quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

O desperdício e a fome


O desperdício e a fome

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Aqueles que já tiveram a oportunidade de ler o poema “O Bicho”, de Manuel Bandeira, escrito em 1947, podem imaginar o que é a fome para um ser humano. Não há sobrevivência sem alimento; por isso, essa circunstância é a materialização da perda da dignidade existencial. De modo que, em pleno século XXI, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) através de seu relatório “O Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo (SOFI)”, publicado em 2024, manifesta que “Cerca de 733 milhões de pessoas passaram fome em 2023, o equivalente a uma em cada 11 pessoas no mundo e uma em cada cinco na África”, deveríamos entender as informações como um dos vieses do nosso fracasso civilizatório.  

Afinal de contas, a fome não é só a ausência de alimento. O retrato da chamada insegurança alimentar é composto por diversas variáveis: eventos extremos do clima, custo elevado, inacessibilidade geográfica, existência de conflitos e guerras, aprofundamento das desigualdades socioeconômicas, e o desperdício. O que significa que por trás da face bruta da fome existe uma certa engenhosidade maquiavélica promovida pelo próprio ser humano. Aliás, isso me faz lembrar a seguinte citação de Bertolt Brecht, “Para quem tem uma boa posição social, / falar de comida é coisa baixa. / É compreensível: eles já comeram”.

De fato, Brecht tinha razão. É das camadas mais privilegiadas da população que se permite os grandes atentados contra a dignidade humana, incluindo a fome. Não, porque essas pessoas não saibam que a fome existe e massacra e mata milhões, pelo mundo. Mas, porque não é do seu interesse, ou da sua disposição, abdicar de todas as regalias e prerrogativas sociais, que sempre desfrutaram, em prol da mitigação das desigualdades.  A fome não os afeta, dada a convicção de superioridade, de importância e de poder, que possuem as classes dominantes.  

Aliás, me deparei com um vídeo, postado por um veículo de informação alternativo 1, mostrando o trabalho de um youtuber, que fez um compilado de vídeos postados entre 2019 e 2024, a respeito do desperdício de toneladas de alimentos, por agricultores brasileiros, para forçar a alta dos preços no mercado. Depois, uma matéria sobre o mesmo assunto, postada em um site 2. Tais relatos dão conta de uma desumanidade mesquinha estarrecedora! Razão pela qual sou obrigada a concordar com as palavras de Ismail Serageldin, diretor fundador da nova Biblioteca de Alexandria, “A fome é um Holocausto silencioso. Custa milhares de vidas e, ainda assim, não gera comoção ou debate”; por isso, parece tão fácil e indolor promover o desperdício de alimentos, por alguns indivíduos.

Segundo matéria publicada em 2024, “A FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) estima que cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são perdidas ou desperdiçadas todos os anos — um cenário ainda mais preocupante quando lembramos das milhões de pessoas que precisam se alimentar” 3. Acontece que, no caso citado acima, são alimentos em condições próprias de consumo. Alimentos que seriam encaminhados aos mercados consumidores se não fosse uma decisão deliberada dos próprios agricultores, para pressionar o governo.

É importante ressaltar que por trás desse comportamento abjeto está a oposição político-partidária. Considerando que a defesa do bem-estar e da igualdade social é comumente associada às alas progressistas, a oposição prefere desperdiçar os alimentos ao invés de distribuí-los. Como se um gesto empático e altruísta, de sua parte, pudesse beneficiar a popularidade do progressismo nacional. Traço do nosso ranço colonial? Certamente. A resultante de séculos de desigualdades, no país, é essa.

A compreensão de que “A fome não é somente um fator de destruição da saúde e do vigor físico. Ela é ainda, em maior grau, um fator de desagregação moral “(Sergius Morgulis) é fundamental. A presença da fome, em qualquer país do mundo, é motivo, ou deveria ser, de vergonha, de expressão da nossa ausência de senso humanitário. Em síntese, isso significa que a fome é um dos vieses da Necropolítica, ou seja, da “capacidade de estabelecer parâmetros em que a submissão da vida pela morte está legitimada” 4. Uma filosofia que não se baseia somente em deixar morrer; mas, fazer morrer também.

