quinta-feira, 25 de abril de 2024

O progresso...


O progresso...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Um ciclo nada virtuoso. Talvez, essa afirmação seja a que melhor explique a dinâmica das Revoluções Industriais e a relação com o boom populacional que se estabeleceu depois delas.

Depois de ler duas matérias sobre o avanço das voçorocas no Brasil e a discussão delas como um problema global 1, eis que me deparo com a notícia do afundamento de cidades na China, em razão da “extração de água e do peso crescente com a rápida expansão imobiliária” 2.

Mas, não para por aí, quilombolas acionam Justiça britânica para barrar atividade de empresa mineradora em sua região, no Brasil, tendo em vista a “poluição e soterramento das nascentes de um rio, além de prejuízos à saúde causados pela poeira lançada no ar por explosões” 3.

Vejam, desde a segunda metade do século XVIII, as Revoluções Industriais não só demandaram um boom populacional para garantir seu contingente de mão de obra e seu mercado consumidor; mas, também, demandaram um uso e ocupação do solo que satisfizesse os seus interesses.

Mais pessoas, mais moradias, mais infraestrutura urbana, enfim... Tudo isso em uma crescente compatível ao progresso industrial. É certo que, no início desse processo, não havia um ordenamento jurídico que discutisse em profundidade os riscos e as medidas mitigadoras aos efeitos dessa dinâmica industrial. Demorou, então, um tempo significativo para que ele surgisse e fosse implementado.

Acontece que essa demora permitiu a consolidação dos agravos que se presenciam, agora, mais intensos na contemporaneidade. A negligência, em relação ao fato de que apenas do planeta é continental e que essa pequena fração ainda padece da limitação de não poder ser totalmente habitável, foi sim, decisiva para as consequências desse mau uso e ocupação.

Isso significa que a raça humana está reduzindo cada vez mais os espaços geográficos habitáveis, quando se preocupa exclusivamente com a manutenção do seu crescimento capital; sobretudo, para nutrir os veios do seu desenvolvimento científico e tecnológico. Ocupando. Explorando. Destruindo. Consumindo.  É sob esses princípios que o desenvolvimento da humanidade vem se mantendo alicerçado. Mas, até quando?

Não bastasse as profundas alterações geográficas na superfície terrestre, o planeta está diante do recrudescimento dos efeitos extremos do clima. Sim, as conjunturas urbanoindustriais afetaram também as condições climáticas, a partir de práxis como o desmatamento, a liberação de poluentes na atmosfera, a alteração dos cursos d’água, o uso excessivo de combustíveis fósseis.

Pois é, a concepção de progresso, a qual uma imensa maioria de pessoas permanece acreditando, como se vê apresenta um desequilíbrio real na sua relação custo/benefício. O progresso pelo progresso está ameaçando a sobrevivência e a existência da raça humana no planeta. A começar pelos episódios que têm ocasionado o deslocamento humano em massa.

Segundo a Agência da Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), “Pessoas refugiadas, deslocadas internamente e apátridas estão na linha de frente da crise climática. [...] “A mudança climática e o deslocamento estão cada vez mais interligados. À medida em que eventos climáticos extremos e condições ambientais pioram com o aquecimento global, eles contribuem para múltiplas e sobrepostas crises, ameaçando os direitos humanos, aumentando a pobreza e a perda dos meios de subsistência, tensionando as relações pacíficas entre comunidades e, em última análise, criando condições para deslocamentos forçados” 4.

A recente tempestade que atingiu Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, por exemplo, desperta um alerta nesse sentido. Haja vista que “o recorde de precipitação é consistente com a forma como o clima está mudando. Resumindo: o ar mais quente é capaz de reter mais umidade – cerca de 7% a mais para cada grau Celsius – o que pode, por sua vez, aumentar a intensidade da chuva”. Se tempestades cada vez mais intensas e amiúde começam a impactar a superfície terrestre, não é difícil imaginar que regiões com baixa cobertura vegetal ou impactadas pelo desmatamento/desertificação apresentem tendência de uma ação erosiva mais acentuada.

