domingo, 26 de junho de 2022

Nem te conto! ...


Nem te conto! ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Sei que muitos não vão admitir, mas entre os ônus e os bônus que as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) trouxeram para a realidade contemporânea está a disseminação irrefletida e cruel da vida alheia.

Eu sei que os tais “mexericos da Candinha”  1, os quais se popularizaram na forma dos fuxicos nas rodas sociais e depois se alastraram pelos veículos tradicionais de comunicação, especialmente as revistas especializadas nesse viés, existem há tempos. Portanto, o X da questão não me parece ser essa práxis em si; mas, o que se esconde na sua própria tecitura.

Já passou de a hora da sociedade admitir que a vida alheia, como pauta de notícias, só flui porque ela dispõe de público consumidor. Infelizmente, fofoca, disse me disse, telefone sem fio, ... e tantas outras estratégias vulgarmente deploráveis rendem economicamente aos veículos que se prestam a esse papel, ou seja, suprir de informações vazias e inúteis a curiosidade de gente desocupada, frustrada, infeliz com a própria realidade.

Aliás, com um bocadinho a mais de foco, é fácil perceber como esse caminho foi, de certa forma, um trampolim também para as atuais Fake News. Sim, porque das fofocas que circulam por aí, uma imensa maioria é fruto de distorções, invenções ou más interpretações de fatos ocorridos (ou não) com gente em evidência. Palavrórios apimentados no devido ponto, para render mais tempo no imaginário coletivo.

E nesse trágico viés se proliferam criaturas deploráveis e oportunistas, quase como verdadeiros abutres, que se dizem fazer tudo isso por ofício, por necessidade da profissão. Mas será? É fato que o contexto dos avanços tecnológicos nos colocaram a viver entre dois mundos, um real e outro virtual; mas, na medida em que o ser humano é parte integrante e integrada desse processo, as regras, os protocolos, as legislações, todo o ordenamento ético e moral que existe em um se aplica também ao outro.

Não é porque os reality shows, por exemplo, estão por aí destacados como o novo mote do entretenimento, que tudo possa caber nesse contexto. Trata-se de uma experiência midiática que parte da adesão voluntária dos participantes e contemplada por um rigoroso contrato estabelecendo as regras, os direitos, as obrigações entre eles e o veículo de comunicação. Portanto, nada em comum com a vida cotidiana de ninguém.

Isso significa que o exercício da comunicação não tem seus limites estendidos ou flexibilizados porque acontece nesse ou naquele ambiente tecnológico. Do mesmo modo, a privacidade do indivíduo ainda é um direito a ser resguardado em qualquer circunstância, mesmo que sua profissão lhe exija uma visibilidade e uma publicidade mais significativa do que acontece em outras profissões.

Fora dos holofotes, dos flashes, das entrevistas, dos contratos de trabalho, dos eventos publicitários, há pessoas de carne e osso que merecem o seu descanso, a sua privacidade, a sua individualidade, a sua intimidade, preservados. Ninguém, absolutamente ninguém, tem o direito de transgredir, de ultrapassar essa linha limítrofe sem o consentimento, sem autorização expressa do outro.

O que me faz recordar imediatamente que, em uma das suas brilhantes crônicas, Martha Medeiros escreveu com profunda sensibilidade, “Mantenha-se atrás da faixa amarela, não chegue muito perto, não acerque-se de meus traumas, não invada meus mistérios, não atrite-se com o meu passado, não tente entender nada: é proibido tocar no sagrado de cada um” (Não pode tocar, 2004).

Qualquer que seja a forma de desrespeitar essa máxima tão simples e direta significa, nada mais nada menos, impor ao outro o reverberar de uma dor, de um sofrimento, de uma angústia, na expressão de uma cicatriz oculta que sangra incontidamente. É lançar sobre os ombros alheios a experienciação repetida em múltiplas formas e conteúdos de um passado que necessita ser apaziguado na alma. E de pés fincados nesse mundo, quem de nós não tem nada no campo desse sagrado?

Pensar que pessoas fazem isso por dinheiro, por notoriedade, por visibilidade, e até mesmo, por prazer, abala momentaneamente a minha fé no ser humano. Mas, é breve a minha decepção. Porque o mundo dá voltas e mais voltas e os arranjos das conjunturas trazem consigo o peso de uma imprevisibilidade perversa. Como será o amanhã? Ninguém sabe. E não há dinheiro que compre a resposta.

E a cada novo episódio desse comportamento horrível, que mais parece um chafurdar na carniça, eis que o vocabulário das virtudes ganha espaço no calor das emoções. De repente, alguns se dão conta de que deveria ser básico a qualquer ser humano exercitar a benevolência, a bondade, a justiça, a responsabilidade, a sabedoria, o respeito, a prudência, a honra, o desapego, a empatia, a sensatez, a compaixão, a solidariedade, ...

Pena, que isso só parece afetar alguns. Como se sabe? Com base nos níveis de deterioração do comportamento humano que se apuram pelas mídias sociais e veículos de comunicação e informação. O hábito de comprazer na desgraça alheia, em se debruçar sobre especulações em torno da vida do outro, ainda é a válvula do escapismo social mais utilizada. Como se isso fosse resolver alguma coisa!

Eis, o tamanho exato do ser humano! O bárbaro que a vida continua tentando domesticar sem muito sucesso. O selvagem que subtrai suas virtudes para se vangloriar dos seus defeitos. Que deixa rastros de malfeitos para justificar sua presença, sua existência mesquinha e vulgar nesse mundo. Que se preocupa com a aparência externa quando deveria cuidar bem mais da própria alma, no que diz respeito às suas crenças, valores e princípios. Que no fim das contas, embora saiba falar, só consegue se expressar comunicativamente pela ânsia compulsiva da verborragia.   



1 Alusão à canção “Mexerico da Candinha” (1965), de Roberto Carlos e Erasmo Carlos.