Daí a necessidade de parar e refletir sobre o princípio da dignidade humana, ou seja, a garantia das necessidades vitais de cada indivíduo. E as formas de promovê-la incluem o respeito à integridade física e psicológica, o acesso à saúde e educação, a liberdade de expressão, a igualdade de direitos, o combate à discriminação, e as condições de trabalho justas e seguras. Não se pode falar em progresso e/ou desenvolvimento, quando a humanidade está marcada pela indignidade. Por isso, lembre-se: “A fome dos outros condena a civilização dos que não têm fome” (Dom Hélder Câmara).

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Que Brasil querem os (as) brasileiros (as)???


Que Brasil querem os (as) brasileiros (as)???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Brasil. 525 anos de história. Assim, encerrado o tempo de viver preso ao passado. A realidade contemporânea do mundo coloca a Terra Brasilis em xeque-mate. Sim, o movimento ultradireitista global, que abriga também as demais faces da Direita, nos impõe uma decisão crucial sobre o futuro.

Até aqui, pouco mais de meio milênio, o Brasil se permitiu ser a reverberação do seu ranço colonial, em suas mais diversas camadas. Pois é, nem a independência da Metrópole Portuguesa, nem a chegada da República, foram suficientes para a construção de uma identidade nacional alinhada ao espírito democrático, como seria de se esperar. Permanecemos plutocráticos, conservadores, populistas, ... e; sobretudo, mantenedores de uma organização social flagrantemente desigual. De modo que o país arrasta suas mazelas sem grandes perspectivas de mudança.

E esse é o ponto. A grande massa brasileira, que sustenta o topo da pirâmide social, foi alienada a viver de migalhas, de raspas e de restos, por assim dizer. Nem mesmo, quando o voto, um direito cidadão, tornou-se universalizado, o (a) brasileiro (a) não se apropriou do seu protagonismo a respeito. Haja vista que em plena era tecnológica, com a urna eletrônica à disposição para tornar o pleito eleitoral ágil e seguro, há quem se permita condicionar a sua escolha a algum tipo de benesse.

Talvez, seja por isso, que a escolha de uma figura representativa, do ponto de vista político-partidário, seja o cerne da deseducação cidadã nacional. Ao depositar a simpatia e/ou o apoio a um certo indivíduo, isso afasta a população de construir uma análise crítica e reflexiva, em torno de todos os atributos necessários ao cargo; bem como, da plataforma política em si.

É, o (a) brasileiro (a) não escolhe propostas, ideias, projetos. Seu voto é distribuído a partir do possível carisma do (a) candidato (a)! Algo que não é somente grave, do ponto de vista cidadão; mas, da manifestação pública de desprezo ao país. O (a) eleitor (a), no fundo, não sabe o que quer para o seu país. Ele (a) não tem uma ideia preconcebida a respeito, ainda que consiga manifestar aspectos do seu desagrado.

Além disso, se ele não sabe o que quer, o que almeja, para o seu país, como esperar que ele entenda minimamente as discussões políticas? Sequer sabem o significado dos termos Direita e Esquerda ou Conservadores e Progressistas. Ou conhecem o trabalho de cada Poder da República. Ou entendem como funciona o sistema de governo vigente no país, o Presidencialismo. Ou percebem a importância de um governo democrático na sua vida cotidiana. Ou reconhecem o grau de prejuízo de certas práxis, como a compra de votos, por exemplo. Enfim...

A verdade é que durante séculos, na historicidade brasileira, os poderes e a governança eram privilégios de pouquíssimos, de modo que aos demais cabia somente aceitar as decisões. Sem ter vez e voz, a dinâmica do exercício democrático lhes passava, literalmente, à margem. Portanto, não houve uma construção do aprendizado cidadão. Ao receberem o direito de voto, a grande maioria da população se viu importante socialmente; mas, não entendeu o grau de responsabilidade que tal gesto significava.

Por essas e por outras, é que o Brasil tem vivido entre aventuras e desventuras. Daí eu ter iniciado essa breve reflexão manifestando que está “encerrado o tempo de viver preso ao passado”. A expansão do neofascismo contemporâneo, ao redor do planeta, através da ultradireita, com apoio das demais faces da Direita, torna urgente e fundamental que as eleições sejam atos de escolhas, verdadeiramente, conscientes e fundamentadas em uma proposta de país. A pergunta a se fazer, então, é: Que Brasil eu quero?