Dizia o escritor francês Victor Hugo que “O progresso roda constantemente sobre duas engrenagens. Faz andar uma coisa esmagando sempre alguém”. De fato, não se pode banalizar os efeitos nocivos do desenvolvimento humano. Infelizmente, os indivíduos foram arrastados pelas Revoluções Industriais sem a mínima possibilidade de uma análise, uma reflexão, um exercício crítico devidamente aprofundado, a respeito. Então, imersos nesse universo, vêm descobrindo da pior maneira que os benefícios, amplamente divulgados, não podem justificar os prejuízos. Afinal de contas, a verdade é que a humanidade foi solapada na sua dignidade e direitos, inclusive, no que diz respeito à sua própria sobrevivência.

terça-feira, 23 de abril de 2024

Na contramão da Inconfidência Mineira


Na contramão da Inconfidência Mineira

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Nada poderia ser mais interessante de se observar, no contexto dos acontecimentos recentes no Brasil, que em pleno 21 de abril, marco importante do movimento denominado Inconfidência Mineira, tenha ocorrido um evento político na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, exaltando o mais profundo sentimento colonialista; porém, em relação aos EUA.

Enquanto a elite socioeconômica das Minas Gerais travou, no século XVIII, a sua luta republicana e separatista, contra o domínio colonial português; sobretudo, em relação à política fiscal empregada pela metrópole, agora, três séculos depois, saem às ruas milhares de brasileiros em favor do imperialismo digital 1, liderado por um bilionário norte-americano.

Para mim, esta foi a prova cabal daquilo que venho falando, há tempos, ou seja, o ranço colonial ainda domina o Brasil. Vira daqui e mexe dali o brasileiro não perde a oportunidade de exercer o seu vira-latismo explicitamente.

Como bem escreveu Nelson Rodrigues, “Por ‘complexo de vira-lata’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima” 2.

Bem, o fato de hastearem faixas e bandeiras em apoio ao tal norte-americano, ou de proferirem discursos na língua inglesa, apesar de caricato não diz tudo. Na verdade, pode ser considerado apenas como a cereja do bolo, porque muito antes, um grupo de parlamentares federais, custeados com dinheiro público, esteve algumas vezes na terra do Tio Sam, denegrindo a imagem do Brasil junto a certos parlamentares estadunidenses.

Munidos de inverdades e absurdos foram clamar por uma eventual interferência daquele país sobre o nosso. Vociferaram que aqui é uma ditadura. Que a Suprema Corte brasileira está fora de controle.  Que há perseguição política. Enfim... Mas, no fundo parecia que estávamos de volta aos tempos coloniais, em que era preciso a vigilância e o controle da metrópole nos assuntos locais.

Bem, se engana quem pensa que essas coisas dizem respeito apenas à fragilidade da identidade nacional brasileira. Não, o buraco é bem mais fundo. É por essas e por outras que a Democracia, por aqui, vive na corda bamba, aos sobressaltos dos humores alheios.  A impressão que se tem é de que os brasileiros não apreciaram muito a ideia de assumir as responsabilidades republicanas. Afinal de contas, liberdade e responsabilidade são palavras que não se dissociam!

Assim, o gosto por ter quem tome às rédeas da situação, decida, faça e aconteça, que demonstre poder absoluto, para muitos deles é o que seria ideal. Como se o preço pago por essa tutela não fosse altíssimo, inclusive, do ponto de vista depreciativo da identidade nacional. Vamos e convenhamos que essa subserviência, esse servilismo, essa submissão, é bastante constrangedora e nos coloca em uma posição de atraso imutável.

Não nos esqueçamos de que a nossa Constituição vigente está fundamentada pela soberania, pela cidadania, pela dignidade da pessoa humana, pelos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pelo pluralismo político (art. 1º). Portanto, não precisamos de ninguém que diga o que é certo ou errado em nosso país. Que dê pitaco baseado em Fake News, construídas a partir de informações equivocadas, inexistentes. Saudosismos à parte, os tempos coloniais brasileiros ficaram no passado!

Imagino que, o pobre diabo do Tiradentes e seus companheiros devem ter se revirado no túmulo, no último domingo. Estamos falando de uma estirpe que tinha consciência política, cidadã, e lutava contra os abusos e arbitrariedades da metrópole.

Nenhum deles pensava que a Coroa Portuguesa defendia liberdade ou tinha espírito democrático. Nem poderiam; pois, ficou claro, desde 1500, que o propósito era a dominação portuguesa, através de vários vieses, ou seja, territorial, cultural, religioso e econômico. Quaisquer tentativas de jugo sobre outra nação é, portanto, colonialismo!

