terça-feira, 11 de outubro de 2022

Crises humanitárias. Crises identitárias. A contemporaneidade dissecada.


Crises humanitárias. Crises identitárias. A contemporaneidade dissecada.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Notícias de que “mais de 120 afegãos estão no saguão do Aeroporto Internacional de Guarulhos esperando por vagas em abrigos, segundo a prefeitura. Brasil publicou em 2021 portaria para visto humanitário temporário para cidadãos afegãos; foram concedidos 6.159 vistos do tipo até 16 de setembro deste ano, diz o Itamaraty” 1, não são para passar em branco. São para nos confrontar e exigir uma reflexão profunda sobre as ideologias que fomentam e exacerbam a beligerância e as tensões sociais em todo o planeta.

Simultaneamente ao processo de deslocamento humano motivado, principalmente, pelas guerras e conflitos, vê-se também as tentativas de expansão da ultradireita que, dentre as suas diferentes pautas político-econômicas, expõe abertamente a sua total indiferença ao sofrimento dessas pessoas e a disponibilidade de quaisquer medidas de caráter humanitário. O que significa que no duelo das forças globais, a disposição para o confronto parece maior do que para a paz.

Bem, e qual o resultado prático disso? Uma aceleração para o caos global. Não há resultados positivos. A disseminação das violências é um fator genuinamente antiproducente. De modo que ao arrastar o planeta para a formação de micros e macros campos de refugiados demonstra-se o tamanho da desimportância que representa o progresso e o desenvolvimento para inúmeras nações. Como se a raça humana estivesse caminhando para o futuro com os olhos e as mentes presas ao passado.

Sim, porque na medida em que a beligerância contemporânea se fundamenta nos mesmos princípios da ocupação territorial, vista desde os primórdios da história, é sinal de que houve uma estagnação do pensamento humano, a qual não lhe permite perceber a inutilidade desse movimento. O que vale uma terra destruída, arrasada, entre escombros, em que todas as riquezas materiais e imateriais foram assoladas? Que poder é esse que se estabelece pela força da força e não, do intelecto?

Não restam dúvidas de que as intenções e as pretensões dessa ultradireita, que tenta se reafirmar no mundo, seja mesmo a aniquilação dos direitos humanos, nas suas mais diferentes formas e conteúdos. O que parece desorganização, desordem e caos, na verdade, tem método, tem planejamento.

Vejam, por exemplo, o caso brasileiro citado no início. A oferta do visto humanitário dá a impressão de que algo está sendo feito, que não há negligência ou descaso.  No entanto, há. Ao emitir vistos sem uma estratégia de acolhimento minimamente satisfatória para essas pessoas, o governo brasileiro as lança ao seu próprio infortúnio e as obriga a lutar pela própria sobrevivência em meio a riscos que poderiam ser evitados.

O que percebo nesse movimento migratório que se impôs no mundo contemporâneo é uma verdadeira “dança das cadeiras”. Enquanto milhares de pessoas tentam se acomodar e se fixar em um novo espaço geográfico, a fim de superar todas as marcas e cicatrizes deixadas pela belicosidade furiosa do mundo e retomar as suas vidas, o seu processo de deslocamento vai promovendo perdas significativas. Enquanto isso, os países vão se abstendo da sua obrigação ética e moral de acolhimento dessas pessoas e recrudescendo o seu espirito nacionalista; embora, um tanto quanto seletivo às suas próprias camadas populacionais mais frágeis e vulneráveis.

De modo que a ideia parece ser a de se constituir um mundo restrito aos que se enquadrem a certos parâmetros, ou seja, um mundo de pessoas bem-nascidas, bem-educadas, bem nutridas, bem-sucedidas financeiramente, bem estabelecidas profissionalmente, e; sobretudo, bem alinhadas a esse tipo de pensamento social. Estampando, então, uma casta distintamente superior, em relação as demais. O retrato absoluto das fronteiras abissais das desigualdades. Como se tivesse ocorrido um apagamento, uma invisibilização voluntária do valor das outras pessoas.

E isso me traz uma sensação de que ronda o mundo um excesso de certezas, quando a verdade é que estamos todos mergulhados em um mar de imprevisibilidades torrenciais. Sobretudo, quando a insistente belicosidade global só faz ampliar, cada vez mais, as possibilidades de tornarem os seres humanos aptos à condição de refugiados.

Ora, se as ambições da ultradireita se tornarem, em algum momento realidade, por exemplo, a tendência de os direitos humanos serem varridos do mapa criará condições bastante oportunas para um deslocamento em massa das populações. Não nos esqueçamos de que a base da pirâmide social é bem mais larga do que o topo; portanto, a corrente migratória será bastante significativa.

Como escreveu Zygmunt Bauman, “Os refugiados simbolizam, personificam nossos medos. Ontem, eram pessoas poderosas em seus países. Felizes. Como nós somos aqui, hoje. Mas, veja o que aconteceu hoje. Eles perderam suas casas, perderam seus trabalhos. O choque está apenas começando”. Daí a necessidade de exercitar a alteridade, a empatia.

Não, não são os refugiados a nossa grande ameaça! Somos nós mesmos. Como bem definiu Hannah Arendt, “A pluralidade é a condição humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir”.

Assim, está na indiferença em relação aos caminhos do mundo, as manipulações sociais exercidas pelo extremismo e radicalismo ideológico que uns e outros exercem sobre seus pares, o que nos leva a construir muros de alienação perigosíssimos. E é justamente isso o que, muitas vezes, nos faz errar sobre nossas percepções e julgamentos sobre os outros; mas, especialmente, sobre nós mesmos.