Se for um país que pretende desprezar as liberdades individuais e a democracia representativa, que rechaça os valores coletivos, que cultua a expansão imperialista baseada na ideia de domínio de povos mais vulneráveis, que realiza perseguição e morte daqueles tidos como inimigos, que são incapazes de combater as crises e de levar a nação à prosperidade, que utilizam as massas para exaltar “valores tradicionais” em detrimento de valores considerados “modernos”, você terá um Brasil de viés fascista.

Por outro lado, se for um país que pretende valorizar as liberdades individuais e a democracia representativa, que exalta os valores coletivos, que discorda da expansão imperialista baseada na ideia de domínio de povos mais vulneráveis, que não atua na perseguição e morte de eventuais inimigos, que busca combater as crises e levar a nação à uma condição de igualdade social, que entende o progresso como avanço científico, tecnológico, econômico e comunitário para o aperfeiçoamento da condição humana, você terá  um Brasil de viés democrático e progressista.

Portanto, não é sobre pessoas que temos que discutir. Aliás, porque elas vem e vão, dada a transitoriedade da vida. É sobre que país querem os (as) brasileiros (as) e quais representantes podem efetivamente se ajustar a esse perfil imaginado. Dizia Oscar Wilde que “O descontentamento é o primeiro passo na evolução de um homem ou de uma nação”. Se não gostamos disso ou daquilo temos que ter em mente uma proposta capaz de substituir o nosso descontentamento e buscar por alguém que esteja o mais próximo de tais projeções. Só assim, haverá uma oportunidade de futuro para o Brasil e para seus cidadãos. 

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

A sugestionabilidade social


A sugestionabilidade social

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Temos visto inúmeras tentativas de resgate de velhas práxis, pela Direita e seus matizes; sobretudo, a ultradireita, mundo afora. Embora, uma visão limitada a respeito da dinâmica social, a esperança desses indivíduos é trazer à tona um desfecho diferente e totalmente favorável aos seus interesses.

Nesse sentido, venho acompanhando o que acontece no Brasil. Bem, me parece que só aqueles que jamais estudaram a história nacional para não perceber aquilo que vem sendo desenhado no horizonte. Mais uma vez, o ponto de partida é o inconformismo, por parte de membros, apoiadores e simpatizantes das alas conservadoras nacionais, com a presença de elementos progressistas, no centro do poder nacional.   

Nada surpreendente! Afinal, pela configuração da historicidade brasileira, essas pessoas são herdeiras diretas da monarquia e das elites burguesas que se firmaram aqui. De modo que a sua formação ideológica se pauta nos mesmos valores, crenças e princípios, não havendo qualquer disposição e/ou interesse de reavaliação e transformação deles.

Então, uma vez sentindo-se, de alguma forma, ameaçados pelo progressismo, a figurar no poder, a primeira iniciativa é a manipulação enviesada da população quanto ao governo. Com base em fatos sensíveis à opinião pública, veículos de comunicação e de informação alinhados aos interesses conservadores passam a desenvolver suas notícias sob um viés sugestionável, contrário à governança vigente.

E dentre os instrumentos utilizados estão as pesquisas de opinião. Acontece que a estatística pode ser sim, afetada por diversos fatores alheios à matemática. Pensando na polarização político-partidária existente no país, a aleatoriedade, por exemplo, é um fator crucial.

Vamos supor uma pesquisa realizada por telefone. Se estabelece um número de ligações para a amostragem. Entretanto, os números selecionados podem traduzir uma predominância geográfica de um dos polos. O que significa que o resultado vai beneficiar um lado em detrimento de outro. Isso quer dizer que a metodologia necessita de isenção para refletir exatamente a realidade dos fatos.

Além disso, não se pode desconsiderar o poder de influência das mídias sociais na construção do inconsciente coletivo. De certa forma, as pesquisas tendem a sofrer a interferência de um pensamento preconcebido, disseminado através do mundo virtual, de maneira maciça. O pensamento já foi tão cooptado por certas ideias que as respostas acabam sendo fruto de um efeito manada.

