quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

O grito silencioso das nevascas


O grito silencioso das nevascas

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

As imagens captadas pelos veículos de comunicação e informação não deixam dúvidas quanto ao rigor das nevascas no hemisfério norte. Camadas espessas de gelo branco, cortadas por rajadas de vento e chuvas congeladas, parecem realmente ultrapassar as telas e nos atingir em cheio. Pessoas já morreram e milhares de outras tendem a ter o mesmo fim, dadas as desigualdades de acesso aos sistemas de aquecimento, às moradias preparadas para as intempéries climáticas, aos vestuários apropriados, à alimentação ajustada ao regime calórico necessário.

No entanto, é bom que se diga que a suficiência de recursos não extingue quaisquer impactos negativos. Esse não é o fiel da balança! Os eventos extremos do clima têm imposto situações de isolamento, muitas vezes, prolongadas e que impedem o trânsito das pessoas pelas cidades a fim de recompor os estoques de produtos fundamentais para a sobrevivência. Além disso, os serviços de comunicação e fornecimento de energia podem estar sob interrupção forçada por riscos de incêndio. De modo que ter ou não o dinheiro é pouco relevante nessas conjunturas.

Diante desse cenário, então, deveríamos parar e refletir sobre o sentido das grandes e pequenas guerras espalhadas pelo mundo. Afinal, todos os argumentos e justificativas empregadas para sustentar os conflitos perdem rapidamente a sua consistência. Pois é, o ser humano não precisa criar situações beligerantes na medida em que, naturalmente, já é incapaz de lidar com as adversidades e imprevistos que a própria vida lhe impõe. Sobretudo, agora, na contemporaneidade, quando somos confrontados pelos eventos extremos do clima.

Por mais esforços e estratégias que venham sendo empregadas para mitigar os estragos, os prejuízos, as perdas, a força da natureza tem sido tão avassaladora que tudo parece insuficiente e ineficiente. Nossas certezas e convicções nunca estiveram tão desprotegidas e fragilizadas! A velocidade das transformações ultrapassa a capacidade de controle humano. Da manhã para tarde, da tarde para noite, da noite para a madrugada, um traço do insólito pode riscar o espaço e desconstruir a lógica existente.

Nunca fomos tão mortais! Nossa força se apequena em um simples piscar de olhos. Será mesmo que somos plenamente livres? Ou autossuficientes? Ou poderosos? Nossos esforços podem se reduzir a nada, quando menos se espera. Nunca foi tão clara a ideia de que não somos; mas, apenas estamos de passagem por esse mundo. Numa viagem em que se chega e vai sem bagagens. E não adianta brigar, nem tentar amealhar, ou usurpar, ou pilhar o que quer que seja. As regras desse jogo são imutáveis.

Penso que a raça humana anda mandando muito mal nas suas atitudes e comportamentos, não é mesmo? Porque nada parece fazer sentido, principalmente, quando se analisa a vida por uma perspectiva um pouco mais aprofundada, existencialista.  A ânsia pela liberdade tem corrompido as escolhas e o senso de responsabilidade inerente a elas. Assim, a realidade contemporânea acontece de maneira atabalhoada, irreflexiva, inconsequente, porque ninguém se dá conta de que “Eu sempre posso escolher, mas devo saber que, se não escolher, ainda estou escolhendo” (Jean-Paul Sartre). Talvez, por isso, os desdobramentos e consequências desse processo vêm se avolumando como escombros cotidianos que não se pode desfazer ou descartar.

Assim, a raça humana deve se atentar para o fato de que “Justificar tragédias como ‘vontade divina’ tira da gente a responsabilidade por nossas escolhas” (Umberto Eco). Ao contemplar o grito silencioso das nevascas, não é a fúria da imensidão branca e fria o que causa desconforto e medo; mas, a tradução materializada de uma deturpada simbiose que vem se estabelecendo entre os eventos extremos do clima e o movimento existencial humano. Por isso, tenhamos cuidado! Com nossos atos. Com nossos pensamentos.  

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