quarta-feira, 25 de setembro de 2024

É tempo de reler o mundo!

É tempo de reler o mundo!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Segundo Coracini (2005), “[...] se alargarmos a concepção de leitura e a considerarmos uma possibilidade de perceber o espaço social, então ler passa a significar lançar um olhar à nossa volta e perceber o que nos rodeia. Isso pode ser feito apenas para confirmar nossos pontos de vista ou para problematizar, questionar o que, aparentemente, não pode ou não deve ser questionado...” (p.39) 1. Assim, é desse ponto de partida que inicio a minha reflexão.

Desde a segunda metade do século XVIII, quando o mundo se viu imerso na 1ª Revolução Industrial, que alguns conceitos, tais como progresso, crescimento e urbanização, foram incorporados ao pensamento populacional cotidiano, a partir de uma percepção sempre permeada por contornos positivos.

E lá se foram três séculos e outras Revoluções Industriais sem que esse modus operandi tivesse acompanhado as transformações do mundo e se ressignificado de maneira mais realista aos fatos. Temos que lembrar que as palavras têm um peso importante na dinâmica social, no sentido de promover uma modulação da consciência em relação aos significados e significâncias.

Nesse contexto, extraindo o verniz entusiástico que envolveu as palavras progresso, crescimento e urbanização, foi possível perceber que nem tudo são flores. A realidade operacionalizada pela industrialização não dispôs de um planejamento adequado e as mudanças sociais foram profundamente impactantes. Pequenas vilas se tornaram centros urbanos em um piscar de olhos, trazidas por uma torrente de progressos que afetou não só as relações sociais como os comportamentos.

Na esteira desse progresso, desse crescimento, dessa urbanização, chegaram os problemas. Insalubridade ambiental. Ampliação da diversidade de resíduos. Epidemias e surtos. Escassez de moradia. Desemprego. Empobrecimento. Vícios. Prostituição. ... O que de certa forma, dentro daquele recorte temporal e conjuntura social, desconstruiu todo o discurso romantizado em torno da realidade industrial. Mas, não sendo possível retroceder no ambicioso projeto expansionista revolucionário, continuaram levando adiante uma aura de sucesso desenvolvimentista.

Razão pela qual chegamos ao século XXI nos deparando com pessoas repetindo, com um largo sorriso no rosto, as maravilhas do progresso, do crescimento e da urbanização. Como se jamais tivessem visto uma única fotografia cotidiana de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte ou Recife. Ou tivessem ouvido falar sobre produção da cidade, uso e ocupação do solo, acessibilidade arquitetônica, Plano Diretor, conurbação, regiões metropolitanas e afins.

Não tratar os assuntos da maneira correta é como olhar para o mundo com lentes cor-de-rosa. Tudo fica lindo, divino, maravilhoso; mas, só até a página dois. Depois que a ilusão se transforma em realidade, aí a percepção muda de figura! Porque a primeira ação promovida pela Revolução Industrial foi a antropização. Para colocar de pé o grande projeto burguês, o meio ambiente foi alterado pela ação humana para dar lugar a construção de infraestruturas, de cidades, de áreas para mineração e agricultura intensiva, ...

De modo que a evolução do ideário do processo industrial ao expandir suas demandas exerceu um processo catalizador da antropização. O que subverteu, de pronto, o equilíbrio e a lógica ecossistêmica dos espaços socioambientais. O progresso, o crescimento e a urbanização, materializados pela antropização, desencadearam, por exemplo, as ilhas de calor, a poluição, a inversão térmica, a chuva ácida, as enchentes, os deslizamentos de terra, a escassez hídrica. Males que as cidades, especialmente as metrópoles, enfrentam diariamente.

Daí a necessidade de repensar certos paradigmas.  Infelizmente, todo esse conjunto está por trás do acirramento dos eventos extremos do clima. Esse mosaico de ações vem desencadeando respostas duras do meio ambiente. Como o progresso, o crescimento e a urbanização, materializados pela antropização, não cessam as suas investidas, as consequências tendem, então, a ser cada vez mais impetuosas e devastadoras. Uma verdadeira queda de braços entre o ser humano e a natureza.

Portanto, não há o que se falar de maravilhas sobre o progresso, o crescimento e a urbanização, quando se tem um país marcado por desigualdades sociais sistêmicas, por insegurança alimentar, por inacessibilidades diversas, por ameaças naturais intensificadas pelas ações antrópicas, ... Contrariando as expectativas, a Revolução Industrial não conseguiu cumprir suas promessas, em nenhum momento da história. Diante disso, o progresso, o crescimento e a urbanização, no fim das contas, não foram e nem são garantias de um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que faça justiça aos preceitos da dignidade do ser.



1 CORACINI, M. J. R. F. Concepções de Leitura na (Pós-) Modernidade. In: LIMA, R. C. de C. P. (Org.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas: Mercado de Letras; São João da Boa Vista: Unifeob, 2005. p.15-44.