Conseguido algum tipo de apoio ou simpatia da opinião pública, a seara político-partidária contrária ao governo parte, então, para outras estratégias. Uma delas é a proposição de um novo regime de governo, o qual retire do atual a força do seu poder. Como já aconteceu no passado, com a instituição do parlamentarismo. Uma manobra malsucedida e que, em 1993, foi definitivamente rechaçada através do plebiscito que demandava escolher entre monarquia ou república (forma de governo) e parlamentarismo ou presidencialismo (sistema de governo).

Outra questão, trazida à tona, é promover alterações na Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135, de 04/06/2010). Fruto de uma iniciativa popular, ela tem por propósito “incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato”.

O que significa flexibilizar ou relativizar a moralidade político-partidária, no país, para que elementos da Direita e seus matizes; sobretudo, a ultradireita, atualmente impedidos, possam retornar ao poder. Uma forma de fortalecer a ala conservadora nos espaços do poder nacional.

Sem contar, todo empenho dedicado a anistiar os envolvidos nos atos antidemocráticos, que culminaram na depredação do patrimônio público e dos prédios dos 3 Poderes, em Brasília, em 08 de janeiro de 2023. Nada mais do que uma tentativa de reproduzir à relativização da gravidade dos atos ocorridos, como no caso da Lei da Anistia (lei n.º 6.683, de 28/08/1979).

Dizia o filósofo grego, Platão, “Não espere por uma crise para descobrir o que é importante em sua vida”. Diante dessas breves considerações, vê-se que a sugestionabilidade social não pode ser menosprezada. Ela é o ponto de partida para a legitimação de atos profundamente danosos à Democracia, ao Estado de Direito, às instituições e à cidadania.  Porque, “Não são as nossas ideias que nos fazem otimistas ou pessimistas, mas o otimismo e o pessimismo de origem fisiológica que fazem as nossas ideias” (Miguel Unamuno).

Portanto, lembre-se das palavras de Confúcio, “Há três métodos para ganhar sabedoria: primeiro, por reflexão, que é o mais nobre; segundo, por imitação, que é o mais fácil; e terceiro, por experiência, que é o mais amargo”. Só assim, sabendo discernir é que nos tornamos capazes de nos posicionar autonomamente, sem nos submeter a quaisquer sugestões alheias. Afinal, “A democracia é atividade criadora dos cidadãos e aparece em sua essência quando existe igualdade, liberdade e participação” (Marilena Chaui). 

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Bravo! Bravíssimo!


Bravo! Bravíssimo!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Eu tenho defendido, há tempos, que está na força das conjunturas o movimento que desenha a história. Por isso, não há coincidência e nem acaso. Tudo acontece fora das lentes, das percepções mais sutis. A prova disso pode ser atribuída ao filme “Ainda estou aqui” (2024), de Walter Salles. Um sucesso arrebatador, que transcendeu as fronteiras nacionais, para marcar as páginas da sétima arte, mundo afora.

Bem, para entender o que está acontecendo é fundamental prestar contas à linearidade da vida. Não existiria o filme sem o livro, sobre o qual ele foi baseado. Carlos Drummond de Andrade dizia: “Escritor: não somente uma certa maneira especial de ver as coisas, senão também uma impossibilidade de as ver de qualquer outra maneira”. De fato. Marcelo Rubens Paiva ao permitir contar a história da sua família, através da figura emblemática da sua mãe, Eunice, jamais poderia supor a reverberação que se daria dessa iniciativa.

Coisas que só um (a) filho (a) poderia produzir! Dada a tal “impossibilidade de ver as coisas de qualquer outra maneira”. O resultado foi sucesso. A obra literária chegou para tocar corações e mentes, pelas palavras tecidas na fonte das memórias, das vivências, das aventuras e das desventuras. Leitores diversos e plurais puderam mergulhar naquelas páginas, não somente se emocionando; mas, construindo uma reflexão empática que não se limita ao tempo ou ao espaço. O que não se sabia era que as conjunturas já estavam trabalhando a todo vapor.

