quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Quem pode mais: a misoginia ou a força da mulher brasileira???


Quem pode mais: a misoginia ou a força da mulher brasileira???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ainda reverberando pelos meios de comunicação e informação a misoginia explícita que se fez presente no primeiro debate eleitoral dos presidenciáveis, tenho certas reservas em acreditar que a visibilidade do episódio passe a construir um espaço real para as mulheres na sociedade brasileira.

Considerando o cenário atual, que permanece respirando os ares de uma herança colonial patriarcal, não me parece tão simples assim, num mero piscar de olhos, por conta de quaisquer atos de desrespeito, que se consiga romper com a misoginia no país.

Toda as estruturas de poder foram secularmente organizadas e centralizadas nos homens, tanto em razão da herança monárquica colonial quanto das diretrizes religiosas cristãs, em que colocavam a mulher sempre na posição de objeto decorativo e sem nenhuma vez ou voz nas decisões. Suas obrigações sociais estavam condicionadas à silenciosa subserviência diante de toda e qualquer determinação masculina.

O problema é que o tempo passou, são mais de 500 anos de história nacional, e não se pode dizer com convicção que esse comportamento se transformou efetivamente. Haja vista a personagem Maria “Bruaca”, na novela Pantanal.

Quantas “Bruacas”, em pleno século XXI, ainda não cruzaram a fronteira que a personagem levou tempo, na história ficcional, para fazer? Estão por aí, submissas e entregues aos arroubos misóginos de seus maridos, namorados, companheiros e da própria sociedade, receosas pelo o que pode lhes acontecer se tentarem uma ruptura.

O viés das violências, incluindo os altos índices de Feminicídio, no Brasil, não deixam dúvidas de como o patriarcado funciona conservadoramente para conter a busca das mulheres pelo seu protagonismo social. Ele vigia. Ele amedronta. Ele pune.

E o patriarcado só consegue essa façanha porque está em suas mãos, por exemplo, a decisão de não promover a igualdade salarial e econômica. Vamos e convenhamos que a questão financeira tem sim, um peso enorme na manutenção da misoginia e da violência doméstica; sobretudo, em países de franca e profunda desigualdade social.

Por mais que as mulheres venham se qualificando mais, estudando mais, buscando melhorias para sua condição de vida, diante da responsabilidade e dos compromissos familiares, elas acabam se rendendo as violências em nome da própria sobrevivência e dos filhos.

E isso é de uma perversidade social imensa! Porque, muitas vezes, elas são barbaramente assassinadas antes que tenham quaisquer oportunidades de reconstruir a sua vida longe desse ciclo de selvageria e brutalidade.

Aos que ainda não entenderam ou preferem não entender, o fato da misoginia no Brasil pertencer a um conjunto de práxis históricas, isso não lhe dá o direito de continuar existindo. Já parou para pensar quantos órfãos a misoginia produz no Brasil? Quantas famílias desestruturadas surgem em decorrência da misoginia? Quantos abusos e violências são cometidos contra meninas e adolescentes em nome de uma pseudolegitimação da misoginia?

Ora, se muitos cidadãos e cidadãs brasileiras se escandalizam com a misoginia deflagrada pelas mais diferentes correntes religiosas radicais ao redor do planeta, porque aqui, no Brasil, um país republicano, democrático e livre, esse assunto é visto como tabu, hein?

Será que a ideia é manter o maior número de espaços sociais para exacerbar a ignorância, a truculência, o desrespeito, a selvageria, pertencentes ao histórico patriarcal?

Aliás, criou-se no inconsciente coletivo nacional que a misoginia é basicamente o insulto, a violência verbal, o desrespeito gratuito, para fazer cair na justificativa rasa e vulgar de não ver problema em tratar a mulher como se trata a qualquer um. Como se ela tivesse que se sentir agradecida, inclusive, de estar sendo colocada em patamar de “igualdade” com os homens.

Só que não! A misoginia é antes de tudo a consolidação de diversos obstáculos para que a mulher não tenha acesso à sua cidadania. Ela é reprimida e invisibilizada desde o seu lugar de fala até o seu pertencimento nesse ou naquele lugar social. A misoginia objetiva, então, privar a mulher de ser, de estar, de permanecer, de ficar, de exercer todo e qualquer papel ou função que ela julgar importante.

Tanto que o pensamento feminista, no Brasil, é mal visto dentro da sociedade, tanto por homens quanto por mulheres. Isso acontece porque a construção de distorções, de aberrações, de mentiras, em relação ao feminismo não se resume apenas a um possível desconhecimento.

Na verdade, ela parece muito bem respaldada de método e de critério para atender aos interesses do patriarcado nacional e, mais recentemente, aos planos de poder de algumas correntes religiosas fervorosamente arraigadas a um modelo de comportamento conservador.

Abrir a mente para essa reflexão é, portanto, fundamental! Como escreveu Chimamanda Ngozi Adichie, “O feminismo faz, obviamente, parte dos direitos humanos de uma forma geral – mas escolher uma expressão vaga como ‘direitos humanos’ é negar a especificidade e particularidade do problema de gênero. Seria uma maneira de fingir que as mulheres não foram excluídas ao longo dos séculos. Seria negar que a questão de gênero tem como alvo as mulheres. Que o problema não é ser humano, mas especificamente um ser humano do sexo feminino. Por séculos, os seres humanos eram divididos em dois grupos, um dos quais excluía e oprimia o outro. É no mínimo justo que a solução para esse problema esteja no reconhecimento desse fato” 1.

