A
Democracia em tempos de relativização do absoluto
Por
Alessandra Leles Rocha
Dando continuidade às reflexões
que emergem dos ventos da mudança, soprados ontem, não posso deixar de tecer
comentários sobre o senso de responsabilidade e cuidado que o atual governo
deve ter, no sentido de não fornecer combustível ideológico para a Direita e
seus matizes.
Sim, porque mais do que nunca,
agora, eles estão ainda mais raivosos e dispostos a se valer de quaisquer
movimentos equivocados ou erráticos daqueles que estão no poder. Tudo será
pretexto, por mínimo que seja. Aliás,
relembrando o compromisso assumido pelo próprio Presidente da República, ainda
em campanha eleitoral, de que ele não poderia errar, de fato, ele não pode.
Assim, passados os seis primeiros
meses de governo, com a poeira um pouco mais decantada, já houve tempo
suficiente para entender que nada é mais como antes. Nem no campo das
comunicações. Nem no campo das relações. Nem no campo das ideias. De modo que é
fundamental se ajustar às novidades para não ser engolido pelos dissabores.
E alguns acontecimentos recentes
não só causaram apreensão; mas, sobretudo, um gosto de frustração. Afinal, não
é compatível defender a Democracia pelos quatro cantos do mundo, se permitindo
criar uma relativização conceitual e tendenciosa para o termo 1 e, nem tampouco, se curvar às
imposições fisiológicas do Congresso Nacional 2.
Há um dito popular que prega o
seguinte, “Ninguém é obrigado a prometer;
mas, se o fez, é obrigado a cumprir”. Porque é disso que advém a
credibilidade, a confiança, a segurança. Não se trata apenas de uma questão de
desgaste de imagem pelo Presidente da República; mas, da sua fragilização
discursiva, a qual impacta diretamente sobre todas as ideias que foram
defendidas por ele durante a campanha eleitoral. Trata-se de valores, de
princípios, de convicções, que não podem ser desalinhadas ou deformadas ao
sabor dos ventos, simplesmente.
Inclusive, rumores na mídia dão
conta de que a Direita e seus matizes, no contexto do coletivo político
denominado Centrão, está ávido nas suas pretensões de promover a substituição
de duas lideranças ministeriais por elementos de sua escolha. Me refiro às ministras
da Saúde e do Esporte, cuja competência técnica, mundialmente reconhecida, foi
a razão da escolha pelo Presidente da República.
Entretanto, elas foram escolhas à
margem da política-partidária. Algo que foi visto e reconhecido com muito bons
olhos pela imprensa e autoridades no assunto, por se tratar de áreas de extrema
importância para o país e seu próprio desenvolvimento.
Afinal de contas, são pastas que
trazem consigo o peso de uma responsabilidade de resgate da cidadania, da
educação, do bem-estar holístico das pessoas, especialmente, no que diz
respeito àquelas pertencentes as camadas menos favorecidas.
Acontece que, justamente por
essas características, tais ministérios desfrutam de orçamentos expressivos, os
quais despertam a sanha para a manutenção das velhas conhecidas práxis fisiológicas.
Sem contar que, por ironia do
destino, mais uma vez, os alvos de ataques das artimanhas legislativas federais
são sempre os ministérios liderados por mulheres, assim como, aconteceu com o
esvaziamento proposital das pastas de Meio Ambiente e Mudança do Clima e dos Povos
Indígenas, quando da aprovação da Medida Provisória (MP) que estabeleceu o novo
organograma dos Ministérios.
Vejam, daqui e dali, em tão pouco
tempo, o governo se perde na defesa do ponto mais importante da sua campanha
eleitoral que é a Democracia. Ora, a Democracia é um regime político no qual os
indivíduos exercem a sua cidadania a partir do voto.
Assim, todas as vezes em que
segmentos sociais são impedidos de participar igualmente, seja de forma direta
ou representativa, das propostas de desenvolvimento do país, da elaboração de
novas leis, ou de quaisquer outras iniciativas governamentais, há um franco desvirtuamento
do conceito.
E o que não tem faltado são
exemplos que fragilizam e deslegitimam a Democracia contemporânea, na medida em
que há uma flagrante dissonância entre discurso e prática, sob uma constante
comunicação de sinais trocados, que é extremamente nociva.
É imperioso compreender que a
Democracia, no contexto atual, está sob constante vigilância e escrutínio das mídias
sociais. Nenhum gesto, nenhum comportamento, nenhuma decisão, nenhuma fala,
nada passa despercebido.
Para o Bem ou para o Mal, a comunicação
se repercute em milésimos de segundo. Daí a necessidade de bom senso, de
cautela, para não expor a si e nem aos outros de maneira ruim e desnecessária.
Haja vista o exemplo francês. É visível
a dificuldade do atual governo em manter a Democracia, do seu país, longe de
abalos sistêmicos 3. O que já é visto e
entendido por especialistas como um trunfo importantíssimo para a ultradireita,
que vem tentando ocupar os espaços de poder, há algum tempo.
A carência de habilidade para
enfrentar as tensões sociais decorrentes, muitas vezes, da própria dinâmica histórica,
está esgarçando a Democracia francesa e a lançando aos braços do autoritarismo,
seja em maior ou em menor escala.
Portanto, não nos esqueçamos de
que o Brasil esteve sim, à beira de destruir a Democracia. Por pouco não sucumbiu.
Mas, esse risco ainda paira, porque ele não parou de atravessar a passos largos
o planeta, por meio da obstinação desenfreada da ultradireita.
E por onde ela passa deixa um
rastro que contamina outros setores da Direita, o que acaba fortalecendo um
sentimento de desprezo aos valores e princípios democráticos, por meio do
resgate ao que há de mais retrógrado, bárbaro, abjeto e cruel na história da
humanidade. Daí a impossibilidade real
de querer relativizar conceitos absolutos, como é o caso da Democracia.
1 https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/06/conceito-de-democracia-e-relativo-diz-lula-sobre-ditadura-da-venezuela.shtml
2 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/06/19/ministerio-da-saude-lula-centrao-lira.htm