quinta-feira, 12 de maio de 2022

Direito a ter esperança...


Direito a ter esperança...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não adianta fingir que não está vendo! O desequilíbrio na balança entre perdas e conquistas é visível na contemporaneidade. Estamos sim, perdendo muito mais do que conquistando; sobretudo, no campo das subjetividades humanas. Não é à toa que a saúde mental já aponta nas estatísticas como um mal vigente no planeta e desperta uma preocupação e atenção cada vez mais acentuada.

De modo que não surpreendem matérias, tais como, “Mortes por overdose de drogas batem recorde nos EUA em 2021. Pandemia e uso de opioides sintéticos ajudam a explicar o fenômeno” 1 ou “OMS faz alerta sobre aumento de comportamento suicida na pandemia” 2. Afinal, o psicoemocional da humanidade vem sendo preterido e negligenciado pela força brutal e impositiva das dinâmicas contemporâneas.

Não se vive mais, no sentido pleno da palavra. Ao contrário, o que existe é uma luta desesperada e cruel em nome da sobrevivência. O acirramento das desigualdades socioeconômicas carrega em si o peso da perda da dignidade humana em todas as suas formas e conteúdos. E isso, queiram ou não admitir, se reflete imediatamente na perda da esperança.

A sensação de frustração, de fracasso, de cansaço, diante de uma luta diária inglória, destrói o sentido da vida. Não se trata, simplesmente, dos esforços e sacrifícios não resultarem exatamente naquilo que foi idealizado pelas perspectivas e expectativas do indivíduo. Trata-se de não obter resultado algum, como se a vida não saísse do lugar, estivesse imóvel continuamente.

No mundo da exacerbada competição, escravização e consumo, os seres humanos se tornaram uma peça de pouco valor no jogo. Foram destituídos da sua humanidade e equiparados aos elementos do movimento de robotização e tecnologização contemporânea. Embora, a máquina humana seja muito mais frágil e incapaz de resistir as demandas existentes.

Por isso há um adoecimento populacional em curso. Mas, não apenas do corpo. A deterioração e a degradação humana são muito mais graves no nível psicoemocional. Afinal, os seres humanos não são uma criação constituída para atender a um padrão de existência como esse, em que os indivíduos são submetidos a cargas de pressão e tensão social tão elevadas.

A dor nas suas mais diferentes formas ultrapassou os limites do tolerável e, por efeito cumulativo, o seu limiar de tolerância foi sendo rapidamente reduzido, demandando recursos estratégicos cada vez mais potentes e perigosos. Porque as dores contemporâneas confrontam os indivíduos em relação às suas limitações, incapacidades, deficiências, impossibilidades.

Elas desnudam o ser humano e o vulnerabilizam por completo. Há, então, uma desconstrução no inconsciente coletivo quanto à ideia da imortalidade, da invencibilidade, da força, da supremacia do ser humano. A síntese desse processo é, portanto, a perda da saúde mental.

O ser humano passa a se enxergar sem nada a perder, como se tivesse chegado ao fundo do poço. Na verdade, além de todas as perdas que ele pode enumerar e descrever, ele perdeu quaisquer possibilidades sociais de encontrar algum ponto de apoio para tentar reemergir. A presença do desemprego, do empobrecimento, do desalento social como um todo extinguem a segurança social do ser humano.

Isso significa que essa hostilidade socioeconômica presente no mundo contemporâneo afasta os indivíduos de uma retomada do seu equilíbrio e do seu direito a ter esperança. A verdade é que as pessoas estão sendo arrasadas, massacradas, destruídas, soterradas, por conjunturas, muitas vezes, fora do seu controle ou responsabilidade.

A parcela de responsabilidade de qualquer indivíduo sobre a sua evolução e desenvolvimento dentro do cenário social é sempre limitada. Cada um que nasce, nasce dentro de uma realidade a qual nem sempre oportuniza romper as bolhas de retenção e ascender socialmente, por mais esforços e sacrifícios que o indivíduo possa empregar nesse sentido. E, vamos e convenhamos, a contemporaneidade tem sido pródiga em acentuar esse imobilismo.

Pois é, a perversidade está no ar! De modo que o sofrimento, a dor, a angústia, a desilusão, a tristeza, se transformaram em uma verdadeira epidemia fora de controle. E quanto mais se propaga a ideia de medicar ou de tratar as pessoas do ponto de vista clínico, a situação fica pior.

Primeiro, porque esse modus operandi reforça a ideia de que a culpa ou a responsabilidade por essa realidade adversa é totalmente do indivíduo. Ele está doente. Ele não consegue. Ele... sempre ele. Quando, na verdade, não é.

Segundo, porque esse movimento é um placebo que só faz mascarar e, de certa forma, atenuar as responsabilidades que a sociedade não quer admitir. Essa relativização e superficialização dos fatos não só não resolve os problemas, como também, não os faz desaparecer.

Sem contar, que ele faz a alegria da cadeia farmacêutica com suas fórmulas caríssimas, que prometem milagres. Alegria e felicidade em cápsulas, paz a conta-gotas, coragem injetável, enfim... Mas, a verdade é que os resultados são mera propaganda enganosa.

O crescimento da demanda imposto pelos duros impactos da realidade, acaba exigindo cada vez mais a explosão quantitativa e qualitativa desses fármacos. Portanto, esse modus operandi apenas consegue fomentar um círculo de dependência que beira às raias da letalidade.

Enquanto isso, o mundo gira na espiral da sua obstinação insana e desarranjada. As desigualdades permanecem intocadas. As adversidades mantendo a sua rotina de massacre diário, moendo as pessoas como feixes de cana de açúcar, para extrair um sumo de suor e lágrimas nada palatável. Daí a saúde mental não poder ser tratada como mero modismo, assunto de ocasião, ou doença “de gente rica”.

Já dizia José Saramago, “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” (Ensaio sobre a Cegueira). A saúde mental diz respeito aos seres humanos. Não importa quem sejam eles, a que classe social pertençam, o que fazem, o que pensam. Cada um de nós é sim, um alvo em potencial das investidas cruéis da vida.

Se uns se anestesiam com cocaína ou opioides caros, há os que se entregam ao craque. O que deixa clara uma verdade inconteste, a dor está sendo sentida independentemente se à luz do dia, nas esquinas ou às escondidas, nos casebres ou nas mansões.  

As aparências já não parecem mais suficientes para dissimular tanto sofrimento, dor, angústia, desilusão, tristeza. Porque ninguém vai ao cerne da questão para resolver. Continuam dissociando a realidade dos efeitos das desigualdades, como se isso fosse possível. Acontece que sem direito a ter esperança, a humanidade fenece, morre, acaba. E o princípio básico da esperança é a dignidade humana.

Quando nos esquecemos do que isso significa, ou seja, que “é uma qualidade inerente ao ser humano, que o protege contra todo tratamento degradante e discriminação odiosa, o assegurando condições materiais mínimas de sobrevivência” 3, estamos automaticamente legitimando o adoecimento populacional, independentemente de nacionalidade, opção política, orientação sexual, credo e etc.

Estamos, simplesmente, negligenciando de forma consciente e deliberada a saúde mental. E como escreveu Jiddu Krishnamurti, filósofo, escritor e educador indiano, “Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente”. Façamos, então, essa reflexão, antes que seja tarde demais!