A grande questão é que há 500 anos, o desequilíbrio de forças entre a colônia e a metrópole era um fato. Romper com a dominação era praticamente impossível. Somente três séculos depois da chegada dos portugueses, no país, é que o Brasil se faz independente da metrópole e começa a trilhar caminhos de elaboração para a sua consolidação republicana e, mais adiante, democrática.

Daí o espanto em perceber que há, em pleno século XXI, quem queira fazer um caminho contrário na história! Diante dessa constatação, não pude deixar de lembrar das palavras de Jose Luis Borges, escritor argentino, que “As ditaduras fomentam a opressão, as ditaduras fomentam o servilismo, as ditaduras fomentam a crueldade; mas o mais abominável é que elas fomentam a idiotia”.

Pois é, a forma de governança colonial não difere das ditaduras contemporâneas. O colonialismo foi um precursor sim, na medida da sua arbitrariedade, da sua exploração das desigualdades, da sua seletivização social, da sua brutalidade ideológica. Então, a reafirmação do desejo colonial é a reafirmação desse desejo autoritário, alienante, silenciador, opressor, capaz de elevar socialmente uns poucos em detrimento da maioria.

O que, no caso do imperialismo digital contemporâneo, ganha maior intensidade e velocidade, graças ao arcabouço tecnológico desenvolvido por grandes potências globais, como são os EUA. Entendam que, absortas pelo encantamento virtual, milhões de pessoas facilmente passam a ser controladas e manipuladas através das mídias sociais.

Assim, devidamente programadas a conduzir o indivíduo por algoritmos refratários, qualquer ideia contrária aos interesses do poder dominante é rechaçada. E aí, a dominação territorial, cultural, religiosa e econômica, faz a festa!

Segundo Michel Foucault, “Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir”.

E isso significa que “Precisamos resolver nossos monstros secretos, nossas feridas clandestinas, nossa insanidade oculta” (Michel Foucault), para podermos avançar ao invés de regredir sócio-historicamente.

Afinal, “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (Michel Foucault). Prestemos bastante atenção a respeito, a fim de que possamos nos colocar a realmente pensar e dar lugar a busca por essa tal liberdade ainda que tardia 3!



3 “LIBERTAS QUAE SERA TAMEN” (Liberdade ainda que tardia) – lema dos inconfidentes mineiros e presente na bandeira do Estado de Minas Gerais.  

domingo, 21 de abril de 2024

A fogueira das vaidades


A fogueira das vaidades

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quando li Frankenstein: or The Modern Prometheus, a grande obra literária de Mary Shelley, escrita no início do século XIX, uma das passagens que mais me impactou foi “Não pode a busca do saber ser levada à conta de exceção a essa regra. Se o estudo, por qualquer forma, tende a debilitar nossas afeições, nosso gosto pelos prazeres simples, trata-se então de uma atividade ilícita, que não se ajusta ao espírito humano. Se essa norma fosse sempre observada, se todo homem estabelecesse um limite entre seus misteres e sua vida afetiva, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado sua pátria, a América teria sido colonizada sem maiores conflitos, e os impérios dos astecas e dos incas não teriam sido aniquilados” (SHELLEY, p.54) 1. A franqueza da autora diante de uma observação ética, tão óbvia, reverbera uma atemporalidade reflexiva extremamente necessária.

De modo que ao assistir ao premiadíssimo Oppenheimer 2 , não pude deixar de pensar a respeito do tênue limite existente entre a ética científica e a ausência dela. Inclusive, no fato de que J. Robert Oppenheimer poderia facilmente ter dito as seguintes palavras: “Senti o gosto amargo da decepção. Sonhos que me haviam embalado por tanto tempo eram, repentinamente, transformados numa realidade infernal” (SHELLEY, p.57).

Tenho comigo que a Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século XVIII, foi sim, um grande salto para a humanidade; mas, sem quaisquer redes de proteção. Afinal, não se pode olhar os acontecimentos somente pela perspectiva da produção em escala e o consumo massificador. A Revolução Industrial, em cada uma das etapas que ela se apresenta, trata de uma jornada de ciência e tecnologia. O conhecimento foi posto à prova, no sentido de trazer à tona todos os avanços e progressos, possíveis e desejáveis, para os membros do topo da pirâmide social. 

