeiro, porque é preciso considerar que boa parte dos espaços urbanos vazios já está loteada por grandes corporações imobiliárias ou nas mãos de especuladores. De modo que restam poucas áreas de domínio público em que se possa dedicar às políticas públicas habitacionais, com relativa redução no custo de investimento.

Segundo, porque o lar é uma prioridade urgente para milhares de pessoas no país. Portanto, elas têm pressa. E os projetos habitacionais, comumente realizados, demandam um tempo razoável, em razão, da burocracia existente no seu processo. Ainda que a expertise consolidada para esse assunto, ao longo de décadas, pareça figurar como facilitadora.  

Terceiro, porque embora sinalize a questão da moradia própria, do fim do fantasma do aluguel, nem sempre a realização do sonho é completa. No modelo habitacional vigente no país, os conjuntos habitacionais geralmente estão na margem da cidade.

Distantes e carentes dos atributos urbanísticos, tais como, asfalto, saneamento básico completo, serviço de telefonia fixa e celular, rede de internet, unidade básica de saúde, escola, posto policial, rede regular de transporte público, espaços de lazer e cultura, ...

Então, pensando sob essa perspectiva, talvez, seja o momento oportuno de trazer uma nova roupagem para a realidade da política habitacional brasileira. Hora de modernizar, de ajustar as demandas às possibilidades, a partir de um olhar que veja e entenda a produção da própria cidade.  

Ora, se ela não dispõe de tantos espaços urbanos vazios, talvez, não lhe falte espaços urbanos já edificados; mas, que por uma razão ou outra, se encontrem há tempos ociosos, em franco processo de degradação e deterioração.

Espaços que substituam o tempo de uma construção para o tempo de uma simples reforma e/ou adequação. Espaços que já contem, inclusive, com completa infraestrutura urbana. Espaços que oportunizem acessibilidade sob diferentes aspectos. Espaços que permitam que as pessoas sintam além da conquista de um lar, a conquista de ser parte integrante e integrada à cidade.

É preciso abrir os olhos e as mentes. O déficit habitacional no país, por incrível que pareça, é só a ponta do iceberg, quando se coloca o devido reparo na dinâmica imposta pelo Meio Ambiente. Os espaços urbanos efetivamente habitáveis estão diminuindo pela força dos eventos extremos do clima. Não tardará o momento em que as cidades terão que ser, obrigatoriamente, (re) produzidas dentro de novos parâmetros impostos pelas conjunturas, por uma simples questão de sobreviver ou morrer.

Enchentes, temporais, deslizamentos, elevação do nível oceânico, escassez hídrica, ... tudo isso está no cardápio dos desafios que o urbanismo contemporâneo, do século XXI, está fadado a enfrentar. Por mais que a população desacelere o seu ritmo de crescimento e, por consequência, as suas demandas básicas, mesmo assim, já somos quase 218 milhões de cidadãos para disputar um mísero lugar ao sol nesse país. Então, como vai ser?

Já dizia George Bernard Shaw, “É impossível progredir sem mudança, e aqueles que não mudam suas mentes não podem mudar nada”. Portanto, essa é uma discussão que se abre para construir uma nova ordem ao que se entende como urbanismo, como uso e ocupação racional e sustentável do solo, como produção da cidade, como cidadania habitacional.

Afinal de contas, sob diferentes aspectos estamos diante de um mundo que exibe os seus fracassos sociais, políticos, econômicos, religiosos, cada vez mais amiúde. Um mundo que se aproxima inevitavelmente do seu ponto de inflexão, para que vislumbre alguma chance de sobrevivência.

Assim, o tempo urge a esse respeito, não dá mais para esperar! A tendência que se desenha no horizonte não é das melhores; sobretudo, se permanecermos arraigados e resistentes às velhas práxis e pensamentos em relação ao nosso direito de habitar, de ter um lugar, por mínimo que seja, que nos guarde e acalente o corpo, a alma e os sonhos, seja dia ou noite.



1 Pessoas que foram obrigadas a sair da sua residência pela iminência de risco de letalidade.

2 Pessoas que, de fato, perderam tudo o que tinham em termos materiais. 

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