A Medicalização
da “Felicidade”
Por
Alessandra Leles Rocha
Não é necessário ser nenhum
expert para perceber o nível de pressões e tensionamentos sociais, as quais
vivem a população contemporânea. Sob diferentes formas, milhões de seres
humanos são levados a se equilibrar, diariamente, por conta de uma extenuante
jornada de tarefas, obrigações e compromissos, imersos em uma teia invisível de
ritos e protocolos sociais a serem seguidos.
Ora, o resultado disso não
poderia ser outro! A população global está adoecendo; sobretudo, do ponto de
vista mental. Ao comprometer a sua saúde identitária, essas pessoas tendem a
reverberar uma série de consequências, altamente perigosas. De modo que elas
vão perdendo a sua capacidade de se manter, muitas vezes, inseridas e aceitas
socialmente. E para evitar esse dissabor social, muitas delas acabam recorrendo
à chamada medicalização.
É, ao invés de estabelecerem um
balanço a respeito da sua realidade, indo ao cerne das questões que, de fato,
desestabilizam a sua estrutura psicoemocional, elas vão pelo atalho arriscado
de substâncias psicoativas de uso farmacológico, tais como os opioides e os
ansiolíticos. No entanto, o uso contínuo e prolongado desses medicamentos leva
à dependência, com uma série de consequências adversas ao seu estado de saúde e
às suas relações interpessoais. Estabelecendo um ciclo difícil de ser rompido.
Assim, estamos diante de uma
medicalização da “felicidade”. Para fazer frente à frenética busca pela
aceitação, pertencimento, reconhecimento, produtividade e sucesso, o ser humano
recorre às substâncias psicoativas. Inclusive, porque elas lhe conferem uma
certa proteção, quanto à estigmatização conferida ao uso de outras substâncias,
tais como o álcool, a maconha, a cocaína, o crack. O uso de medicamentos
acontece, geralmente, de maneira discreta e privada, sem a presença de outras
pessoas.
Então, o usuário tem a falsa
impressão de que não está transitando pelo caminho do vício, apenas está se
medicando em relação a certas manifestações de transtorno mental, ou seja,
depressão, bipolaridade, estresse pós-traumático, transtorno obsessivo-compulsivo,
transtornos alimentares, ... Ele
acredita estar se tratando de questões que ele próprio identificou, que o
incomodam e precisam ser resolvidas de algum modo; mas, de maneira bastante
particular.
Acontece que toda medicação
produz efeitos colaterais diversos, dependendo do organismo humano. Cada corpo
responde de uma maneira específica à quantidade e ao tempo de exposição à uma dada
substância química. De modo que esse processo tende a estabelecer uma série de
consequências que não podem mais ser ocultadas no campo das relações sociais. De
repente o indivíduo, à revelia do seu autocontrole, passa a manifestar mudanças
tão abrutas no seu comportamento e nas suas emoções, que essas passam a afetar
diretamente na sua inserção social.
O que significa que essa
medicalização não só é um problema de Saúde Pública; mas, também, de caráter
socioeconômico. Há uma visível restrição
social a essas pessoas, inclusive, no campo de trabalho. Algo que tende a acentuar
e a agravar o seu quadro de dependência química. A crise dos opioides, por
exemplo, que mata mais de 200 pessoas por dia nos EUA merece total atenção da
sociedade e das autoridades mundiais. Porque, “Medicamentos como fentanil,
codeína e oxicodona são analgésicos eficazes e seguros quando prescritos por um
médico. Mas, sem orientação de especialista ou para uso recreativo, há um alto
risco de o indivíduo desenvolver dependência” 1.
Vejam a que ponto a sociedade de
consumo chegou! A ideia de que tudo poderia ser adquirido nas melhores lojas do
ramo, ao preço acessível de cada bolso, chegou ao limite de fazer milhões de
pessoas acreditarem que a sua felicidade, o seu bem-estar, o seu equilíbrio
psicoemocional, estaria disponível em cápsulas ou comprimidos. A medicalização
da “felicidade” é mais um reflexo da insalubridade mental que toma conta de
legiões de seres humanos na contemporaneidade.
Em suma, há uma necessidade
urgente a respeito, pois esse processo, o qual transforma, artificialmente,
questões não médicas em problemas médicos, afeta a sociedade como um tudo e sob
diferentes maneiras. Já dizia Érico Veríssimo que a “Felicidade é a certeza
de que a nossa vida não está se passando inutilmente”. Portanto, esse é o
ponto de análise e reflexão, resgatar a dignidade e os direitos humanos, de
maneira plena e profunda, a fim de que o significado e a significância da vida
possam transcender ao próprio indivíduo.