O
desperdício e a fome
Por Alessandra
Leles Rocha
Aqueles que já tiveram a
oportunidade de ler o poema “O Bicho”, de Manuel Bandeira, escrito em
1947, podem imaginar o que é a fome para um ser humano. Não há sobrevivência
sem alimento; por isso, essa circunstância é a materialização da perda da dignidade
existencial. De modo que, em pleno século XXI, quando a Organização das Nações
Unidas (ONU) através de seu relatório “O Estado da Segurança Alimentar e da
Nutrição no Mundo (SOFI)”, publicado em 2024, manifesta que “Cerca de
733 milhões de pessoas passaram fome em 2023, o equivalente a uma em cada 11
pessoas no mundo e uma em cada cinco na África”, deveríamos entender as
informações como um dos vieses do nosso fracasso civilizatório.
Afinal de contas, a fome não é só
a ausência de alimento. O retrato da chamada insegurança alimentar é composto
por diversas variáveis: eventos extremos do clima, custo elevado,
inacessibilidade geográfica, existência de conflitos e guerras, aprofundamento das
desigualdades socioeconômicas, e o desperdício. O que significa que por trás da
face bruta da fome existe uma certa engenhosidade maquiavélica promovida pelo
próprio ser humano. Aliás, isso me faz lembrar a seguinte citação de Bertolt Brecht,
“Para quem tem uma boa posição social, / falar de comida é coisa baixa. / É
compreensível: eles já comeram”.
De fato, Brecht tinha razão. É
das camadas mais privilegiadas da população que se permite os grandes atentados
contra a dignidade humana, incluindo a fome. Não, porque essas pessoas não
saibam que a fome existe e massacra e mata milhões, pelo mundo. Mas, porque não
é do seu interesse, ou da sua disposição, abdicar de todas as regalias e prerrogativas
sociais, que sempre desfrutaram, em prol da mitigação das desigualdades. A fome não os afeta, dada a convicção de
superioridade, de importância e de poder, que possuem as classes dominantes.
Aliás, me deparei com um vídeo,
postado por um veículo de informação alternativo 1,
mostrando o trabalho de um youtuber, que fez um compilado de vídeos postados
entre 2019 e 2024, a respeito do desperdício de toneladas de alimentos, por
agricultores brasileiros, para forçar a alta dos preços no mercado. Depois, uma
matéria sobre o mesmo assunto, postada em um site 2.
Tais relatos dão conta de uma desumanidade mesquinha estarrecedora! Razão
pela qual sou obrigada a concordar com as palavras de Ismail Serageldin,
diretor fundador da nova Biblioteca de Alexandria, “A fome é um Holocausto
silencioso. Custa milhares de vidas e, ainda assim, não gera comoção ou debate”;
por isso, parece tão fácil e indolor promover o desperdício de alimentos, por
alguns indivíduos.
Segundo matéria publicada em
2024, “A FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e
Agricultura) estima que cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são
perdidas ou desperdiçadas todos os anos — um cenário ainda mais preocupante
quando lembramos das milhões de pessoas que precisam se alimentar” 3. Acontece que, no caso citado
acima, são alimentos em condições próprias de consumo. Alimentos que seriam
encaminhados aos mercados consumidores se não fosse uma decisão deliberada dos
próprios agricultores, para pressionar o governo.
É importante ressaltar que por
trás desse comportamento abjeto está a oposição político-partidária. Considerando
que a defesa do bem-estar e da igualdade social é comumente associada às alas
progressistas, a oposição prefere desperdiçar os alimentos ao invés de
distribuí-los. Como se um gesto empático e altruísta, de sua parte, pudesse
beneficiar a popularidade do progressismo nacional. Traço do nosso ranço
colonial? Certamente. A resultante de séculos de desigualdades, no país, é
essa.
A compreensão de que “A fome
não é somente um fator de destruição da saúde e do vigor físico. Ela é ainda,
em maior grau, um fator de desagregação moral “(Sergius Morgulis) é
fundamental. A presença da fome, em qualquer país do mundo, é motivo, ou
deveria ser, de vergonha, de expressão da nossa ausência de senso humanitário. Em
síntese, isso significa que a fome é um dos vieses da Necropolítica, ou seja, da
“capacidade de estabelecer parâmetros em que a submissão da vida pela morte
está legitimada” 4. Uma
filosofia que não se baseia somente em deixar morrer; mas, fazer morrer também.
Daí a necessidade de parar e
refletir sobre o princípio da dignidade humana, ou seja, a garantia das
necessidades vitais de cada indivíduo. E as formas de promovê-la incluem o respeito
à integridade física e psicológica, o acesso à saúde e educação, a liberdade de
expressão, a igualdade de direitos, o combate à discriminação, e as condições
de trabalho justas e seguras. Não se pode falar em progresso e/ou desenvolvimento,
quando a humanidade está marcada pela indignidade. Por isso, lembre-se: “A
fome dos outros condena a civilização dos que não têm fome” (Dom Hélder Câmara).