sábado, 16 de abril de 2022

Em todo tempo, em todo lugar, há sempre um Judas...


Em todo tempo, em todo lugar, há sempre um Judas...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Sábado de aleluia. Dia de malhar o Judas? Há tempos a prática vinha sendo esta; mas, dadas as conjunturas atuais, melhor não. Um mínimo de dignidade e de constrangimento devem conter o arroubo histórico, considerando o tamanho da legião de simpatizantes do referido apóstolo que teimam em transitar por aí, tornando quaisquer investidas mais raivosas um total absurdo. 

Trair. Enganar. Atraiçoar. Blefar. Burlar. Calotear. Defraudar. Disfarçar. Embaçar. Embromar. Embustear. Engambelar. Engodar. Engrupir. Falsear. Fingir. Fintar. Fraudar. Como se vê são muitas as palavras para definir esse gesto tão pequeno, tão desprezível, que a humanidade teima em realizar. Trata-se da mais absoluta expressão do individualismo, que passa por cima da ética e da moral sem exteriorizar qualquer sentimento de culpa ou pesar.

Pois é, Judas errou feio e pagou com a própria vida. Teve uma gota de decência imposta pelo peso descomunal na consciência, por conta da traição a Jesus, e pôs fim a si mesmo. A sua malhação, ao longo desses pouco mais de 2000 anos, na verdade, nunca fez o menor sentido. No entanto, tal prática lançou luz sobre a transferência inconsciente, a qual a maioria das pessoas faz em relação aos seus próprios pecados.

Pode-se tentar enganar a si mesmo. Pode-se tentar enganar o mundo. Mas, a consciência ninguém engana. Lançar os pecados sobre a carga dos pecados alheios para se eximir da própria culpa, não passa de hipocrisia em estado bruto. Tanto que o próprio Cristo já dizia “quem não tiver pecados que atire a primeira pedra” 1. O pior é que essa hipocrisia vem acrescida da covardia, na medida em que nem a hombridade de Judas os atuais traidores oferecem.

Aqui e ali não existe quaisquer sinais de arrependimento, de desconforto, de vergonha, de consciência, por parte deles. São traidores que se apropriaram convictamente dessa posição e acreditam que através dela irão desfrutar de benefícios inimagináveis. Eles não temem a fúria da opinião pública porque se acham legitimados pela própria sociedade. A certeza de viverem sob um imenso telhado de vidro faz com que ninguém queira se indispor com o outro, mantendo uma relação de superficial cordialidade.

Acontece que Judas traiu apenas o seu Mestre; mas, nas traições contemporâneas tudo ganhou uma dimensão muito maior e diversificada. Tudo é motivo para traição. Assim, elas emergem, muitas vezes, de discursos e narrativas construídas a partir de promessas que nunca tiveram a real intenção de serem mais do que isso. São encenadas com o requinte da crueldade dos beijos e afagos pérfidos, para não deixar dúvidas aos seus propósitos. Portanto, “os traidores são colhidos na sua própria cobiça” (Provérbios - 11, 62).

O que a grande maioria das pessoas não pensa é que “quando traímos alguém, estamos a trair-nos a nós próprios também” (Isaac Bashevis Singer – romancista norte-americano). Trair é uma escolha, uma decisão, na qual se sabe exatamente o que está implicado. Ninguém trai pelo bem. Ninguém trai pelo certo. Ainda que muitos digam isso. O traidor coloca-se no centro do mundo, apagando a existência dos outros. Só ele, na sua inteireza absoluta é que importa. Isso explica porque “a traição nunca triunfa. Qual o motivo? Porque, se triunfasse, ninguém mais ousaria chamá-la de traição” (J. Harrington – escritor inglês).

O importante de uma discussão como essa, então, é trazer à tona que tipo de relação social a humanidade, de fato, almeja estabelecer. Até aqui, os modelos de convivência e coexistência humana parecem enovelados pelas tramas obscenas da traição desmedida. Traições que corrompem os seres humanos de diferentes formas, que matam, que maltratam, que subjugam, que humilham, que degradam.  

Isso quer dizer que não é de desconhecimento público a presença das traições entre nós. O próprio Cristo sabia da existência de um traidor entre seus discípulos, porque por mais dissimulada seja a traição, uma gota de observância mais acentuada para reter o fel das suas más intenções. O traidor pode não acreditar, nas ele exala no ar o odor da traição, pela agitação da sua própria inquietude.

Pode ser que sejamos traídos, algumas vezes, por ingenuidade ou por excesso de credulidade. Mas, na imensa maioria das vezes, a traição nos chega pela própria anuência, medida pela relação de custo/benefício que se pode alcançar, envolta pelo manto da hipocrisia que tenta lhe disfarçar o gosto amargo e indigesto das mesuras e dos rapapés. Não é à toa que Eleanor Roosevelt, ex-primeira dama do EUA, dizia “se alguém trai você uma vez, a culpa é dele. Se trai duas vezes, a culpa é sua”.

Lembre-se do que diz uma certa canção “[...] Quando querem transformar / Dignidade em doença / Quando querem transformar / Inteligência em traição / Quando querem transformar / Estupidez em recompensa / Quando querem transformar / Esperança em maldição: / É o bem contra o mal / E você de que lado está? [...]” 2. Afinal de contas, “Não se pode chamar de valor assassinar seus cidadãos, trair seus amigos, faltar à palavra dada, ser desapiedado, não ter religião. Essas atitudes podem levar à conquista de um império, mas não à glória” (Nicolau Maquiavel – O Príncipe).



1 Evangelho de São João, Capítulo 8.

2 1965 (Duas Tribos) – Eduardo Villa Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá - https://music.youtube.com/watch?v=HkQ0z_wF91k&list=RDAMVMHkQ0z_wF91k 

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