Enquanto uma parte significativa da sociedade brasileira fecha os olhos para a misoginia, o país retrocede no seu desenvolvimento e no seu progresso, porque impede que as mulheres, um contingente numericamente significativo da sua população, venham agregar o seu conhecimento, a sua força de trabalho, as suas habilidades e as suas competências fundamentais em todos os campos da vida social.

Diante disso, penso e acredito que seja imprescindível trazer à tona a história, a biografia, de um gigantesco grupo de brasileiras para que possam não só desconstruir certos paradigmas, mas ressignificar o papel da mulher brasileira a fim de inspirar e fortalecer o ânimo das atuais e das futuras gerações. 

Vamos conhecer Chiquinha Gonzaga. Bertha Lutz. Dandara dos Palmares. Elza Furtado Gomide. Cecília Meireles. Enedina Alves Marques. Carolina Maria de Jesus. Marta Vieira da Silva. Graziela Maciel Barroso. Nise da Silveira. Tarsila do Amaral. Jacqueline Goes de Jesus. Ester Sabino. Hortência. Patrícia Galvão (Pagu). Elza Soares. Maria José Deane. Sônia Guajajara. Rachel de Queiroz. Márcia Barbosa. Cora Coralina. Nadia Ayad. Ana Néri. Sonja Ashauer. Marina Silva. Rita Lee. Anita Malfatti. Viviane dos Santos. Dilma Rousseff. Vivian Miranda. Maria Quitéria. Thelma Krug. Irmã Dulce. Sonia Guimarães. Zezé Motta. Elisa Frota Pessoa. Hebe Camargo. Anitta. Fernanda Montenegro. Txai Suruí.  ...

Assim, mesmo que a misoginia permaneça insistindo sobreviver no país, com todas as suas forças, nada e nem ninguém será capaz de apagar o fato de que o Brasil não seria o mesmo se não fosse por essas e tantas outras mulheres extraordinárias. É graças ao legado delas, por sorte, que novas gerações tendem a emergir e cumprir seus papeis com grandeza, dignidade e talento.


1 ADICHIE, C. N. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 64p.

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

O ponto alto do debate eleitoral: CORRUPÇÃO


O ponto alto do debate eleitoral: CORRUPÇÃO

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Caro (a) leitor (a), por favor, não se engane com a beleza paradisíaca da geografia brasileira. Aqui não é o Céu! Aqui não vivem anjos com asas e auréolas! Talvez a beleza tenha vindo de brinde para ajudar a realidade a ser um pouco mais palatável e menos difícil de lidar! Mas é só. A grande verdade é que o dia a dia por aqui não é missão para qualquer um.

Dito isso, nos deixemos invadir pelas reflexões a respeito do dia seguinte ao primeiro debate eleitoral entre os presidenciáveis, ocorrido na noite de ontem 1, tomando por assunto principal a corrupção. Sim, porque daqui e dali ela apareceu na boca de todos eles, como se estivessem tratando de uma questão puramente contemporânea, o que não é fato.

Vamos estudar história, minha gente! Há pouco mais de 500 anos, essa terra nunca viveu sob ares dissociados de quaisquer vestígios dessa praga social! Chego a pensar que ela veio escondida em alguma nau e, por aqui, encontrou água, alimento e abrigo para viver e se multiplicar. Pois não há momento na história brasileira em que a corrupção não se faça presente como protagonista ou coadjuvante. Mudam-se os cenários, os roteiros, as personagens, o momento..., mas, lá está ela, como uma das atrizes mais importantes da companhia.  

Então, precisamos rasgar o verbo e colocar os pingos nos is! É parte das relações sociais brasileiras o velho hábito de lançar sobre ombros alheios as responsabilidades e obrigações, que não se pretende assumir ou resolver. De modo que a culpa de tudo aquilo que dá errado, que foi mal feito, que gerou problema, é “dos otro”. Esse sujeito genérico, sem rosto, sem identidade, que veste bem a qualquer um que esteja em linha de colisão com o remetente interlocutor.

E assim, cada geração tem o rol “dos otro” composto por figuras próprias de sua época. A questão é que a corrupção só ganha corpo no Brasil, ou melhor, só cai na boca do povo, quando os malfeitos escapolem e alcançam à luz do Sol.

Ora, já deveriam saber que não há crime perfeito! E se não há, mais dia menos dia, ele ganha as páginas dos veículos de informação e comunicação através do ato falho de algum participante mais imprevidente ou da divulgação de alguma investigação policial que chegou a termo. Resultado, o corre-corre ferve na sociedade! Afinal, ninguém quer estar no rol “dos otro”.

De modo que o contexto da corrupção acaba caindo na formatação de seriado de TV. Cada temporada tem seu núcleo de corrupção definido e é sobre ele que recaem todo tipo de comentários, maledicências, acusações, como se fossem o mais absurdo retrato da excepcionalidade da realidade nacional.

Êpa! Mas, não são! Mas, imbuídas em fazer parecer que sim, as narrativas são esquentadas e requentadas inúmeras vezes com o único propósito de conter a disseminação totalitária dos casos; pois, isso representaria o caos completo no país. Um verdadeiro balaio de gatos!

E enquanto alguém aponta a corrupção “dos otro", se esquece de todos os outros dedos que apontam para si. Simples de entender, quando se olha para as últimas décadas brasileiras. No entanto, há algo de mais podre nesse reino brasileiro, que remonta também das nossas heranças coloniais.

