Direito
a ter esperança...
Por
Alessandra Leles Rocha
Não adianta fingir que não está
vendo! O desequilíbrio na balança entre perdas e conquistas é visível na
contemporaneidade. Estamos sim, perdendo muito mais do que conquistando;
sobretudo, no campo das subjetividades humanas. Não é à toa que a saúde mental
já aponta nas estatísticas como um mal vigente no planeta e desperta uma
preocupação e atenção cada vez mais acentuada.
De modo que não surpreendem matérias,
tais como, “Mortes por overdose de drogas
batem recorde nos EUA em 2021. Pandemia e uso de opioides sintéticos ajudam a
explicar o fenômeno” 1 ou “OMS faz alerta sobre aumento de
comportamento suicida na pandemia” 2. Afinal,
o psicoemocional da humanidade vem sendo preterido e negligenciado pela força
brutal e impositiva das dinâmicas contemporâneas.
Não se vive mais, no sentido
pleno da palavra. Ao contrário, o que existe é uma luta desesperada e cruel em
nome da sobrevivência. O acirramento das desigualdades socioeconômicas carrega
em si o peso da perda da dignidade humana em todas as suas formas e conteúdos. E
isso, queiram ou não admitir, se reflete imediatamente na perda da esperança.
A sensação de frustração, de fracasso,
de cansaço, diante de uma luta diária inglória, destrói o sentido da vida. Não
se trata, simplesmente, dos esforços e sacrifícios não resultarem exatamente
naquilo que foi idealizado pelas perspectivas e expectativas do indivíduo. Trata-se
de não obter resultado algum, como se a vida não saísse do lugar, estivesse imóvel
continuamente.
No mundo da exacerbada
competição, escravização e consumo, os seres humanos se tornaram uma peça de
pouco valor no jogo. Foram destituídos da sua humanidade e equiparados aos
elementos do movimento de robotização e tecnologização contemporânea. Embora, a
máquina humana seja muito mais frágil e incapaz de resistir as demandas
existentes.
Por isso há um adoecimento
populacional em curso. Mas, não apenas do corpo. A deterioração e a degradação
humana são muito mais graves no nível psicoemocional. Afinal, os seres humanos não
são uma criação constituída para atender a um padrão de existência como esse,
em que os indivíduos são submetidos a cargas de pressão e tensão social tão
elevadas.
A dor nas suas mais diferentes
formas ultrapassou os limites do tolerável e, por efeito cumulativo, o seu
limiar de tolerância foi sendo rapidamente reduzido, demandando recursos estratégicos
cada vez mais potentes e perigosos. Porque as dores contemporâneas confrontam
os indivíduos em relação às suas limitações, incapacidades, deficiências, impossibilidades.
Elas desnudam o ser humano e o
vulnerabilizam por completo. Há, então, uma desconstrução no inconsciente
coletivo quanto à ideia da imortalidade, da invencibilidade, da força, da
supremacia do ser humano. A síntese desse processo é, portanto, a perda da
saúde mental.
O ser humano passa a se enxergar
sem nada a perder, como se tivesse chegado ao fundo do poço. Na verdade, além
de todas as perdas que ele pode enumerar e descrever, ele perdeu quaisquer
possibilidades sociais de encontrar algum ponto de apoio para tentar reemergir.
A presença do desemprego, do empobrecimento, do desalento social como um todo
extinguem a segurança social do ser humano.
Isso significa que essa hostilidade
socioeconômica presente no mundo contemporâneo afasta os indivíduos de uma
retomada do seu equilíbrio e do seu direito a ter esperança. A verdade é que as
pessoas estão sendo arrasadas, massacradas, destruídas, soterradas, por conjunturas,
muitas vezes, fora do seu controle ou responsabilidade.
A parcela de responsabilidade de
qualquer indivíduo sobre a sua evolução e desenvolvimento dentro do cenário
social é sempre limitada. Cada um que nasce, nasce dentro de uma realidade a
qual nem sempre oportuniza romper as bolhas de retenção e ascender socialmente,
por mais esforços e sacrifícios que o indivíduo possa empregar nesse sentido. E,
vamos e convenhamos, a contemporaneidade tem sido pródiga em acentuar esse imobilismo.
Pois é, a perversidade está no
ar! De modo que o sofrimento, a dor, a angústia, a desilusão, a tristeza, se
transformaram em uma verdadeira epidemia fora de controle. E quanto mais se
propaga a ideia de medicar ou de tratar as pessoas do ponto de vista clínico, a
situação fica pior.
Primeiro, porque esse modus operandi reforça a ideia de que a
culpa ou a responsabilidade por essa realidade adversa é totalmente do indivíduo.
Ele está doente. Ele não consegue. Ele... sempre ele. Quando, na verdade, não
é.
Segundo, porque esse movimento é
um placebo que só faz mascarar e, de certa forma, atenuar as responsabilidades
que a sociedade não quer admitir. Essa relativização e superficialização dos
fatos não só não resolve os problemas, como também, não os faz desaparecer.
Sem contar, que ele faz a alegria
da cadeia farmacêutica com suas fórmulas caríssimas, que prometem milagres. Alegria
e felicidade em cápsulas, paz a conta-gotas, coragem injetável, enfim... Mas, a
verdade é que os resultados são mera propaganda enganosa.
O crescimento da demanda imposto
pelos duros impactos da realidade, acaba exigindo cada vez mais a explosão
quantitativa e qualitativa desses fármacos. Portanto, esse modus operandi apenas consegue fomentar um círculo de dependência que
beira às raias da letalidade.
Enquanto isso, o mundo gira na
espiral da sua obstinação insana e desarranjada. As desigualdades permanecem
intocadas. As adversidades mantendo a sua rotina de massacre diário, moendo as
pessoas como feixes de cana de açúcar, para extrair um sumo de suor e lágrimas
nada palatável. Daí a saúde mental não poder ser tratada como mero modismo,
assunto de ocasião, ou doença “de gente
rica”.
Já dizia José Saramago, “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”
(Ensaio sobre a Cegueira). A saúde mental diz respeito aos seres humanos. Não
importa quem sejam eles, a que classe social pertençam, o que fazem, o que
pensam. Cada um de nós é sim, um alvo em potencial das investidas cruéis da
vida.
Se uns se anestesiam com cocaína ou
opioides caros, há os que se entregam ao craque. O que deixa clara uma verdade
inconteste, a dor está sendo sentida independentemente se à luz do dia, nas esquinas
ou às escondidas, nos casebres ou nas mansões.
As aparências já não parecem mais
suficientes para dissimular tanto sofrimento, dor, angústia, desilusão,
tristeza. Porque ninguém vai ao cerne da questão para resolver. Continuam
dissociando a realidade dos efeitos das desigualdades, como se isso fosse
possível. Acontece que sem direito a ter esperança, a humanidade fenece, morre,
acaba. E o princípio básico da esperança é a dignidade humana.
Quando nos esquecemos do que isso
significa, ou seja, que “é uma qualidade inerente
ao ser humano, que o protege contra todo tratamento degradante e discriminação
odiosa, o assegurando condições materiais mínimas de sobrevivência” 3, estamos automaticamente
legitimando o adoecimento populacional, independentemente de nacionalidade,
opção política, orientação sexual, credo e etc.
Estamos, simplesmente, negligenciando
de forma consciente e deliberada a saúde mental. E como escreveu Jiddu
Krishnamurti, filósofo, escritor e educador indiano, “Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente”. Façamos,
então, essa reflexão, antes que seja tarde demais!