Entretanto, o conhecimento não se resume em si mesmo, ele é parte da subjetividade humana. O que significa que seu processo construtivo se dá a partir da identidade e das percepções individuais, as quais moldam a relação das pessoas com o mundo.  E quanto mais os indivíduos alcançam satisfação nas suas descobertas, na aquisição de elementos para constituírem seus conhecimentos, mais eles se tornam envoltos por uma aura de distinção social. De modo que acaba sendo inevitável a vaidade correr freneticamente pelas veias de quaisquer cientistas ou personalidades da academia.

Cada descoberta, apontada como um assombro de genialidade, na verdade, tem esse lustro pelo papel que pode estabelecer nos rumos da humanidade. E quem não quer ser o primeiro nessa corrida? Receber os louros da vitória, os aplausos, as reverências? Acontece que, nem sempre, os resultados estão amparados pela ética. Teoria e prática, nem sempre, caminham juntas. Por mais que a ciência tente prever e evitar dissabores, quando ela ultrapassa as fronteiras dos laboratórios acadêmicos para ser apropriada por certos segmentos da sociedade, ela incorre sim, no risco de um profundo desvirtuamento de propósito.

Segundo registro na biografia de Alberto Santos Dumont, o famoso inventor brasileiro, foi vítima disso. “No dia 8 de dezembro de 1914, ao ver seu invento ser usado para bombardear a cidade de Colônia, se decepciona. No Brasil, sua tristeza aumentou quando o aeroplano foi usado durante a revolução de 1932, em São Paulo” 3. O “pai da aviação” viu seu trabalho manchado pela beligerância da 1ª Guerra Mundial e depois pela Revolução Constitucionalista, ocorrida em seu próprio país. O seu conhecimento foi brutalmente desumanizado e conduzido para um fim ignóbil.

Um outro exemplo importante diz respeito ao uso do DDT (Diclorodifeniltricloroetano), da família dos organoclorados, ele foi uma das substâncias sintéticas mais estudadas e comercializadas no século XX. A descoberta de suas propriedades inseticidas data de 1939, pelo entomologista suíço Paul Müller, valendo-lhe o Prêmio Nobel de Medicina devido ao uso do DDT no combate à malária 4. No entanto, seu uso durante a Segunda Guerra Mundial, depois na agricultura em todo o mundo, mostrou-se uma ameaça ao equilíbrio ambiental e aos agravos significativos no campo da saúde pública, levando à sua proibição.

A ciência que cria, também, destrói. Controverso. Discutível. Questionável. Mas é assim. A ciência vive sobre um intenso dilema ético. E olhando para o imediatismo contemporâneo, com seus numerosos egos narcísicos, hasteando bandeiras de liberdade irrestrita, há de se pensar a respeito. De tecer uma reflexão longa e profunda. Albert Schweitzer dizia que “Ética é, sem ressalvas, responsabilidade por tudo o que tem vida”. Portanto, se a ciência não coloca a vida como elemento central a ser resguardado na sua busca pelo conhecimento, o planeta viverá sempre em constante sobressalto.  

E pensar sobre isso é interessante, porque se considerássemos o arsenal bélico de posse de certos players internacionais, talvez, a Terra já tivesse se desintegrado. Mas, isso só não ocorreu, porque aquele que deflagar a primeira ogiva perderá a razão de continuar tentando impor a sua supremacia, na medida em que não terá mais com quem disputar. Todos os habitantes do planeta terão morrido. Então, com a ajuda da ciência e da tecnologia eles fazem o seu ritual macabro de eliminação civilizatória, de ostentação de poder, a conta-gotas.  Nos matam, lenta e gradualmente, de diferentes formas.  

Assim, tenhamos cuidado, “Prometeu roubou o fogo dos deuses e o deu ao homem. Por isso ele foi acorrentado a uma rocha e torturado por toda a eternidade”, o que trazendo para o contexto contemporâneo significa que “Você não pode cometer um pecado e depois pedir a todos nós que sintamos pena de você quando houver consequências” (citações do filme Oppenheimer, 2023). A fogueira das vaidades é implacável e certos erros não têm como corrigir, nem voltar atrás.