O fato de que o poder e a governança no país estiveram majoritariamente, transitando, ao longo desses mais de 500 anos, dentro de um padrão que partiu de um berço monárquico, depois caiu nos braços de sua descendência burguesa republicana até chegar na elite ideologicamente estruturada nos vieses da direita. Então, é claro que eles não querem se colocar em risco.  

Portanto, a solução oportuna, que veio a calhar perfeitamente para a direita nacional, foi a presença de um governo de esquerda no país. A novidade faria com que a população prestasse atenção neles e desconsiderasse o resto da história.

Como se pudessem tecer a corrupção por uma trama indissociada à esquerda, cujo resultado inevitável estivesse alicerçado por esse arcabouço ideológico. Tudo para não admitirem as marcas da corrupção da direita e, nem tampouco, a insatisfação de terem temporariamente sido preteridos do poder, o qual sempre acreditaram lhes pertencer.   

Bizarro? Bizarríssimo. Porque a corrupção não tem partido, não tem bandeira, não tem ideologia. Corrupção é um comportamento humano. Pessoas promovem corrupção e/ou se deixam corromper. Fraqueza de caráter? Sim. Ambição desmedida? Sim. Ganância? Sim. Fazer da vida um jogo? Sim. ...

São muitas as possibilidades; mas, todas elas perpassam pela condição existencial humana. É esse ser estranho e complexo que, vez por outra, se deixa enredar pelos caminhos tortuosos e delirantes da vida para sentir correndo nas veias a adrenalina do poder.

E esse movimento prospera tão bem nos campos da política porque encontra neles um terreno para florescer, ou seja, o fisiologismo. Um país de profundas desigualdades, de uma frágil consciência identitária e cidadã, como não seria inevitável que certos representantes e servidores públicos não viessem a luzir a ideia de satisfazer seus interesses pessoais, individual ou coletivamente, a partir da obtenção de vantagens e benefícios ainda que em detrimento do bem comum?

É por isso que a corrupção não é privilégio nacional! Há corrupção em todo o mundo. Em alguns lugares mais. Em outros menos. Portanto é preciso romper com essa ingenuidade, esse puritanismo de ocasião, e enfrentar os fatos como são. O ponto é, como pretendemos lidar com essas práxis tão arraigadas historicamente?

Quais as nossas propostas para romper com esses ares de perplexidade a cada novo escândalo de corrupção, quando sempre estivemos cientes de que ela se escondia quieta sob nossos olhos? Pretendemos ser mais vigilantes? Pretendemos punir os responsáveis? Pretendemos cobrar as restituições materiais e imateriais da corrupção?

Veja bem, se não fomos ainda corrompidos pelos moldes das práticas fisiológicas vigentes, fomos corrompidos com o nosso silêncio, a nossa inação, a nossa dissociação em relação ao senso cidadão. Quando banalizamos, naturalizamos, trivializamos as corrupções nacionais a tal ponto de considerarmos algum tipo de gradação ou estratificação para elas.

Ora, ora! Acontece que corrupção é corrupção. Não tem maior ou menor. Não tem pior ou melhor. Não tem de esquerda e nem de direita. E o que é pior, infelizmente, sempre haverá o risco de ela existir. Afinal, onde há seres humanos haverá sempre a possibilidade ameaçadora de a corrupção acontecer. Entendeu agora?      

domingo, 28 de agosto de 2022

As dores que deveriam ser nossas; mas, não são


As dores que deveriam ser nossas; mas, não são.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A notícia publicada, ontem, dizia: “‘Índio do buraco’: Último de sua etnia, indígena que vivia sozinho é encontrado morto em Rondônia” 1. Mas, quantos episódios mais, nesse contexto, a sociedade brasileira vai conviver sem se colocar a permanecer relativizando as barbáries e as violências, hein?

Não, não vamos tampar o Sol com uma peneira a respeito. Relativizamos sim. Os impactos da nossa herança colonial eurocêntrica criaram no inconsciente nacional um mecanismo de categorizar a importância ou a desimportância dos acontecimentos, segundo as personagens participantes do processo. Por isso, não é difícil entender que a Guerra na Ucrânia, por exemplo, possa causar mais comoção do que a dizimação de um cidadão indígena brasileiro.

Infelizmente, fomos adestrados pelo colonialismo a acreditar que algumas vidas têm valor, enquanto que outras, não. Assim, o estereótipo do homem branco, de descendência europeia, de base religiosa cristã, letrado e culturalmente instruído, bem-sucedido economicamente é que constitui a parcela significativa da sociedade e, por essa razão, detém as regalias e os privilégios de influenciar e decidir, além de reger os caminhos do poder.

O restante da sociedade, que significa, em linhas gerais, as minorias, é sumariamente lançado a condição de inferior. Portanto, submetido ao controle e vigilância do estrato dominante, a fim de servi-lo, segundo seus interesses e vontades, dentro do mais absoluto padrão de subserviência, de obediência, sob pena de represálias e castigos no caso de eventuais oposições e contestações.

Portanto, esse viés desqualifica, negligencia e cancela a importância da diversidade humana e da contribuição do seu caráter multicultural, para se limitar a um padrão minoritário preestabelecido. Pela fúria dessa barbárie e dessa violência, que acomete milhares de cidadãos ao longo dos séculos, as identidades nacionais vão se esfacelando e fragilizando a sua própria sustentação que depende dos seus conhecimentos originários.

