Nem
te conto! ...
Por
Alessandra Leles Rocha
Sei que muitos não vão admitir,
mas entre os ônus e os bônus que as Tecnologias da Informação e Comunicação
(TICs) trouxeram para a realidade contemporânea está a disseminação irrefletida
e cruel da vida alheia.
Eu sei que os tais “mexericos da Candinha” 1, os
quais se popularizaram na forma dos fuxicos nas rodas sociais e depois se
alastraram pelos veículos tradicionais de comunicação, especialmente as
revistas especializadas nesse viés, existem há tempos. Portanto, o X da questão
não me parece ser essa práxis em si; mas, o que se esconde na sua própria tecitura.
Já passou de a hora da sociedade
admitir que a vida alheia, como pauta de notícias, só flui porque ela dispõe de
público consumidor. Infelizmente, fofoca, disse me disse, telefone sem fio, ...
e tantas outras estratégias vulgarmente deploráveis rendem economicamente aos veículos
que se prestam a esse papel, ou seja, suprir de informações vazias e inúteis a
curiosidade de gente desocupada, frustrada, infeliz com a própria realidade.
Aliás, com um bocadinho a mais de
foco, é fácil perceber como esse caminho foi, de certa forma, um trampolim
também para as atuais Fake News. Sim, porque das fofocas que circulam por aí,
uma imensa maioria é fruto de distorções, invenções ou más interpretações de
fatos ocorridos (ou não) com gente em evidência. Palavrórios apimentados no
devido ponto, para render mais tempo no imaginário coletivo.
E nesse trágico viés se
proliferam criaturas deploráveis e oportunistas, quase como verdadeiros abutres,
que se dizem fazer tudo isso por ofício, por necessidade da profissão. Mas
será? É fato que o contexto dos avanços tecnológicos nos colocaram a viver
entre dois mundos, um real e outro virtual; mas, na medida em que o ser humano é
parte integrante e integrada desse processo, as regras, os protocolos, as
legislações, todo o ordenamento ético e moral que existe em um se aplica também
ao outro.
Não é porque os reality shows, por exemplo, estão por aí
destacados como o novo mote do entretenimento, que tudo possa caber nesse
contexto. Trata-se de uma experiência midiática que parte da adesão voluntária
dos participantes e contemplada por um rigoroso contrato estabelecendo as
regras, os direitos, as obrigações entre eles e o veículo de comunicação. Portanto,
nada em comum com a vida cotidiana de ninguém.
Isso significa que o exercício da
comunicação não tem seus limites estendidos ou flexibilizados porque acontece
nesse ou naquele ambiente tecnológico. Do mesmo modo, a privacidade do indivíduo
ainda é um direito a ser resguardado em qualquer circunstância, mesmo que sua profissão
lhe exija uma visibilidade e uma publicidade mais significativa do que acontece
em outras profissões.
Fora dos holofotes, dos flashes,
das entrevistas, dos contratos de trabalho, dos eventos publicitários, há
pessoas de carne e osso que merecem o seu descanso, a sua privacidade, a sua
individualidade, a sua intimidade, preservados. Ninguém, absolutamente ninguém,
tem o direito de transgredir, de ultrapassar essa linha limítrofe sem o
consentimento, sem autorização expressa do outro.
O que me faz recordar
imediatamente que, em uma das suas brilhantes crônicas, Martha Medeiros
escreveu com profunda sensibilidade, “Mantenha-se
atrás da faixa amarela, não chegue muito perto, não acerque-se de meus traumas,
não invada meus mistérios, não atrite-se com o meu passado, não tente entender
nada: é proibido tocar no sagrado de cada um” (Não pode tocar, 2004).
Qualquer que seja a forma de
desrespeitar essa máxima tão simples e direta significa, nada mais nada menos, impor
ao outro o reverberar de uma dor, de um sofrimento, de uma angústia, na
expressão de uma cicatriz oculta que sangra incontidamente. É lançar sobre os
ombros alheios a experienciação repetida em múltiplas formas e conteúdos de um
passado que necessita ser apaziguado na alma. E de pés fincados nesse mundo,
quem de nós não tem nada no campo desse sagrado?
Pensar que pessoas fazem isso por
dinheiro, por notoriedade, por visibilidade, e até mesmo, por prazer, abala momentaneamente
a minha fé no ser humano. Mas, é breve a minha decepção. Porque o mundo dá
voltas e mais voltas e os arranjos das conjunturas trazem consigo o peso de uma
imprevisibilidade perversa. Como será o amanhã? Ninguém sabe. E não há dinheiro
que compre a resposta.
E a cada novo episódio desse comportamento
horrível, que mais parece um chafurdar na carniça, eis que o vocabulário das
virtudes ganha espaço no calor das emoções. De repente, alguns se dão conta de
que deveria ser básico a qualquer ser humano exercitar a benevolência, a
bondade, a justiça, a responsabilidade, a sabedoria, o respeito, a prudência, a
honra, o desapego, a empatia, a sensatez, a compaixão, a solidariedade, ...
Pena, que isso só parece afetar
alguns. Como se sabe? Com base nos níveis de deterioração do comportamento humano
que se apuram pelas mídias sociais e veículos de comunicação e informação. O hábito
de comprazer na desgraça alheia, em se debruçar sobre especulações em torno da
vida do outro, ainda é a válvula do escapismo social mais utilizada. Como se
isso fosse resolver alguma coisa!
Eis, o tamanho exato do ser
humano! O bárbaro que a vida continua tentando domesticar sem muito sucesso. O selvagem
que subtrai suas virtudes para se vangloriar dos seus defeitos. Que deixa
rastros de malfeitos para justificar sua presença, sua existência mesquinha e
vulgar nesse mundo. Que se preocupa com a aparência externa quando deveria
cuidar bem mais da própria alma, no que diz respeito às suas crenças, valores e
princípios. Que no fim das contas, embora saiba falar, só consegue se expressar
comunicativamente pela ânsia compulsiva da verborragia.