1 SHELLEY, M. [1817]. Frankenstein: or The Modern Prometheus. Tradução de Pietro Nassetti. Disponível em: http://lelivros.love/book/frankestein-mary-shelley/. Acesso em 1º jul. 2019.

2 Oscar 2024 – ATOR, DIRETOR, FILME, ATOR COADJUVANTE, FOTOGRAFIA, TRILHA SONORA ORIGINAL, MONTAGEM.

Trailer oficial -   https://www.youtube.com/watch?v=F3OxA9Cz17A

4 https://cetesb.sp.gov.br/laboratorios/wp-content/uploads/sites/24/2022/02/DDT.pdf   

sexta-feira, 19 de abril de 2024

A pergunta que não quer calar...


A pergunta que não quer calar...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A quem interessa o caos contemporâneo? Essa deveria ser a pergunta de todo cidadão. Sim, porque na medida em que a vida passa a transcorrer sob níveis de tensão absurdos, da mais completa instabilidade beligerante, o caos está instalado. E isso nada tem de producente. O caos não gera desenvolvimento, não gera progresso, de nenhuma forma ou conteúdo. Simplesmente, porque ele é um componente desagregador.

Pois é, o que lhe diz as seguintes palavras: confusão, desordem, anarquia, bagunça, balbúrdia, obscuridade, pandemônio, perturbação, transtorno? Agora, percorra as manchetes dos veículos de comunicação e de informação, tradicionais e alternativos 1. Daqui e dali cada uma dessas palavras está presente, de algum modo. É, caro (a) leitor (a), o caos está entre nós!

Solapando gradualmente nossos míseros momentos de paz. Se é que ainda temos algum! Mas, o caos contemporâneo age dessa maneira, exaurindo nossas energias, nos afastando uns dos outros pela imposição de partidarismos vãos, alienando nossa capacidade crítico-reflexiva, adoecendo nossos corpos. Só não admite, quem não quer! Porque não há bolha que seja suficientemente capaz de nos blindar dos efeitos nocivos desses tempos insanos.

Ora, temos olhos para enxergar, ouvidos para ouvir, sensibilidade para discernir. Então, não dá para passar à margem dos acontecimentos, fingir que não sabe ou que não viu, ostentar a mais absoluta indiferença. Quaisquer dessas atitudes significa compactuar voluntariamente com o caos. Mas, por quê? Que motivos podem levar a raça humana a apostar todas as suas fichas no “quanto pior, melhor”?

Resposta difícil, não é mesmo? Nem sei se há, de fato, uma resposta. Afinal, tudo isso contraria, profundamente, o nosso senso racional, o nosso instinto de preservação da espécie. Todos contra todos, pelos mais diversos motivos, é surreal! É como o ápice do individualismo! Algo que me faz lembrar da parábola do porco-espinho, “uma metáfora usada pelo filósofo Arthur Schopenhauer para se referir às dificuldades de convívio entre os seres humanos” 2.

Nela, a causa do afastamento eram os espinhos. Bem, é dessa espécie desenvolver espinhos sobre a pele. De modo que não são as diferenças que os afastam; mas, as afinidades. Trazendo para a perspectiva humana, quando o outro espelha aquilo que eu não quero ver, desperta em mim um desconforto terrível. Não, que ele o faça intencionalmente; mas, se ele é semelhante a mim, a sua própria existência faz com que seja difícil negar essa verdade indigesta. Assim, o caos ao afastar as pessoas, pelo menos em tese, estabelece um controle sobre esses incômodos. Mas será?

A verdade é que a desagregação é uma ameaça real de extinção. Quando o individualismo é colocado a enésima potência em detrimento da coletividade, nada mais importa, nem a própria vida. Se cada um sair, por aí, defendendo os seus interesses, as suas vontades, os seus quereres, independentemente de quaisquer limites ou leis, desrespeitando voluntariamente os seus pares, sem a menor intenção de alcançar o equilíbrio do consenso, o caos se imporá de maneira definitiva em relação à sobrevivência humana.

As tentativas de estabelecer tensões e desestabilizações, em diversos países, refletem isso muito bem. Tem sido sim, tempos em que o caos se lança contra a soberania, a cidadania, a dignidade humana, o pluralismo político, sem a menor cerimônia e de maneira bastante impetuosa. E isso só acontece porque se está esgarçando os laços sociais, fragmentando as sociedades. Fazendo com que cada um fique à mercê da própria sorte.