Daí a impossibilidade de um olhar superficial e inconsistente sobre esse fenômeno de extermínio social. A questão não é só a morte, ou a perda, de inúmeros indígenas. Acima dela está o sentimento eurocêntrico de propriedade. Esse homem branco, de descendência europeia, de base religiosa cristã, letrado e culturalmente instruído, bem-sucedido economicamente, se entende dono de pessoas, de bens, de terras, de tudo.

Uma propriedade legitimada discursivamente por valores e princípios forjados tanto política quanto religiosamente, os quais vêm se perpetuando de geração em geração, independentemente, das próprias transformações jurídicas. O que significa que essas pessoas se enxergam, de fato, em um patamar de superioridade e de importância que nada, e nem ninguém, pode interferir ou questionar.

Muitos pensam que essas investidas brutais e perversas contra os indígenas sejam pelo fato de que eles são defensores ardorosos da natureza, do meio ambiente onde sempre viveram fixados. Só que não. O ponto de partida desse comportamento é a reafirmação dessa ideia de propriedade pelo homem branco, ou seja, o indígena lhe pertence, as terras lhe pertencem, as riquezas naturais lhe pertencem. Portanto, eles podem fazer o que quiser a respeito.

Trata-se de um sentimento de propriedade que ultrapassa, portanto, quaisquer fronteiras objetivas expressas nos documentos de registro de posse, na medida em que esses títulos estão juridicamente condicionados aos demais instrumentos legais que se relacionam ao assunto. De modo que o título de posse não subtrai ou elimina o papel das legislações ambientais, agrárias, etc.etc.etc. Mas, no contexto do modus operandi empregado cria-se a falsa ideia de que essas pessoas podem tudo, dada a dimensão do poder e da influência que elas acreditam desfrutar.

É lamentável; mas, não se aprendeu nada em pouco mais de 500 anos de história! Pois é, visando a manutenção de um padrão social quase eugenista, o Brasil perdeu-se de si mesmo, das suas raízes, das suas origens, ao ponto de impor a necessidade de criar uma versão idealizada da sua própria história. Afinal, ele destruiu suas fontes humanas, sua biblioteca natural de conhecimentos, sua enorme riqueza imaterial.

Então, a cada árvore que verte ao chão, a cada indivíduo pertencente aos povos originários que tem seus olhos fechados pela morte perversamente súbita, a cada espécie animal que precisa se deslocar do habitat natural para não sucumbir, ... nos deparamos com a inconteste verdade de que permanecemos andando em círculos, repetindo velhos padrões.

O Brasil não vive no passado e nem tampouco no presente.  Está desalinhado, desajustado, perdido, incapaz de rever seus pontos de vista, suas práxis. Não sabe quem é. Não sabe o lugar que ocupa. Não sabe... Move-se de maneira autômata pela força de uma ganância e cobiça tóxicas, que o isola do mundo, da vida, do desenvolvimento e do progresso.

Caso ainda considere tudo isso chocante demais, absurdo demais, pare por um instante, nesse domingo, e se permita ouvir o velho clássico “Que país é este” (1987) 2, da Legião Urbana. A atemporalidade contida em cada palavra além de explicar com requintes de franqueza e de lucidez essa engenhosa máquina chamada Brasil, nos permite a cada vez que ouvimos, descer um pouco mais nos abismos da realidade; sobretudo, a atual.

Afinal, “Alguém já disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os bastardos sempre se reportam à pureza da sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no ódio, no ódio por quem não é idêntico” (Umberto Eco – O cemitério de Praga, 2010, 528p.).

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Ah! Se o salário pudesse falar!


Ah! Se o salário pudesse falar!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Acompanhando as notícias a respeito das eleições, no Brasil, não tenho como achar, até certo ponto, curiosas as análises sobre as preferências dos eleitores, com base na sua renda. Não me entendam mal; mas, sou imediatamente conduzida ao pensamento que circula no universo das nossas heranças coloniais.

Afinal de contas, certos veículos de informação e comunicação ainda se apegam no discurso da velha fragmentação da pirâmide social e fazem distinções em torno da classe média, como era possível de se fazer há algumas décadas. Aliás, essas distinções não passam de mero rapapé para lustrar o ego das pessoas e fazer-lhes parecer mais bem remuneradas do que na verdade são.

Ora, vejamos que o salário mínimo, hoje, no país, é de R$1.212,00. Mas, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), em sua última apuração, no mês de julho, este deveria ter sido de R$6.388,55 para cobrir aquilo que estabelece a Constituição Federal como necessidades básicas do trabalhador e sua família.  Mas, retirando os mais de 10 milhões de desempregados no país, quantos cidadãos na atualidade brasileira ganham, de fato, esses R$6 mil, hein?

Não nos enganemos com a visita da saúde, como chamam a melhora súbita antes da morte! Sim, porque é exatamente esse fenômeno que estamos presenciando antes do pleito eleitoral, em relação a certas estatísticas econômicas. O jogo de espelhos que fazem com os números para encantar e ludibriar o sujeito, logo desaparecerão na fumaça da efemeridade que se ergue imediata no pós-eleição.

Aliás, tanto os prognósticos nacionais quanto os internacionais, para 2023, não são os melhores e a tendência de dias difíceis deve ser encarada como um fato concreto, a fim de se evitar maiores dissabores. Vejam que, em 2021, as notícias no campo econômico nacional já davam conta de um achatamento significativo da classe média 1.

