sexta-feira, 1 de abril de 2022

Placebos amargos...


Placebos amargos...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A ideia do texto constitucional brasileiro, de 1988, era de que todos os brasileiros, sem exceção de quaisquer naturezas, fossem dotados dos mesmos direitos sociais, ou seja, “educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência  aos desamparados” 1, a fim de tentar reparar ao máximo as desigualdades sociais historicamente presentes no país.

Entretanto, o desafio imposto pelas forças oriundas de correntes conservadoramente contrárias ao proposto não só vem impedindo a sua concretização; mas, deixando evidente como não é possível olhar para o Brasil de uma maneira homogeneizante, que teria por finalidade encobrir os abismos que apartam as pessoas e consomem com a sua dignidade.

Pois é, cada manchete publicada pelos veículos de informação e comunicação nacionais e estrangeiros, cada análise proferida por seus analistas e experts, precisa ser lida além das palavras, em um processo de dissecação que extrai camada por camada as entrelinhas de tudo aquilo que, inconscientemente ou não, tentamos invisibilizar, particularmente, nesse ano eleitoral.

Impera uma necessidade de compreender a pluralidade e a diversidade nacional, além dos aspectos voltados à cultura. Porque a pluralidade e a diversidade brasileira iniciam a sua jornada de percalços e obstáculos pelo contexto do que acontece diariamente na vida do cidadão. Não, não somos iguais ao receber os flagelos das carências, das insuficiências e das ineficiências distribuídas de acordo com os substratos dentro dos estratos da pirâmide social.

Para quem ainda não se deu conta, o mundo não é feito só de pessoas saudáveis, felizes, plenas, ... Dizem por aí que “para morrer basta estar vivo”; mas, eu acrescento que para adoecer basta estar vivo. O cenário da vida humana pode mudar em um piscar de olhos.

Uma queda, um acidente automobilístico, uma violência, a manifestação de uma doença, enfim. O que torna todo e qualquer cidadão um sujeito apto a depender de uma estrutura e organização da sociedade que lhe permita continuar existindo com autonomia, com dignidade, com acessibilidade, com respeito.

Bom, pelo menos em tese é o que se esperaria. Mas, na prática não é assim que acontece para milhões de brasileiros e brasileiras distribuídos geograficamente por todo o país e expostos a essa situação todos os dias.

De modo que a cada notícia mais áspera, mais difícil, mais impactante, eu sempre me coloco a pensar como essas pessoas as recebem no contexto do seu próprio cotidiano, porque certamente para elas as situações ganham contornos, muitas vezes, mais dramáticos do que se possa imaginar.

Doenças, Transtornos, Síndromes e Deficiências não podem ser homogeneizadas, tamanha a multiplicidade de respostas e consequências biológicas que cada organismo pode apresentar. Há um grau de especificidade nesse assunto que impede, por exemplo, de se estabelecer valores iguais para o seu tratamento e manutenção cotidiana.

Quase sempre as demandas são multiprofissionais e, também, implicam em gastos com medicações, imunobiológicos, hemoderivados, aparelhos, equipamentos, mobiliários em caso de Home Care, cirurgias, dietas especiais, transporte, próteses e/ou órteses.

Tanto que, dentro de um contexto restrito da população, alguns indivíduos tentam mitigar as adversidades buscando pela judicialização das suas demandas, ou seja, tentado fazer cumprir o seu direito constitucional. Às vezes são bem-sucedidos, outras não.

Mas, e todos aqueles que não têm como se embrenhar nessa luta, estão inacessíveis ao seu direito fundamental de acessibilidade cidadã, hein? Sim, porque muitos, por diferentes motivos, não podem fazer por si mesmos ou não têm quem possa representá-los.

E absorta em seus casulos, a grande maioria da população não enxerga, portanto, quantos dos seus estão sendo invisibilizados, negados, deixados à margem da vida e da história, pela mais profunda e cruel indiferença negligente. Se esquecem de que a roda da vida gira e uma hora podem ser elas a precisar defender os mesmos direitos.

E é bom que se diga, que esse comportamento da sociedade não se restringe a esse aspecto. Vejam quantas catástrofes naturais, decorrentes de eventos extremos do clima, que vieram acontecendo recentemente no país e ninguém se manifestou ou se preocupou com as pessoas doentes e deficientes.

Ninguém noticiou ou informou sobre os seus infortúnios, as suas dificuldades, as suas perdas, os seus dramas. É como se essas pessoas não existissem para o Estado ou para a sociedade em geral; embora, como qualquer vivente sobre a Terra, sejam pagadoras de impostos e tributos e legalmente consideradas cidadãs brasileiras.  

