Crises
humanitárias. Crises identitárias. A contemporaneidade dissecada.
Por
Alessandra Leles Rocha
Notícias de que “mais de 120 afegãos estão no saguão do
Aeroporto Internacional de Guarulhos esperando por vagas em abrigos, segundo a
prefeitura. Brasil publicou em 2021 portaria para visto humanitário temporário
para cidadãos afegãos; foram concedidos 6.159 vistos do tipo até 16 de setembro
deste ano, diz o Itamaraty” 1, não são
para passar em branco. São para nos confrontar e exigir uma reflexão profunda
sobre as ideologias que fomentam e exacerbam a beligerância e as tensões
sociais em todo o planeta.
Simultaneamente ao processo de
deslocamento humano motivado, principalmente, pelas guerras
e conflitos, vê-se também as tentativas de expansão da ultradireita que, dentre
as suas diferentes pautas político-econômicas, expõe abertamente a sua total
indiferença ao sofrimento dessas pessoas e a disponibilidade de quaisquer
medidas de caráter humanitário. O que significa que no duelo das forças
globais, a disposição para o confronto parece maior do que para a paz.
Bem, e qual o resultado prático
disso? Uma aceleração para o caos global. Não há resultados positivos. A disseminação
das violências é um fator genuinamente antiproducente. De modo que ao arrastar
o planeta para a formação de micros e macros campos de refugiados demonstra-se
o tamanho da desimportância que representa o progresso e o
desenvolvimento para inúmeras nações. Como se a raça humana estivesse
caminhando para o futuro com os olhos e as mentes presas ao passado.
Sim, porque na medida em que a beligerância
contemporânea se fundamenta nos mesmos princípios da ocupação territorial,
vista desde os primórdios da história, é sinal de que houve uma estagnação do
pensamento humano, a qual não lhe permite perceber a inutilidade desse
movimento. O que vale uma terra destruída, arrasada, entre escombros, em que
todas as riquezas materiais e imateriais foram assoladas? Que poder é esse que
se estabelece pela força da força e não, do intelecto?
Não restam dúvidas de que as
intenções e as pretensões dessa ultradireita, que tenta se reafirmar no mundo,
seja mesmo a aniquilação dos direitos humanos, nas suas mais diferentes formas
e conteúdos. O que parece desorganização, desordem e caos, na verdade, tem
método, tem planejamento.
Vejam, por exemplo, o caso
brasileiro citado no início. A oferta do visto humanitário dá a impressão de
que algo está sendo feito, que não há negligência ou descaso. No entanto, há. Ao emitir vistos sem uma estratégia
de acolhimento minimamente satisfatória para essas pessoas, o governo
brasileiro as lança ao seu próprio infortúnio e as obriga a lutar pela própria sobrevivência
em meio a riscos que poderiam ser evitados.
O que percebo nesse movimento
migratório que se impôs no mundo contemporâneo é uma verdadeira “dança das cadeiras”. Enquanto milhares
de pessoas tentam se acomodar e se fixar em um novo espaço geográfico, a fim de
superar todas as marcas e cicatrizes deixadas pela belicosidade furiosa do
mundo e retomar as suas vidas, o seu processo de deslocamento vai promovendo
perdas significativas. Enquanto isso, os países vão se abstendo da sua obrigação
ética e moral de acolhimento dessas pessoas e recrudescendo o seu espirito
nacionalista; embora, um tanto quanto seletivo às suas próprias camadas
populacionais mais frágeis e vulneráveis.
De modo que a ideia parece ser a
de se constituir um mundo restrito aos que se enquadrem a certos parâmetros, ou
seja, um mundo de pessoas bem-nascidas, bem-educadas, bem nutridas, bem-sucedidas
financeiramente, bem estabelecidas profissionalmente, e; sobretudo, bem
alinhadas a esse tipo de pensamento social. Estampando, então, uma casta distintamente
superior, em relação as demais. O retrato absoluto das fronteiras abissais das
desigualdades. Como se tivesse ocorrido um apagamento, uma invisibilização
voluntária do valor das outras pessoas.
E isso me traz uma sensação de
que ronda o mundo um excesso de certezas, quando a verdade é que estamos todos
mergulhados em um mar de imprevisibilidades torrenciais. Sobretudo, quando a
insistente belicosidade global só faz ampliar, cada vez mais, as possibilidades
de tornarem os seres humanos aptos à condição de refugiados.
Ora, se as ambições da
ultradireita se tornarem, em algum momento realidade, por exemplo, a tendência de
os direitos humanos serem varridos do mapa criará condições bastante oportunas
para um deslocamento em massa das populações. Não nos esqueçamos de que a base
da pirâmide social é bem mais larga do que o topo; portanto, a corrente
migratória será bastante significativa.
Como escreveu Zygmunt Bauman, “Os refugiados simbolizam, personificam
nossos medos. Ontem, eram pessoas poderosas em seus países. Felizes. Como nós
somos aqui, hoje. Mas, veja o que aconteceu hoje. Eles perderam suas casas,
perderam seus trabalhos. O choque está apenas começando”. Daí a necessidade
de exercitar a alteridade, a empatia.
Não, não são os refugiados a
nossa grande ameaça! Somos nós mesmos. Como bem definiu Hannah Arendt, “A pluralidade é a condição humana pelo fato
de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente
igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir”.
Assim, está na indiferença em
relação aos caminhos do mundo, as manipulações sociais exercidas pelo
extremismo e radicalismo ideológico que uns e outros exercem sobre seus pares, o
que nos leva a construir muros de alienação perigosíssimos. E é justamente isso
o que, muitas vezes, nos faz errar sobre nossas percepções e julgamentos sobre
os outros; mas, especialmente, sobre nós mesmos.