Na ocasião seu percentual populacional se igualou ao da classe baixa em 47%. Mas, depois disso, muita água rolou por debaixo da ponte, e a crise econômica recrudesceu um bocadinho mais sobre os brasileiros. De modo que a sobrevivência está cada vez mais susceptível aos malabarismos que a renda achatada do cidadão precisa fazer!

Em linhas gerais, isso significa que diariamente mais pessoas acabam indo cerrar fileira nas camadas mais vulneráveis do estrato social, por conta da perda do poder de compra salarial, como já apresentei acima. Sem essa, então, de trazer de volta a velha ideia da classe média alta, classe média (média) e classe média baixa, ok?! Não vejo razão, portanto, para ninguém nessa situação cogitar a possibilidade de pensar que está em uma conjuntura social favorável!

Só para constar, a atual configuração da renda mensal domiciliar, no contexto da pirâmide social brasileira é a seguinte: “classe A: 2,8% (acima de R$22 mil), classe B: 13,2% (entre R$7,1 mil e R$22 mil), classe C: 33,3% (entre R$2,9 mil e R$7,1 mil) e classes D/E: 50,7% (até R$2,9 mil)”2 . Agora, imagine dividir esses valores pela pesquisa do DIEESE e descobrir quanto vale realmente o seu salário pela perspectiva do salário mínimo que deveria ser pago no país.

Chocado (a)? Então, acorda! Os brioches já se foram. Os pães dormidos, também. Os luxos e os supérfluos já não fazem parte da lista de compras. ... E mesmo assim, o dinheiro teima na sua insuficiência! Por isso é que a vida pede atenção. Certas coisas não dão para fingir que não viu, que não sabe, que não entende, que paga para não ter preocupações, porque não adianta. O resumo dessa ópera é o empobrecimento populacional que está em curso, queira você admitir ou não.

O acirramento da desigualdade está cada vez se aprofundando mais! Toda nova crise ou turbulência que a economia venha a enfrentar será um desespero só. Por isso, não cabe mais a velha ideia de se considerar “a última bolacha do pacote”! Não há certeza maior nessa vida do que a incerteza, como explicou bem a pandemia. Daí a necessidade de dizer adeus para o seu lugar na fila do gargarejo da sociedade de consumo.

Chega de ser perdulário, gastador, imprevidente, esbanjador! São tempos da razão e não, da emoção! A palavra de ordem é reaprender. Reaprender a se organizar, a repensar, a priorizar, a recusar, a reduzir, a reaproveitar, a reutilizar, a reciclar. Porque enquanto você se entretém nessa missão, você se descobre e se enxerga como realmente é. Sem precisar disso ou daquilo para ser alguém na fila do pão!

Antes de pertencer a esse ou aquele lugar, você sempre existiu! E é isso o que realmente importa, no frigir dos ovos. A realidade nos impõe a prioridade de satisfazer as demandas vitais e não, os delírios de ocasião. E esse movimento, que muitos chamam de minimalista, consegue trazer um novo reposicionamento humano para o mundo. Afinal, como escreveu Aldous Huxley, “Todo excesso traz em si, o germe da autodestruição”.

Daí a necessidade de descobrir que não basta só olhar para dentro ou só para fora, é preciso olhar em várias direções, em vários sentidos, para descobrir como a vida lhe faz sentido. Mas, um sentido que é capaz de preencher a alma. Que traz leveza, que traz paz, que traz luz para a consciência, sem que você precise romper ou cortar relações com esse capitalismo selvagem que corre solto por aí. A tarefa está longe de ser fácil; mas, precisa ser feita. Precisa sim! Então, mãos à obra!

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Sobre esportes. Sobre torcedores. Sobre cidadãos.


Sobre esportes. Sobre torcedores. Sobre cidadãos.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Muito importante e oportuno o seminário de combate ao racismo e violência promovido pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF)1. É a parcela de contribuição da entidade dentro de uma discussão tão significativa para o mundo.  

No entanto, é preciso entender que o futebol é só uma gota no oceano desportivo e que a percepção e o entendimento do torcedor também precisam passar por uma profunda desconstrução e ressignificação.

Nem é preciso dizer que o esporte, como um todo, representa uma camada do cotidiano. Portanto, ele também reflete a dinâmica das mesmas relações e das interações sociais do dia a dia.

Acontece que, dada a naturalização das práticas de racismo e de violência, esse processo acaba alcançando a seara desportiva e silenciando a contundência das respostas e das ações de desagravo.

Como se tudo pudesse caber no simplismo de que “é assim mesmo”. Mas, não é. De onde nos chega, por exemplo, essa aceitação em não ver uma representatividade plural em tantos esportes? De onde nos chega essa aceitação em relação ao desrespeito a dignidade humana, hein?

Não se trata apenas de um viés elitista, no campo de uma inacessibilidade econômica que limita a prática desse ou daquele esporte para milhões de pessoas. Esse é só um aspecto importante a ser considerado e transformado.

Algo que não se vê como pauta de debate político, quando deveria ser. Afinal, basta uma observação superficial das grandes potências desportivas mundiais para se perceber que o esporte nesses lugares é parte integrante e integrada da formação educacional, desde a infância mais precoce.

De modo que em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, onde a ausência de priorização de investimentos para a Educação é uma realidade rotineira, a impossibilidade de criar uma infraestrutura para o esporte capaz de furar a bolha e permitir o acesso ao maior número de práticas, é uma consequência inevitável para o enviesamento desportivo.