O mais curioso é pensar, por exemplo, nas palavras de George Orwell, de que “Toda propaganda de guerra, toda gritaria, as mentiras e o ódio, vem invariavelmente das pessoas que não estão lutando”. Verdade! As partículas promotoras do caos estão sempre fora do olho do furacão. Observando. Controlando. Manipulando. Estimulando. Para alcançar os seus objetivos o mais plenamente possível. Mais do que nunca, eles precisam da desagregação para garantirem a sua integridade; pois, individualmente, os outros se tornam inofensivos, arrefecidos na sua ânsia de lutar pela união, paz, harmonia, entendimento e conciliação.   

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Entre a ficção e a realidade ...


Entre a ficção e a realidade ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Os ataques orquestrados da ultradireita internacional, contra o Brasil, só me fazem lembrar da interpretação impecável da personagem Lex Luthor, por Gene Hackman, em Superman – O filme (1978) 1 e Superman II – A aventura continua (1980) 2.

Nesses dois filmes emblemáticos, Lex Luthor se autoproclama “a mente criminosa mais brilhante do século XX” 3. Embora seja um bilionário, suas atitudes demonstram a sua pequenez e a sua limitação através de uma vaidade exacerbada, uma arrogância infundada, uma bajulação caricata. Mesmo assim, Luthor é uma ameaça na medida em que nutre uma obsessão descomunal pelo poder.  

Está certo que essa interpretação estava contextualizada em um outro momento da realidade social contemporânea. Não havia redes sociais. Não havia polarização política. A divisão do pensamento social se dava, simplesmente, pela dicotomia entre o bem e o mal. Lex Luthor não aceitava que ninguém se colocasse no seu caminho, especialmente, o seu arquirrival, o Super-Homem, “defensor da justiça, da verdade, dos fracos e oprimidos”.

A vilania era explicitamente materializada em ações, afinal de contas, eram tempos da Guerra Fria, pairando sobre o planeta.  O peso da linguagem, como se vê na construção da pós-verdade e na disseminação de Fake News, era um pouco diferente. A sociedade ainda estava conectada aos fatos, no que diz respeito ao despertar do posicionamento e das opiniões das pessoas.

Acontece que, de repente, o desenrolar da contemporaneidade trouxe um novo realinhamento em termos de canalhice, infâmia, mesquinhez, torpeza ou ultraje. O ser humano não precisa mais dar a sua cara, se expor na linha de frente dos acontecimentos, bater, chutar, guerrear como de costume. As mentes criminosas mais brilhantes do século XXI estão nas sombras, por trás das telas, nas mídias sociais.

A tecnologia trouxe os conflitos para uma outra arena de embate, o mundo virtual. É desse ponto que a reflexão deve partir. A vida humana está regida pela pressa, pelo imediatismo, pelo volume avassalador de informações. O que significa que há um franco esgarçamento na capacidade analítica e crítica dos indivíduos.

Isso sem contar, que o invólucro tecnológico encapsulou os indivíduos em bolhas de individualismo, demasiadamente narcísico, que os arrasta cada vez mais para uma teia de afinidades, a qual seletiviza de maneira impositiva o que é e o que não é importante. Vivemos tempos de um efeito manada verdadeiramente desagregador, na medida em que expõe a seguinte condição: ou está comigo ou está contra mim. Em suma, o ódio está no ar!

Vejam, é preciso pensar nesse cenário objetivamente. Há método, planejamento, para tudo isso. A tecnologia tomou de assalto a realidade, a tal ponto, que a commodity mais valiosa é o tempo. Há máquinas para tudo, ou quase tudo; mas, as 24h do relógio se mostram mais e mais insuficientes. Somos intensamente pressionados, persuadidos, por estratégias tecnológicas diversas que desejam capturar nossa atenção e consumir o nosso tempo.

Esse é o que se pode chamar um verdadeiro golpe de mestre! Ora, tempo é dinheiro! É nessa ciranda frenética que somos induzidos a correr, correr, correr, trabalhar, trabalhar, trabalhar, a fim de pagar e fortalecer o enriquecimento das Big Techs, das mídias sociais, da indústria tecnológica, enfim. Pois é, vendemos e consumimos o nosso precioso tempo, muitas vezes, sem se dar conta!