E como desgraça pouca é bobagem, nesse país, eis que a notícia, do dia seguinte a imensa taxa de desempregados, é que os “preços dos remédios vão subir até 10,89%” 2. Parece que a ideia é mesmo colapsar a sobrevivência do cidadão! Tirar dele quaisquer possibilidades de viver com dignidade; na medida, em que dia após dia o governo lança sobre os ombros dessas pessoas a responsabilidade quanto aos direitos sociais fundamentais, enquanto desmantela a estrutura governamental a fim de comprometer a manutenção e a promoção de políticas públicas. Haja vista a quantidade de reclamações sobre a falta de medicamentos de alto custo oferecidos “gratuitamente” pelo governo 3.

Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), de 2019, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), “8,4% da população brasileira acima de 2 anos – o que representa 17,3 milhões de pessoas – tem algum tipo de deficiência” 4.

Então, se somarmos os deficientes a todos aqueles com algum tipo de doença, transtorno ou síndrome, de natureza crônica e/ou incapacitante, os números são ainda muito maiores, o que faz exigir da sociedade e das autoridades competentes muito mais responsabilidade, empatia e comprometimento a esse respeito.

É preciso romper com essa ideia tosca de que “eu não preciso disso ou daquilo”, especialmente, em relação aos direitos constitucionais. Pode ser que agora não! Mas pode ser que algum dia sim! Afinal, o mundo dá voltas! Imprevistos estão, por aí, para nos pegar de surpresa e virar de ponta cabeça a lógica da vida.

Além disso, essa é uma discussão que ultrapassa as fronteiras desse tipo de necessidade especial, porque, na verdade, ele aponta para o fato de que todos os brasileiros, sem exceção, estão tendo os seus direitos constitucionais dilapidados à revelia da sua anuência. Ora, há um desmantelamento em curso dos serviços públicos, enquanto as engrenagens da economia esmagam o seu poder aquisitivo e as suas possibilidades de aquisição de bens e serviços.  

Então, quando você pensa que pode negar a Ciência, negar as vacinas, fazer campanha contra o Sistema Único de Saúde (SUS), demonizar a distribuição de remédios pelo governo, ... você pode estar arriscando o seu amanhã. Já parou para pensar sobre isso?

Talvez, você nem saiba; mas, certas situações, como o adoecimento por Malária, ou Leishmaniose, ou Tuberculose, ou Hanseníase, ou HIV/Aids, ou acidentes ofídicos, escorpiônicos ou araneísmo, são de atendimento exclusivo dos serviços públicos, dada a sua notificação compulsória no sistema de vigilância em saúde.

De modo que nem tudo se resolve na base de um robusto poder aquisitivo ou do plano de saúde top de linha. Por si só, isso já explica a razão pela qual devemos exigir mais responsabilidade, empatia e comprometimento a esse respeito.

Aproveitemos, então, que amanhã é Dia Mundial de Conscientização do Autismo 5, para refletir a respeito das considerações trazidas nesse texto. Primeiro, porque estima-se que, no Brasil, existam cerca de 2 milhões de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA).

O que significa que elas apresentam “uma série de condições caracterizadas por algum grau de comprometimento no comportamento social, na comunicação e na linguagem, e por uma gama estreita de interesses e atividades que são únicas para o indivíduo e realizadas de forma repetitiva”. Trata-se de um transtorno que “começa na infância e tende a persistir na adolescência e na idade adulta. Na maioria dos casos, as condições são aparentes durante os primeiros cinco anos de vida” 6.

Segundo, porque esse é só mais um exemplo, entre tantos outros, que pelos movimentos de indiferença e discriminação promovidos pela própria sociedade e pelas autoridades competentes, impede que essas pessoas tenham suas demandas especiais atendidas com rapidez e eficiência, para que possam desfrutar livremente do seu direito a inclusão e acessibilidade social.

Desse modo, quando deixamos de discutir sobre Doenças, Transtornos, Síndromes e Deficiências criamos um problema que não deveria ser problema. Estamos impactando a estabilidade e a organização social, na medida em que obrigamos, direta ou indiretamente, os familiares e/ou responsáveis a abdicar da sua própria rotina cotidiana para tentar resolver aquilo que o governo teima se omitir fazer.  Afinal, é público e notório todo o conjunto de fragilidades, insuficiências e ineficiências, impregnadas nas políticas públicas, que as transforma em verdadeiros placebos amargos para as Doenças, Transtornos, Síndromes e Deficiências, no Brasil.    

 



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