Isso significa que as escolas deixam de ser verdadeiros celeiros de descoberta e formação de promissores atletas, por conta da fragilidade das políticas públicas destinadas tanto à Educação quanto ao Esporte.

Afinal, esse tipo de filosofia cidadã envolve um planejamento multidisciplinar muito mais robusto e um empenho de recursos financeiros bem planejado. O que, para muitos países, como é o caso do Brasil, um custo tido como desnecessário e que não se pretende arcar.

E isso implica diretamente na junção entre a formação educacional e a formação desportiva, que perpassa pela saúde e bem-estar dos alunos, pela segurança alimentar deles, pelo acesso à água potável e ao saneamento básico, pela disponibilidade de vestuário adequado para as atividades, enfim...

De modo que apesar de algo extremamente básico e elementar, como se vê, ainda sofre com a pecha de futilidade, por parte de muitos governantes.

Uma das consequências dessa inação, dessa negligência governamental voluntária, é o surgimento de episódios de sucesso pontuais, emergidos de projetos independentes, frutos do idealismo de certos profissionais da educação, que lutam sozinhos contra o sistema para colocar suas ideias em prática.

Daí a dificuldade de ampliar a oferta de esportes para os alunos, na medida em que os desafios logísticos e burocráticos, muitas vezes, ultrapassam a capacidade econômica das iniciativas ou da própria escola. Basta imaginar piscinas, quadras, campos, pistas, aparelhos de ginástica olímpica, tatames, ... em cada escola brasileira!

Além disso, em relação aos esportes de alto rendimento, por exemplo, considerando-se o alto nível de profissionalização, não se pode fechar os olhos para o fato de que a falta de representatividade advém, muitas vezes, da construção de uma padronização social estabelecida não só a partir do histórico desse ou daquele esporte; mas, principalmente, pelos patrocinadores que almejam constituir uma imagem para os seus produtos.

O que não torna difícil perceber como certos esportes carregam, há tempos, um perfil étnico-racial predominante. Mais recentemente, alguns indivíduos vêm desconstruindo essa realidade e se afirmando de maneira relevante e significativa a fim de romper com certos paradigmas e acenar com novas possibilidades.

Porém, enquanto tudo isso ainda é um movimento incipiente, os episódios de racismo e violência contra atletas, treinadores e comissões técnicas permanece acontecendo sob o silêncio de muitos torcedores, que se esquecem de que são, antes de tudo, cidadãos.

Ora, não se pode esperar que as ações afirmativas precisem ser deflagradas pelo Estado! O combate às discriminações, intolerâncias e violências étnico-raciais, religiosas, de gênero ou de status social, deve partir de todos aqueles que reconheçam o insulto constrangedor que esse tipo de comportamento promove para o coletivo social.

Todo e qualquer tipo de discriminação, intolerância e violência, quando realizado, estabelece uma associação identitária imediata ao país, criando uma homogeneização ao pensamento populacional. Como se todos comungassem e aceitassem esse comportamento. Como se ele representasse, de fato, a todos os cidadãos e torcedores. Só que não.

Daí a necessidade da discussão, da reflexão, das proposições para transformação. O que adiantam os esforços contra as mais diferentes formas de doping, no que diz respeito a performance dos atletas, se por outras formas e conteúdos se permite macular a igualdade e a equidade entre eles?

Essa é a grande pergunta a se fazer! O mundo à beira de um ataque de nervos é reflexo justamente das tensões deflagradas pela desigualdade e iniquidade que reverberam em cada canto, em cada situação, da mais simples a mais complexa.

E o esporte é um formador de opiniões muito importante. O seu potencial de alcance é gigantesco. Haja vista como os Jogos Olímpicos e Paralímpicos, as Copas do Mundo de Futebol, os torneios de Grand Slam do tênis, os grandes torneios de Vôlei (Liga das Nações, Copa do Mundo e Mundial), a NBA (National Basketball Association) e tantos outros eventos desportivos capturam a atenção de milhões de pessoas ao redor do planeta, enquanto cultivam sonhos, esperanças e projetos.

Por isso, o esporte, na sua inteireza, precisa chancelar esse movimento de metamorfose social. Precisa mostrar que a inovação não se dá somente na técnica, nas regras, nos equipamentos; mas, sobretudo, na ideologia que nutre os indivíduos.

Não adiantam todos os avanços científicos e tecnológicos impulsionando o esporte se as personagens principais, atletas e torcedores, não evoluírem enquanto cidadãos, enquanto seres humanos. A luta antirracista e antiviolência precisa ser o produto mais difundido pelo marketing esportivo.

Porque é a partir dela que se cria a possibilidade de tornar os espaços de convivência desportiva um lugar que caiba verdadeiramente a diversidade e a pluralidade em harmonia, ou seja, onde respeitar aproxima ao invés de afastar e coloca as escolhas e as preferências individuais no devido lugar da racionalidade consciente.

Então, sob essa bandeira, quem sabe a humanidade não possa começar a entender que adversários não são inimigos. Que ali nas arenas, nas piscinas, nos campos, nas quadras, a geopolítica que se conhece se extingue pela batuta de uma única regra para todos os competidores.  