Alguém que não poderia deixar de prestigiar o livro, Walter Salles tinha uma relação de amizade antiga com a família Paiva. De algum modo, muito especial, cada palavra era capaz de lhe ressoar uma lembrança. Então, na introspecção do seu processo de leitura, eis que pensamentos começaram a dar forma ao que poderia se tornar um outro caminho para aquela obra literária. Assim, passo a passo, as sementes começaram a germinar e a constituir uma estrutura para o universo cinematográfico. E a escolha do elenco, podemos dizer que foi a cereja do bolo. Perfeita! Como em um encontro único, incrível, no qual as personagens e seus intérpretes compuseram uma força única para a interpretação.

Aí, então, Fernanda Torres abriu as asas do seu talento, protagonizando a personagem principal, Eunice Paiva. Do mesmo modo que Marcelo não poderia imaginar os caminhos que seguiriam sua obra literária, Fernanda também não. O que faz ambos desfrutarem desse sucesso retumbante reside, justamente, na tal “impossibilidade de ver e fazer as coisas de qualquer outra maneira”. Daí o resultado surpreendente! Livro e filme trazem em si, a digital do afeto que move a entrega plena, do ser humano, a um trabalho. Antes de estabelecer qualquer diálogo com o mundo exterior, é preciso dialogar consigo mesmo.

Mas, isso não é tudo. As conjunturas parecem querer mais. O filme “Ainda estou aqui” provocou uma verdadeira desconstrução na percepção da identidade nacional brasileira. Ele já superou a marca de 5 milhões de espectadores na história do cinema nacional e vem promovendo um despertar coletivo, em torno da nossa historicidade. A visão histórica brasileira está renascendo da necessidade da análise crítica e reflexiva dos acontecimentos de ontem e de hoje.

E o cinema, nesse sentido, tem exercido um papel, na sociedade mundial, extremamente importante. A realidade factual como elemento propulsor para contar histórias tem sido muito bem recompensada. Contrariando as forças obscuras da pós-verdade, a sétima arte vem destacando filmes que discutem a verdade em si, que abordam a realidade por essa perspectiva factual. Seja nas linhas ou nas entrelinhas dos roteiros, a ideia do cinema tem sido capturar a atenção reflexiva do público espectador.

Haja vista o sucesso de Oppenheimer, em 2024, cujo roteiro aborda a jornada do físico teórico Oppenheimer, considerado como o “pai da bomba atômica”, em razão do seu papel no Projeto Manhattan, um empreendimento, durante a Segunda Guerra Mundial, para desenvolvimento de armas nucleares. Mas, é só fazer uma breve recapitulação sobre os filmes premiados, nos últimos anos, por diversas academias de cinema, para constatar esse movimento. Afinal, como bem escreveu Eduardo Galeano, “A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la” [1]; e, as artes são, sem dúvida alguma, o espelho que fazem os Narcisos aprenderem a lidar com aquilo que não é belo; mas, é fundamental visualizar.  



[1] As veias abertas da América Latina (1971). 

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Ainda somos os mesmos ...


Ainda somos os mesmos ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É, o mundo do século XXI ainda se fundamenta pela expressão “Os fins justificam os meios”, uma paráfrase de Nicolau Maquiavel, que viveu entre os séculos XV e XVI.  Acontece que para toda ação há uma reação. De modo que as palavras do renascentista italiano abdicam de trazer à discussão quanto aos desdobramentos e consequências inerentes ao processo.

Dito isso, penso que seja prudente aos cidadãos do mundo a consciência de não apostarem suas fichas na conquista de um modelo de sustentabilidade socioambiental, conforme clamam as demandas planetárias. Infelizmente, grande parte das nações persiste em relativizar o recrudescimento dos impactos ambientais e dos eventos extremos do clima, apesar de todo o embasamento científico comprobatório.

Não, não há somente negacionismo vigorando sobre o assunto. Há, também, o relativismo. De modo que ambos impõem um jogo perigoso com o tempo, como se fosse possível flexibilizar os desastres ambientais à uma postergação indefinida. Porém, isso é pura insanidade idealista. Não existe a terceira margem da história, ou seja, ou defendemos um modelo de sustentabilidade socioambiental para o planeta ou nos entregamos de corpo e alma ao velho ideário desenvolvimentista.