Acontece que essa dinâmica compromete a suficiência e a eficiência da nossa capacidade cognitiva e intelectual. Estamos cada vez mais cansados, exaustos, desgastados física, emocional e mentalmente. Se não há tempo suficiente para realizar atividades essenciais e vitais para a sobrevivência humana, o que dirá para decantar as informações e construir um conhecimento, uma sabedoria autônoma e autoral.

Estamos literalmente soterrados pelo volume de atividades, de afazeres, de compromissos, de notícias, ... Desse modo, estamos ficando rasos. Meros leitores de títulos e subtítulos, ao invés de conteúdos na íntegra. Crédulos seguidores do alarmismo disseminado nas redes sociais.

É assim que milhares de pessoas caem nas armadilhas dos Lex Luthor contemporâneos. Sem saber exatamente quem, onde, quando e por quê, elas são induzidas e manipuladas a se colocarem partidárias e defensoras de questões, as quais não fazem a mínima ideia do que se trata efetivamente. Tornam-se consumidoras de um ativismo extremista, radical, que vai às últimas consequências, sem se preocupar em preservar quaisquer parâmetros éticos, morais e humanitários.  

A ideia desse efeito multiplicador é, simplesmente, garantir legitimidade aos propósitos dos Lex Luthor contemporâneos. Impor pela força numérica, uma nova ordem social. Não é à toa que a história da humanidade esteja marcada pela existência de diversas seitas. Afinal, é disso que estamos tratando. Vez por outra, em nome de diferentes causas, certos indivíduos promovem a aglutinação de pessoas a fim de professar alguma ideologia, doutrina ou sistema político, filosófico, contrário ao sistema dominante.

Tomadas por um sentimento de liberdade irrestrita de expressão e de opinião, ou de poder de escolha, ou da descoberta de alguma “verdade absoluta”, essas pessoas se engajam sem maior resistência. Passando a defender, sem quaisquer questionamentos, as orientações de suas lideranças. Elas perdem o senso de individualidade, de identidade, para servir a um interesse coletivo profundamente massificado e aprisionante.

E com pensamentos do tipo “Algumas pessoas leem ‘Guerra e Paz’ e acham que é um simples romance. Outras pessoas leem uma embalagem de chiclete e desvendam os segredos do universo” ou “Eu não quero fazer coisas boas. Quero fazer coisas grandiosas”, que a personagem Lex Luthor trabalha o inconsciente das pessoas, na perspectiva de uma realidade que lhes torna vulneráveis a considerar essas palavras como um verdadeiro arauto de esperança. Assim surge a legião de seguidores.

Ao traçar essa analogia entre a ficção dos quadrinhos e a realidade atual, de alguma forma, abre-se espaço para expandir o olhar sobre camadas, ainda obscuras, da sociedade contemporânea. A ficção sempre possibilita trazer personagens para expiação de nós mesmos, no intuito de traduzir aspectos não percebidos ou indesejados da própria personalidade humana. Afinal, como dizia Oscar Wilde, “Nunca o homem deixa tanto de ser ele mesmo como quando fala por sua própria conta. Fornecei-lhe uma máscara e logo vos dirá a verdade”.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Nada é, tudo está ...


Nada é, tudo está ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Carl Gustav Jung afirmava que “Sua visão só ficará clara quando você olhar em seu coração. Quem olha fora, sonha. Quem olha dentro, desperta”. Verdade! Seja para o bem ou para o mal, nossas escolhas e decisões são sim, balizadas por aquilo que diz o nosso (in)consciente.  

Por isso resolvi tecer algumas considerações relativas ao negacionismo contemporâneo, com foco no Brasil, tendo em vista que ele não me parece uma questão irrefletida, um modismo qualquer, uma teimosia infantiloide. Afinal, como escreveu Clarice Lispector, “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”.

E penso eu que o nosso maior defeito brasileiro é a herança colonial. Pouco mais de 500 anos de história e permanecemos umbilicalmente ligados a um padrão de organização social, política e econômica, o qual se permite reafirmar e focalizar nas percepções e experiências coloniais, como se o mundo não tivesse avançado no seu progresso e desenvolvimento.

