sábado, 8 de outubro de 2022

De pires na mão


De pires na mão

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A observação, à uma certa distância, nos permite enxergar a realidade além das superficialidades. Acompanhando esse momento de efervescência eleitoral, eis que de repente vi algo de muito curioso nas relações humanas. Apesar de todo o frisson em torno do poder, do que ele significa, do que ele representa, de uma superioridade que ele faz transparecer, emergiu com força a mendicância para contrariar as conjunturas.

Mendicância, sim! Mendicância dos representantes legislativos pelo se quinhão nos obscuros orçamentos parlamentares, tal qual mosca de padaria sobrevoando freneticamente os quitutes. Mendicância das universidades pelos recursos que lhes são direito consagrado; mas, insistentemente, têm sido negados pelo governo. Mendicância das ciências por apoio logístico e material, para que as pesquisas venham a se traduzir em avanço, em progresso e em desenvolvimento para o país. Mendicância das camadas mais vulneráveis por políticas públicas, que não sejam oportunistas e temporárias. Mendicâncias...

E tudo isso é muito importante para a reflexão, porque desconstrói por completo a pseudoideia da autossuficiência humana. A mendicância revela a fragilidade, a vulnerabilidade humana, presente em qualquer um, independentemente de cor, de gênero, de credo, de escolaridade, de nada. Ela expõe a incapacidade de resolver tudo sozinho, de não depender do outro; mas, sobretudo, a necessidade de retomar a dialogia. Uma mão estendida, mesmo que silenciosa, diz muito, porque o corpo consegue falar ainda mais alto do que quaisquer palavras verbalizadas. Então, essa mendicância que se vê configurada no mundo contemporâneo desnuda a arrogância, a prepotência, a presunção, de muita gente por aí.

Afinal de contas, a ideia de carecer da bondade ou da caridade alheia não se restringe aquele indivíduo sentado na calçada na frente da igreja. Considerando que a contemporaneidade trouxe para os indivíduos uma equivocada ideia de liberdade, de poder decidir ou escolher, segundo as próprias vontades e quereres, esperar do outro a empatia, a cordialidade, a fraternidade, a disposição do auxílio, abriu sim, um espaço gigantesco para a mendicância.

Havemos de concordar que as necessidades, as demandas, as urgências e as emergências, não são mais suficientes para impulsionar a tecitura das relações sociais. Infelizmente, os seres humanos contemporâneos precisam ter os seus egos, as suas vaidades, muito bem lustradas pelas demonstrações de subserviência, de inferioridade, de fragilidade do outro, para cederem à prática do altruísmo, da ajuda, da beneficência. Trata-se de uma outra face do poder, muito mais subjetiva.

Essa mendicância traz à tona um poder que nem sempre é material. O simples fato do outro precisar da ajuda de seu par já faz com que este se eleve em condição de importância, de superioridade; pois, cabe a si a decisão de ajudar ou não. Tendo em vista todos os aspectos éticos, morais e psicológicos, envolvidos nesse movimento, há de se esperar que, nem sempre, ele venha dissociado de alguma contrapartida. De certo modo, a mendicância contemporânea estabelece, muitas vezes, bem mais do que uma simples dívida de gratidão; mas, um vínculo de obrigação, que se amplia de acordo com o tipo de benesse oferecido.

Por linhas bem tortas, a mendicância que se tem por aí, portanto, escancara o mais óbvio da vida, ou seja, ninguém é plenamente autossuficiente. Por trás da pose, o ser humano vive os seus dias a depender de todo mundo, inclusive, em alguns momentos, se humilhando, se rebaixando, mendigando nos bastidores, longe dos holofotes. Engolindo seco os desaforos, as negativas, as intolerâncias, porque não é capaz de resolver tudo sozinho. É nessas horas, que o individualismo cai por terra e desaparece!

E é nessas horas, também, que de certa forma se compreende porque uns e outros se exasperam tanto, se debatem tanto, se consomem tanto, cultivando sentimentos nocivos como o racismo, a homofobia, a misoginia, a xenofobia, etc.etc.etc. Deve ser difícil aceitar que a vida se sustenta por uma complexa teia de relações humanas diversas e plurais.

Que de um jeito ou de outro, daqui e dali, estamos fadados a exercer a mendicância contemporânea. Mendigar afeto. Mendigar respeito. Mendigar apoio. Mendigar presença. Mendigar liberdade. ... Mendigar por coisas que não deveriam jamais necessitar desse movimento humano, porque estão no rol dos valores, dos princípios, dos direitos já consagrados pela humanidade.

Por mais que muitos não admitam, não deem o braço a torcer a esse respeito, a mendicância contemporânea está aí, ela existe, é real. Estamos longe de ser a última bolacha do pacote ou o último refrigerante no deserto, para nos colocarmos em posição de distinção absoluta. Não somos sóis. Somos, no máximo, estrelas cadentes que cruzam os céus em breves espaços de tempo. Daí a necessidade de compreender que nem tudo o que nos chega no cotidiano é fruto de altruísmo, de consciência coletiva ou qualquer coisa nesse sentido. A grande verdade é que na maioria do tempo precisamos mendigar, ainda que muitos só o façam de maneira sutil e disfarçadamente.