Bem, a historicidade prova, por a mais b, que o desenvolvimentismo não foi capaz, em tempo algum, de aparar as arestas das desigualdades, por onde passou. Suas práxis são puramente exploratórias e degradantes, seja do ponto de vista das riquezas vegetais e minerais; mas, da própria população local. O ciclo de exploração da borracha, na Amazônia, é um exemplo disso. Milhares de pessoas acabaram mortas pela ação da tríade da fome, das doença e do abandono estatal, no fim do século XIX e início do século XX. Afinal, essa parece ser a estratégia empregada. Sensibilizar a opinião pública, de alguma forma, visto que, a verdade não consegue angariar apoio.  

Por isso, caro (a) leitor (a), não é só a extração de petróleo na foz do rio Amazonas, o que preocupa. Muitos devem se lembrar de como o país encontrou os Yanomamis, no início de 2023. O franco processo de extermínio a que haviam sido submetidos pelo total abandono do Estado brasileiro, tinha como pano de fundo a extração mineral aurífera. Então, se formos pensar em todo o potencial mineral existente na vasta territorialidade brasileira, começamos a entender a dimensão da ameaça que afeta não só o meio ambiente e seus recursos naturais; mas, milhares de cidadãos, habitantes dessas localidades.

Ora, a natureza sempre foi dinâmica. Mas, após a deflagração da 1ª Revolução Industrial e todo o processo de transformação socioambiental que ela desencadeou, a incidência dos impactos ambientais negativos passou a ser cada vez mais recorrente e avassaladora. Mesmo com a criação de instrumentos legais e de fiscalização, os riscos na contemporaneidade parecem, cada vez mais, subdimensionados, dada a força imposta pelos episódios extremos que vêm ocorrendo sistematicamente.

A verdade é que os sistemas de prevenção de desastres ambientais se mostram insuficientes e ineficientes para a realidade atual. E apesar dessa constatação, o país continua caminhando pela trilha de medidas minimamente mitigadoras, as quais não tendem a proteger nada e nem ninguém. No entanto, a sanha desenvolvimentista continua a todo vapor! Velhas mazelas. Novas mazelas. Nem sinal de que o desenvolvimentismo conseguiu dar um jeito de resolver os problemas que se arrastam historicamente, no país. Ao invés de diminuir, eles só fazem aumentar e se aprofundar. E quando chegam as eleições, se transformam em pauta de campanha, no mesmo lenga-lenga de promessas.  

Nos últimos tempos tem se usado muito o termo genocídio para explicar os acontecimentos beligerantes, em curso, no planeta. Muitos dedos em riste, para uns e outros, justificados pela participação inconteste deles no morticínio de milhares de pessoas. Mas, o que dizer do genocídio ambiental?

Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), “Dos mais de 120 milhões de deslocados forçados no mundo, três quartos vivem em países fortemente impactados pelas mudanças climáticas. Metade está em locais afetados por conflitos e riscos climáticos, como Etiópia, Haiti, Mianmar, Somália, Sudão e Síria” 1.

A permanecer-se distante da consolidação de um modelo de sustentabilidade socioambiental, o planeta Terra, em breve, estará diante de um extermínio ambiental, em massa, da sua população. Os mais de 8 bilhões de seres humanos estão sim, sob ameaça de morrerem por fome, por sede, por frio, por calor extremo, por afogamento, por deslizamento de terra, por tsunamis, por furacões, por vulcões e/ou por terremotos.

Decorrências diretas e indiretas das ações antrópicas realizadas, que romperam com o equilíbrio natural e geográfico, nos últimos séculos. Porém, dessa vez, longe de ser um extermínio por raça, etnia ou religião, ele será a consequência fatal da deliberação contra a sobrevivência da raça humana em si. O que significa que por trás de cada vida ceifada irá se saber que os algozes foram a ganância, a cobiça e o poder, apropriados por certas figuras despidas da sua própria humanidade.  

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Conspiram golpes. Conspiram anistias.


Conspiram golpes. Conspiram anistias.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A conspiração em favor da anistia aos envolvidos em toda a trama golpista, que culminou no 08 de janeiro de 2023, é a manifestação explícita do ranço colonial brasileiro. Aos que ainda não se deram conta, a Direita e seus matizes são frutos das elites coloniais; sobretudo, do seu ideário retrógrado e da sua excessiva soberba social.