Ora, as diferenças não precisam ser resolvidas pela beligerância de um conflito ou de uma guerra. Derrotas e vitórias fazem parte da vida e alegram na mesma proporção que ensinam. E dentro de cada uniforme bate um coração tão humano quanto o de qualquer outro indivíduo e, por isso, merece a mesma dignidade que você. ...

E aí, se nada disso for suficiente de primeira, joga-se de novo. Afinal, a “persistência pode transformar fracassos em incríveis conquistas” (Matt Biondi – nadador olímpico norte-americano, vencedor de 11 medalhas).

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Sob lente de aumento


Sob lente de aumento

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quanto mais eu observo, e penso sobre o Brasil, mais eu me convenço de que todas as violências e atrocidades cometidas contra as chamadas minorias sociais, não passam de uma desesperada tentativa de reduzir o círculo de visibilidade e importância, ou de mera necessidade de autoafirmação para se convencer de sua própria importância.  

Há um ditado popular que diz, “Ninguém chuta cachorro morto”. De modo que entre a mensagem de descaso e invisibilização das minorias e a prática cometida contra elas, algo não está de acordo. A verdade é que elas não são tão desimportantes como alguns gostariam que fossem. Esse é o ponto.

Há quem não queira, em hipótese alguma, dividir os espaços e os holofotes com nenhuma minoria social, pelo risco de arriscarem a desconstrução narrativa em torno do ideário eurocêntrico, que constituiu as relações coloniais e permanece vivo, ainda hoje, em diversas partes do mundo.

É simples de entender! Basta uma análise superficial da pirâmide social brasileira, ao longo do tempo, para perceber como o estrato atribuído à elite nunca deixou de se caracterizar por uma fatia populacional delgada e fixada no topo. Quem não se lembra da personagem Odete Roitman, na novela Vale Tudo, exibida entre 1988 e 1989? Pois é.

Em pouco mais de 500 anos de história, esse estrato da sociedade brasileira deixou de ser o berço direto da Monarquia, para cair nos braços de sua descendência burguesa republicana até chegar ao contexto de uma elite majoritária e ideologicamente de direita. Cujos valores se sustentam pelo conservadorismo de ideias e comportamentos extremamente retrógrados.

A começar por uma aversão incontrolável em relação à diversidade e a pluralidade social, que se faz predominantemente associada aos demais estratos da pirâmide. Em linhas gerais, isso significa que são claramente simpatizantes a qualquer manifestação da desigualdade no país. Fato que se reafirma pela defesa ardorosa do individualismo, do perfil aristocrata, das pautas de costume conservadoras, da propriedade privada, da redução das políticas públicas destinadas ao bem-estar social.

No entanto, é curioso que um movimento assim tenha conseguido se impregnar na teia social brasileira, considerando todo o histórico de discriminação, de intolerância, de preconceito que o país viveu (e ainda vive) em relação às grandes metrópoles e potências do mundo.

O Brasil repete dentro das suas fronteiras o padrão que sofre do lado de fora delas, sem que expresse quaisquer constrangimentos, ou indignações, a respeito. Como se tais experiências não lhe trouxessem quaisquer lampejos de reflexão. Há uma naturalização, uma banalização, no rol dessas violências e atrocidades.

Daí notícias como “Músico negro é levado para delegacia injustamente pela 2ª vez” 1 ou “Justiça absolve PM que pisou em pescoço de mulher negra; MP irá recorrer” 2 tornarem-se cada vez mais frequentes nos veículos de informação e comunicação, sem que haja uma resposta social coletiva de desagravo a esses comportamentos. A repetição contínua desse fenômeno aliada à própria estrutura de organização social no país acaba arrefecendo o ímpeto da discussão, da desconstrução paradigmática, enfim...

Contudo, quando as notícias trazem no conteúdo fatos como “Número de brasileiros deportados dos EUA em 2022 bate recorde” 3 ou “Xenofobia contra brasileiros em Portugal aumenta 505% em 5 anos, aponta relatório” 4, o silenciamento social recai sobre um outro viés. É como se as heranças coloniais trouxessem à tona um velho sentimento de subserviência, de obediência, que não permitisse quaisquer manifestações de contestação no campo internacional. Como escreveu Nelson Rodrigues, nada mais do que o nosso “complexo de vira-lata” 5.

Eis, então, que os arroubos de truculência, de violência, de mau humor exacerbado que acomete certos poderosos e pseudopoderosos acaba sendo resultado da imensa dificuldade de ressignificação identitária nacional. Como se adiantasse, alguma coisa, despicar nossas frustrações, inferiorizações, discriminações, recebidas amiúde lá fora, sobre nossos próprios pares.

A reprodução desse padrão comportamental não responde, nem jamais irá responder, a seguinte pergunta: Afinal, podemos ser leões ou apenas cordeirinhos? Bem, segundo Jean-Paul Sartre, “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você”.

E ao que tudo indica, pelo menos até aqui, o Brasil não está seguro do que ele é, de quem é ele. Por isso, ele não se desprende dessa armadilha conjuntural que reafirma o misto entre o desdém e o ódio em relação ao outro. O que significa que, por enquanto, o Brasil ainda não entende que “cada vez que o homem escolhe seu compromisso e seu projeto com toda sinceridade e com toda lucidez, torna-se impossível preferir um outro” (Jean-Paul Sartre, O Ser e o Nada), ou simplesmente, se sentir ameaçado ou diminuído por um outro.    

 

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Esperança: a primeira ou a última que morre, no Brasil?


