sexta-feira, 28 de outubro de 2022

O papel das linguagens verbais e não verbais na tensão beligerante nacional


O papel das linguagens verbais e não verbais na tensão beligerante nacional

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, insiste em rondar a sociedade brasileira um clima de tensão beligerante, conforme mostram os veículos de informação e comunicação. Ofensas. Ameaças. Mentiras. ... São muitos os recursos e estratégias que têm sido empregados pelo campo político-partidário para vencer a disputa.

Eis que me deparei com uma notícia, aparentemente desvinculada desse assunto; mas, que na verdade nos lança a uma profunda reflexão sobre esses tempos. Uma criança se fantasiou de Hitler para uma comemoração de Halloween (Dia das Bruxas) na escola e o assunto reverberou de maneira muito negativa 1.

Pois bem, é lamentável que coisas assim aconteçam em pleno século XXI. O próprio Duque de Sussex, Harry, em 2005, foi fotografado usando um uniforme nazista na festa de um amigo 2. No entanto, caracterizar-se ou não como nazista não é o ponto. É preciso discutir o processo de banalização, de trivialização da barbárie humana, expresso através de inúmeros episódios históricos, como nesses casos.

É visível a existência de uma construção narrativa que coloca os horrores sofridos pela humanidade presos às páginas amareladas da história, como se eles não permanecessem repercutindo pelo tempo. Trata-se de uma tentativa clara de diluir esse horror através das gerações até que ele se torne indiferente e imperceptível pelas pessoas, tendo em vista que, em sua maioria, elas não experenciaram in loco a todos esses acontecimentos.

Portanto, sua percepção dos fatos é distanciada da realidade e por isso, sofre interferência das manipulações dialógicas do poder. O que explica, por exemplo, porque tanta gente brinca com assuntos sérios e graves, dissociando o fato de que a história é cíclica e que pode, a qualquer momento, vir a se repetir. Os arquivos subjetivos da história estão sempre sendo vasculhados pelas linhas de poder a fim de apurar alguma informação, alguma ideologia, algum modus operandi, que satisfaça aos interesses de um determinado grupo em detrimento de outro. Mesmo que os registros apontem ter havido insucesso na empreitada inicial, nem sempre eles são desconsiderados.

É por essas e por outras, por exemplo, que o povo judeu faz questão de manter viva as memórias dolorosas e terríveis do que seus antepassados viveram no holocausto. Contar e recontar repetidas vezes aquelas lembranças é uma forma muito eficaz de fazer com que as novas gerações interajam com o passado. Ainda que não seja uma memória genuína, porque ela nasce da perspectiva dos outros, ela é válida no sentido de não se permitir esquecer tudo o que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial.

Infelizmente, por aqui não é assim! A construção histórica brasileira se incumbiu de estabelecer uma memória curta aos seus cidadãos. Aliás, a história não recebe de uma parcela significativa da população o apreço devido. De modo que, cada dia mais, ela vem sendo recortada, sintetizada, adulterada, manipulada, para ser dispersa em migalhas desconectas pelos instrumentos tecnológicos de comunicação, com o propósito de atender a interesses que contrariam diretamente à construção cidadã, à ordem e ao equilíbrio social.  

Como se pela perspectiva de slides, muitas vezes desfocados, se pudesse traçar o roteiro de um filme inteiro, inclusive, abstraindo a sua essência mais profunda. Só que não. Daí acontecerem situações como essa na escola infantil. Ninguém parou para pensar, para analisar, para avaliar a escolha daquela fantasia. E o mundo fala! Além das linguagens verbais, há todo um conjunto de linguagens não verbais apresentadas na forma de signos, de símbolos, de imagens e de gestos. Os quais costumam ser mais eloquentes do que as próprias linguagens escritas ou faladas.

Então, esse episódio pode sim, ser interpretado como mais uma manifestação dessa tensão beligerante. Por trás daquela criança existem adultos capazes de discernir a respeito do simbólico e do não simbólico dentro da sociedade. Ao se omitirem a respeito, eles reafirmam tanto a sua indiferença quanto a sua afronta em relação ao assunto. Afinal, não se pode desconsiderar as inúmeras e recentes discussões nacionais em torno do nazismo, do fascismo, pautas atribuídas aos movimentos de ultradireita.

Portanto, o horror que se dissemina nesse caso não diz respeito somente ao ato de resgatar um pedaço da história; mas, de naturalizá-lo dentro de um novo contexto social, apesar de tudo o que ele representa. Esse tipo de atitude, de comportamento, estabelece uma ruptura inequívoca com a empatia, a alteridade, arrastando as pessoas para uma exacerbada manifestação do narcisismo individualista, que é desprovido do senso de coletividade. Há uma supressão da fundamentação dos fatos em nome da prevalência da liberdade e da expressão dos desejos, das vontades, dos quereres de alguém ou de alguns.   

E apesar desse texto se referir a um exemplo ligado ao nazismo, as reflexões propostas cabem perfeitamente em inúmeras outras situações presentes, amiúde, no cotidiano brasileiro. Situações de racismo 3, de misoginia 4, de xenofobia 5, de aporofobia 6, de homofobia 7, de intolerância religiosa 8, que transitam por esses mesmos labirintos das linguagens e dos comportamentos humanos depreciativos. E que, lamentavelmente, atentam sem quaisquer pudores ou constrangimentos contra à dignidade humana, à cidadania, e se enviesam pelas práticas delituosas inflamadas pelo ódio e pela violência presentes no mundo real e no mundo virtual. 


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