Portanto, uma gente que se entende acima do bem e do mal, nascida para ostentar uma superioridade inabalável, a qual não precisa responder por quaisquer atos de incivilidade ou de anticidadania. Acontece que só clama por perdão quem admite ter errado. O que significa que não restam dúvidas, aos próprios envolvidos, a sua responsabilidade em tais eventos.

Apesar de todas as regalias e privilégios, os quais muitos desse grupo desfrutam, nada disso é prerrogativa para absolvê-los de suas práxis ilícitas. Atentar contra a Democracia, à Constituição Federal, às instituições e o país em si, não é fato banal. Essas pessoas tentaram impor uma onda gigantesca de instabilidade ao cenário nacional, que poderia ter tido um desfecho ainda mais tenebroso.

Tudo por conta de considerarem que o país lhes pertence. Uma convicção desvirtuada em torno do direito de propriedade, como tantas interpretações fajutas já manifestas sobre outros assuntos. Por trás desse pensamento insano estão muitos descendentes diretos das oligarquias históricas; mas, também, outros tantos que chegaram aos andares superiores do poder, por força de novos arranjos das elites.

O certo é que se sentem uma casta de escolhidos. E por essa razão, pensam que mandam e desmandam, no país, à revelia das leis, das instituições, ou de quem quer que seja. Então, basta que se sintam contrariados, por alguém ou alguma situação, eles abdicam dos bons modos e da civilidade, para resolver tudo, segundo o seu próprio modus operandi. Afinal, sob seu ponto de vista, pessoal e intransferível, eles estão historicamente legitimados, para tal.

Entretanto, por sorte, depois de pouco mais de 500 anos de história, de muitos giros e rodopios, o Brasil não é mais o mesmo. Muita água rolou por debaixo das pontes, nesse país! E se a Democracia ainda é muito jovem, por aqui, ela não parece concordar em fazer vistas grossas aos insultos e violências que lhes são desferidos. Na verdade, ela anda sem paciência com certos melindres e chiliques, de uns e outros. O que a tem feito reunir muita gente que pensa da mesma forma e aspira pelo mesmo desejo de colocar a história no seu devido lugar.

A ideia de passar a limpo, não cabe. O que foi, já foi. Mas, o rescaldo triste e vergonhoso de tempos sombrios e deploráveis, esse sim, pode construir uma consciência que não permite repetir os velhos erros, trazendo uma oportunidade humanizada para o futuro. Por isso, os chamados “donos da bola” não podem continuar botando banca, transparecendo-se superiores, intimidando, constrangendo, humilhando, quem não se rende ao seu vociferar mandão.

Veja, como tudo isso é uma caricata reprodução dos nossos tempos coloniais. O mesmo comportamento arbitrário, tirano, dominador, da Metrópole que nos colonizou, agora, serve de modelo de inspiração para a Direita e seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas. Até onde me lembro, poucas foram as Metrópoles, as quais, hoje, na condição de importantes nações desenvolvidas, pediram anistia pelos seus atos mais abomináveis, reprováveis, indignos, cometidos contra as suas ex-colônias.

Talvez, porque sua própria consciência lhes tenha feito perceber a dimensão da impossibilidade de clamar por perdão oficial, considerando a brutalidade, a perversidade, a beligerância, com que afetaram a vida de milhares de seres humanos indefesos, transformando o curso de suas histórias, de maneira definitiva.  O que nos faz perceber, como as tentativas de esconder, de invisibilizar, de manipular, de distorcer a história são inócuas, frente a robustez da memória em torno dos fatos em si.

A dinâmica da vida não se apaga, dadas as lembranças, as memórias, todo uma historicidade registrada. De modo que, em síntese, anistias têm efeito reverso. Elas são reafirmações e revivências do que se pretende esconder, ocultar, esquecer. Elas dizem em alto e bom tom a verdade indigesta dos fatos. Acontece que ao se anistiar indivíduos adultos, pessoas dotadas de consciência e responsabilidade cidadã, o Estado os infantiliza, ou seja, imputa-lhes uma incapacidade de assumir seus próprios erros. Uma brecha para que venham repetir sua má conduta, seu delito, uma outra vez. Portanto, é como disse Benjamin Franklin, “Tudo o que começa com raiva acaba em vergonha”. 