Nesse contexto, um aspecto merece bastante atenção. O poder rural. Depois do extrativismo vegetal e mineral, a agropecuária se estabeleceu como carro-chefe da economia nacional e seus representantes como as figuras de maior influência e poder no país.

Eram os tempos das plantations. Sim, o sistema de produção agrícola criado no período Mercantilista, entre os séculos XV e XVIII, que fora implantado pelas metrópoles europeias em suas colônias. Estamos falando, portanto, de latifúndios voltados para monoculturas, onde o trabalho era garantido pela força da mão de obra escrava e o propósito era atender aos interesses do mercado exterior.

Assim, não é difícil perceber que em essência nada mudou! Houve inovação científica e tecnológica nos modos de produção, houve mecanização; mas, para por aí. Esse segmento da elite brasileira se mantém inabalável na manutenção da sua estrutura histórica, à revelia do que possa manifestar ou indicar a realidade contemporânea.

O recente caso de desmatamento químico realizado por um pecuarista, na região do Pantanal 1, diz muito a esse respeito. Desconsiderando quaisquer discussões nacionais ou internacionais, quaisquer estudos e legislações socioambientais vigentes, a ideia de destruir áreas de extrema importância ecossistêmica e assim, ampliar os espaços de pastagem para o gado, explica como esse tipo de episódio culmina em desastres ambientais de proporções inimagináveis. Como o rastro do extrativismo exploratório das madeiras de lei, incluindo o pau-brasil, durante as primeiras décadas da colonização brasileira.

Mas, não é só isso o que perturba e desconforta! Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, “O Brasil registrou, em 2023, o maior número de denúncias de trabalho escravo e análogo à escravidão da história do país. Segundo a pasta, foram 3.422 denúncias protocoladas em 12 meses”  2. Fatos que levaram o Ministério do Trabalho e Emprego, por meio da Secretaria de Inspeção do Trabalho, a criar um cadastro a respeito, denominado “Lista Suja” 3, o qual indicou que dentre as atividades econômicas com maior número de empregadores inclusos estão: trabalho doméstico (43) 4, cultivo de café (27) 5, criação de bovinos (22), produção de carvão (16) e construção civil (12)”.

E enquanto o Ministério da Agricultura e Pecuária, por meio da Secretaria de Comércio e Relações Internacionais, divulga que “Os cinco principais setores exportadores do agronegócio brasileiro em março foram: complexo soja (44,3% de participação nas exportações do agronegócio brasileiro); carnes (12,8% de participação); complexo sucroalcooleiro (11,3% de participação); produtos florestais (9,4% de participação); café (5,7% de participação)” 6, o Anuário Estatístico da Agricultura Familiar 2023, divulgado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), “aponta que a agricultura familiar brasileira é a principal responsável pelo abastecimento interno, com produtos saudáveis e manejo sustentável dos recursos ambientais” 7.

Mas, não se pode esquecer, também, da questão do Marco Temporal, uma tese jurídica na qual os povos indígenas têm o direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam na data da promulgação da Constituição Federal de 1988. Acontece que “um movimento capitaneado por parlamentares da bancada ruralista no Senado liderou a aprovação por 43 votos a favor e 21 contra de um projeto de lei que estabelece o marco temporal e uma série de outras medidas”, o que segundo parlamentares governistas, ambientalistas e lideranças indígenas representa um “retrocesso a 1500 (ano de chegada dos portugueses ao Brasil)” 8.

A verdade é que há muito mais a se refletir a respeito 9. Acontece que para essa reflexão é necessária disposição, vontade genuína; posto que, estamos tratando de pouco mais de 500 anos de história, de questões intrínsecas à identidade nacional. É difícil desconstruir velhos paradigmas, velhas práxis.

Mas, pouco importa. Independentemente de mim, de você, do outro, a força das conjunturas é sempre implacável e, no momento exato, que só ela sabe qual é, não se curvará mais às vontades e quereres de ninguém.

Quando menos se esperar, o insólito roubará a cena e mudará o curso da realidade, sem qualquer cerimônia. Por isso, tenhamos sempre em mente que nada é, tudo está. Esse é o fluxo natural da transitoriedade do mundo, a vida em si, a grande lição a ser aprendida e respeitada.  



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Fonte: Alexandre Oliveira - Marketing, Comunicação e Relacionamento / Grupo Luta pela Vida