sábado, 21 de maio de 2022

O frio, a desigualdade e a inação...


O frio, a desigualdade e a inação...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Mudanças climáticas em curso, não é de se espantar, então, que as baixíssimas temperaturas tenham chegado ao Brasil antes do próprio inverno. Mas, independentemente do que registraram os termômetros nos últimos dias, lidar com a queda de temperatura sempre foi um desafio para o brasileiro.

Ora, não é pelo fato de o país ser celebrado como “tropical e abençoado por Deus” que tudo está resolvido na seara climática. Não, não é bem assim! Certas regiões e localidades nacionais sempre foram alvo das extremas temperaturas, ultrapassando a escala negativa com certa facilidade. As serras gaúchas e catarinenses, Campos do Jordão, Monte Verde, e tantas outras, são comumente frequentadas por turistas por conta, exatamente, dessa disponibilidade às baixas temperaturas.

No entanto, o que intriga é o fato de que todo outono/inverno brasileiro chega sempre envolto pelas lamúrias e reclamações a respeito do frio. Sei que há os que gostam; mas, há, também, os que odeiam pelas mais diferentes razões. De modo que, apesar da corrida pelo reforço ao vestuário apropriado mostrar a disposição daqueles que pretendem minimizar ao máximo os efeitos do rigor térmico, isso diz pouco sobre a questão em si.

Vamos e convenhamos que as colchas, os cobertores, os edredons, as blusas, os casacos, as meias, as luvas, as pantufas e afins ganham destaque nas vitrines e na predileção dos cidadãos; mas, são instrumentos insuficientes para apaziguar e contornar efetivamente o desconforto térmico experimentado. De certo modo, eles são o nosso paliativo para os dias frios, assim como, a sopa, o caldo, o chocolate quente, o vinho quente, as fondues, e tantos outros alimentos ricos em energia para nos aquecer.

Acontece que do ponto de vista arquitetônico habitacional, nossas edificações não são pensadas para nos garantir a proteção e o conforto térmico necessários; especialmente, diante de mudanças climáticas tão extremas. A grande verdade que envolve essa questão é que subtraindo uma ínfima parcela capaz de viver em um lugar pensado e planejado para o seu bem-estar, pois dispõe de recursos suficientes para custear essa ideia, a imensa maioria da população vive onde pode. Sem regalias. Sem privilégios.

Aliás, cada dia mais o contingente de pessoas sem-teto no país se amplia pela força devastadora do desemprego, que os empurra para a miséria, para a fome, para o desalento das favelas, das ocupações, das ruas, das praças, das esquinas, para viverem sob o manto remendado do desalento social 1.

Veja o que escreveu o veículo de comunicação Deutsche Welle (DW), “De acordo com pesquisas acadêmicas recentes e informações do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), as mulheres, e consequentemente crianças, passaram a ser um contingente bastante expressivo dessa população. O único dado oficial mais recente, mas que ainda trata de uma projeção, foi divulgado em março de 2020 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea): 221.869 brasileiros viviam nas ruas naquele ano, o equivalente a cerca de 0,1% da população total do país. Para o MNPR, cerca de meio milhão de brasileiros podem estar morando nas ruas hoje, especialmente por falta de condições financeiras para pagar moradia” 2.

Portanto, se as pessoas estão sendo vulnerabilizadas pelas questões climáticas, a raiz desse problema terrível está na maneira, displicente e negacionista, com a qual uma significativa parcela da população brasileira lida com as questões da desigualdade. Nos permitimos transitar pelos espaços urbanos e urbanizados assistindo a milhares de seres humanos tentando sobreviver dentro de caixas de papelão, ou de barracas improvisadas com materiais recicláveis, ou sobre o próprio chão frio e duro, como se isso fosse normal, natural, trivial do nosso cotidiano.

E não é só nos dias frios que isso deveria nos causar qualquer desconforto ou constrangimento. Deveria ser sempre. Nenhum ser humano deveria jamais, em nenhum tempo, ser exposto a tamanha indignidade e sofrimento. Ali, naquela situação, o frio pode sim matar pela hipotermia. Mas, ele também agrava as doenças adquiridas no contexto das ruas, tais como a pneumonia, a tuberculose, a leptospirose, a hepatite, a AIDS, as Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) em geral e a desnutrição, em virtude da aceleração do processo de declínio da imunidade orgânica pelo excesso de carências e insuficiências presentes no seu cotidiano.

Mas, se até agora não conseguimos ao menos pensar nos prejuízos que o modelo habitacional errático vigente no país, nos causa em situações como essa, de uma baixa extrema de temperatura, imagina, então, conseguir expandir esse olhar para aqueles que nem ao menos dispõem de uma habitação? Isso significa que sequer paramos para pensar nos problemas que estão bem diante do nosso nariz, para nos mantermos imersos em nossos casulos de alienação e não precisarmos de despender energias tomando uma atitude, agindo como se deve.

Vejam bem, nem o frio nos demove desse absurdo social! De modo que entra ano e sai ano e continuamos repetindo a sina das campanhas do agasalho, dos sopões, dos cafés reforçados, que são medidas assistenciais necessárias; mas, imediatistas. Quando, de fato, deveríamos estar cobrando das autoridades competentes uma solução rápida para esses problemas, o que significa “Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”, segundo propõe a 11ª meta dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) 3.

Já temos muitos desafios importantes e cronificados no Brasil para serem enfrentados. Não precisamos fazer do clima um inimigo nacional. Nem em tempos de frio. Nem de calor. Nem de sol. Nem de chuva. ... O que precisamos é parar de reclamar dos acontecimentos e nos posicionarmos de maneira enfática e consistente para resolvê-los ou, ao menos, mitigá-los. Se um sapato lhe aperta os calos você o retira, não é assim? Exercitar a cidadania é isso, é não se permitir arrastar os sofrimentos cotidianos sem tomar quaisquer atitudes a respeito. A inação os aprofunda, os cronifica, os faz parecer cada vez mais insolúveis. E como escreveu José Saramago, “A única maneira de liquidar o dragão é cortar-lhe a cabeça, aparar-lhe as unhas não serve de nada”. 

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