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

CORRUPÇÃO ...


CORRUPÇÃO ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Segundo o relatório anual da Transparência Internacional sobre o Índice de Percepção de Corrupção, o qual estabelece o ranking dos países do mundo de acordo com o grau em que a corrupção é percebida como existente entre os funcionários públicos e políticos, o Brasil apresentou retrocesso e ficou na 107ª posição na edição de 2024.

Lamento, mas corrupção no Brasil é presença constante na sua historicidade. Eu sei que a corrupção não é um privilégio nacional; mas, por aqui ela é uma terrível endemia. Não pelo fato das práxis em si; mas, pelo modo como a própria sociedade lida e trivializa os acontecimentos.

Corrupção não é só um caso de polícia, de justiça. Mais do que isso, corrupção é caso de profundo desvirtuamento e desconsideração com a própria identidade cidadã. Trata-se da manifestação mais contundente da desimportância que se dá ao senso coletivo. Um olhar estritamente individualista e narcísico.

Mas, não para por aí. A corrupção também encontra espaço para prosperar, por conta das fragilidades e vulnerabilidades democráticas, dos excessos burocráticos, da plutocracia 1, das desigualdades socioeconômicas, dos baixos níveis educacionais. Afinal, esse emaranhado contexto social dificulta a promoção de políticas adequadas e eficazes contra a corrupção.

Por isso, se engana quem pensa que a corrupção só existe mediante grandes ilícitos. Não. A corrupção come pelas beiradas. Lenta e gradualmente. Suborno. Peculato (Apropriação indébita ou Rachadinha).  Tráfico de influência. Fisiologismo. Nepotismo. Clientelismo. ... Somente, quando a situação já está impossível de esconder é que a notícia explode para conhecimento da opinião pública.

Aí, se tem a grande decepção. Por mais que a polícia e a justiça se empenhem no combate às práxis da corrupção, chegou-se a um ponto, no país, que a sociedade não mais se escandaliza ou enfurece, a respeito. Simplesmente, vê os casos como algo trivial, banal, natural à historicidade brasileira.

Acontece que esse pensamento legitima a corrupção. Daí ela persistir; pois, não encontra uma resistência social forte e robusta. Além disso, é importante ressaltar que esse comportamento, também, contribui significativamente para uma explosão de absurdos, os quais pelo fato de serem amparados por lei, não se caracterizam como crimes. Porém, do ponto de vista ético e moral são tão escandalosos e ultrajantes quanto a corrupção.

É o caso, por exemplo, dos supersalários. Enquanto milhões de brasileiros fazem malabarismos econômicos para sobreviver com seu salário-mínimo, uma parcela ínfima de cidadãos, que atuam nas estruturas dos Poderes da República, desfrutam de pequenas fortunas pagas mensalmente. Sim, além dos salários vultosos, essa gente incorpora uma série de benefícios adicionais, os chamados penduricalhos.

Algo que rompe flagrantemente com o princípio da igualdade constitucional. Não, não somos iguais, caro (a) leitor (a)! Por conta dessas regalias e privilégios, esses indivíduos são alçados a uma posição de superioridade e importância, a qual sequer os permite ver, com nitidez e clareza, a dura realidade da grande massa da população. Talvez, por isso, as mazelas que se arrastam historicamente, no país, lhes passem sempre despercebidas.

É, já dizia o Barão de Montesquieu, “A corrupção dos governantes quase sempre começa com a corrupção dos seus princípios”. Vale ressaltar, ao ler governantes, leia-se todos aqueles que são cobertos por regalias e privilégios custeados com o dinheiro público. São esses que se permitem flexibilizar seus princípios a fim de satisfazer suas conveniências e interesses.

Por essas e por outras, “Quando observares a corrupção a ser recompensada e a honestidade a converter-se em autossacrifício; então poderás constatar que a tua sociedade está condenada” (Ayn Rand). É nesse tipo de autorreflexão que reside o ímpeto de resgatar o pudor cidadão, capaz de não permitir a continuidade e a perpetuação da banalização ou da trivialização dos atos que afrontam a ética e a moral, no país.