domingo, 5 de janeiro de 2025

A Medicalização da “Felicidade”


A Medicalização da “Felicidade”

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não é necessário ser nenhum expert para perceber o nível de pressões e tensionamentos sociais, as quais vivem a população contemporânea. Sob diferentes formas, milhões de seres humanos são levados a se equilibrar, diariamente, por conta de uma extenuante jornada de tarefas, obrigações e compromissos, imersos em uma teia invisível de ritos e protocolos sociais a serem seguidos.  

Ora, o resultado disso não poderia ser outro! A população global está adoecendo; sobretudo, do ponto de vista mental. Ao comprometer a sua saúde identitária, essas pessoas tendem a reverberar uma série de consequências, altamente perigosas. De modo que elas vão perdendo a sua capacidade de se manter, muitas vezes, inseridas e aceitas socialmente. E para evitar esse dissabor social, muitas delas acabam recorrendo à chamada medicalização.

É, ao invés de estabelecerem um balanço a respeito da sua realidade, indo ao cerne das questões que, de fato, desestabilizam a sua estrutura psicoemocional, elas vão pelo atalho arriscado de substâncias psicoativas de uso farmacológico, tais como os opioides e os ansiolíticos. No entanto, o uso contínuo e prolongado desses medicamentos leva à dependência, com uma série de consequências adversas ao seu estado de saúde e às suas relações interpessoais. Estabelecendo um ciclo difícil de ser rompido.

Assim, estamos diante de uma medicalização da “felicidade”. Para fazer frente à frenética busca pela aceitação, pertencimento, reconhecimento, produtividade e sucesso, o ser humano recorre às substâncias psicoativas. Inclusive, porque elas lhe conferem uma certa proteção, quanto à estigmatização conferida ao uso de outras substâncias, tais como o álcool, a maconha, a cocaína, o crack. O uso de medicamentos acontece, geralmente, de maneira discreta e privada, sem a presença de outras pessoas.

Então, o usuário tem a falsa impressão de que não está transitando pelo caminho do vício, apenas está se medicando em relação a certas manifestações de transtorno mental, ou seja, depressão, bipolaridade, estresse pós-traumático, transtorno obsessivo-compulsivo, transtornos alimentares, ...  Ele acredita estar se tratando de questões que ele próprio identificou, que o incomodam e precisam ser resolvidas de algum modo; mas, de maneira bastante particular.

Acontece que toda medicação produz efeitos colaterais diversos, dependendo do organismo humano. Cada corpo responde de uma maneira específica à quantidade e ao tempo de exposição à uma dada substância química. De modo que esse processo tende a estabelecer uma série de consequências que não podem mais ser ocultadas no campo das relações sociais. De repente o indivíduo, à revelia do seu autocontrole, passa a manifestar mudanças tão abrutas no seu comportamento e nas suas emoções, que essas passam a afetar diretamente na sua inserção social.

O que significa que essa medicalização não só é um problema de Saúde Pública; mas, também, de caráter socioeconômico.  Há uma visível restrição social a essas pessoas, inclusive, no campo de trabalho. Algo que tende a acentuar e a agravar o seu quadro de dependência química. A crise dos opioides, por exemplo, que mata mais de 200 pessoas por dia nos EUA merece total atenção da sociedade e das autoridades mundiais. Porque, “Medicamentos como fentanil, codeína e oxicodona são analgésicos eficazes e seguros quando prescritos por um médico. Mas, sem orientação de especialista ou para uso recreativo, há um alto risco de o indivíduo desenvolver dependência” 1.

Vejam a que ponto a sociedade de consumo chegou! A ideia de que tudo poderia ser adquirido nas melhores lojas do ramo, ao preço acessível de cada bolso, chegou ao limite de fazer milhões de pessoas acreditarem que a sua felicidade, o seu bem-estar, o seu equilíbrio psicoemocional, estaria disponível em cápsulas ou comprimidos. A medicalização da “felicidade” é mais um reflexo da insalubridade mental que toma conta de legiões de seres humanos na contemporaneidade.

Em suma, há uma necessidade urgente a respeito, pois esse processo, o qual transforma, artificialmente, questões não médicas em problemas médicos, afeta a sociedade como um tudo e sob diferentes maneiras. Já dizia Érico Veríssimo que a “Felicidade é a certeza de que a nossa vida não está se passando inutilmente”. Portanto, esse é o ponto de análise e reflexão, resgatar a dignidade e os direitos humanos, de maneira plena e profunda, a fim de que o significado e a significância da vida possam transcender ao próprio indivíduo.