Esperança: a primeira ou a última que morre, no Brasil?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É certo que não se pode perder a esperança nos tempos difíceis; mas, também, não se pode perder a racionalidade. Lendo a matéria “Datafolha: otimismo econômico é maior entre quem ganha Auxílio Brasil” 1 percebi o quanto é importante esmiuçar essa ideia.

Não preciso dizer que a perspectiva humana varia segundo uma infinidade de questões – idade, escolaridade, gênero etc. – e por isso, a forma como a vida é percebida e entendida é tão plural. No caso de um país, como o Brasil, com uma herança de desigualdade socioeconômica histórica, isso tem um peso significativo.

Ora, a desigualdade cria naturalmente um movimento de imediatismo, no qual as pessoas aprendem a duras penas a viver um dia de cada vez. Então, aliando-se esse aspecto a um flagrante desconhecimento técnico em relação aos processos econômicos, não é de se espantar que muitos cidadãos venham, de fato, a depositar sua esperança a uma transformação em curto prazo.

No entanto, isso é de extrema temeridade. A decepção, a frustração, são elementos de fomento muito poderosos para a indignação social. Elas mexem com o humor das pessoas em um nível muito complexo e profundo, chegando ao ponto da destruição completa da credibilidade e da confiança em relação ao outro.

Não é à toa que exista tantos países ao redor do mundo que comunguem com o Brasil a ideia de viver em busca de um salvador da pátria, um herói contemporâneo, um verdadeiro defensor dos fracos e oprimidos, que lhes acene com a solução definitiva para as suas mazelas cronificadas.

A verdade é que para esse grupo de pessoas pouco importam os caminhos para se reequilibrar a economia e superar os desafios que configuram a atual crise. Elas não se preocupam com o passo a passo do economês. Elas querem alguém que lhes aponte uma luz no fim do túnel, capaz de reacender a sua esperança. Elas querem o resultado final, a solução. Rápida. Eficiente. A contento das suas expectativas.

Se as coisas não acontecem como o esperado e “tudo fica como dantes, no quartel de Abrantes”, a sua esperança, então, cai em desgraça mais uma vez. E justamente por essa insistente persistência ao fracasso é que elas passam a se nutrir de rancores, de ódios, de sentimentos que escolhem caminhos nada ortodoxos para alcançar seus objetivos.

Experts em sobreviver às desventuras da desigualdade, elas sabem que o tempo urge e não pode esperar o fluxo natural da recuperação econômica, ou de decisões corretas pelo governo, para conseguirem algum tipo de melhora. A realidade econômica não é a realidade dessa parcela da população, são contextos muito distintos.

Elas têm pressa. A sua sobrevivência tem pressa. A sua fome. A sua necessidade de trabalho. O seu tratamento médico. ... Enquanto a economia transita pelos movimentos orquestrados daqueles que detêm o poder, a influência e o capital nas mãos. Então, a pressa deles não é a pressa dessas pessoas.

Além disso, quem teria uma bola de cristal bem calibrada para cravar o momento certo em que a economia estaria de volta nos trilhos? Ninguém. Porque esse não é um desafio restrito aos meandros nacionais. No mundo globalizado e globalizante as peças do dominó estão posicionadas cuidadosamente até que, de repente, uma delas caia e o efeito se espalhe pelas demais. Então...

Impactos previsíveis e imprevisíveis assombram a realidade global e retiram as possibilidades de certeza, de plena convicção, sobre o curso dos acontecimentos. Nunca a economia balançou tanto na corda-bamba como agora. A velocidade com a qual os cenários se modificam chega a ser assustadora, como foi no auge da Pandemia da COVID-19.   

Mas, apesar dos pesares, todo esse contexto tem um componente importantíssimo para ser adicionado a essa reflexão. Fica claríssimo, como a sociedade vem se distanciando, até mesmo sem perceber, da possibilidade de tecer suas campanhas eleitoreiras somente na base das promessas.

O comportamento da população, haja vista a pesquisa citada acima, por si só, já sinaliza uma impossibilidade de estimular a idealização sob pena da situação se reverter furiosamente sobre os próprios candidatos. Os acontecimentos recentes no mundo trouxeram um choque de realidade muito significativo para as pessoas.

O imponderável gerou cicatrizes profundas e que, ainda, não foram cicatrizadas. De modo que elas parecem muitos mais ávidas por um sinal de estabilidade, de segurança. Razão pela qual parece sim, ser mais sensato apresentar propostas fincadas na realidade, do que meras chuvas de empenhos vazios.

E talvez, esse seja o caminho para começar a desconstruir as inúmeras camadas de problemas que foram se acumulando ao longo de séculos de história. Tempo de passar a vida a limpo! Ainda que as questões econômicas sejam atravessadas por aspectos internos e externos, a decisão de enfrentá-las a partir do método, do planejamento, da organização é, de fato, o ponto de partida da transformação.

Então, esse movimento passa a repercutir em diversas direções e sentidos, contabilizando os resgates da esperança, do otimismo e da confiança. Sobretudo, em relação às parcelas mais humildes e vulneráveis da população brasileira. Porque elas são sim, capazes de perceber a ação substituindo a inação, o descaso, a negligência, a desassistência.

O que significa que elas estão, de algum modo, se tornando visíveis de novo, reavendo seus espaços dentro da sociedade. E é disso, desse tipo de situação, que o país precisa para se desenvolver, para progredir, para exercer o seu protagonismo. Afinal, como escreveu Darcy Ribeiro, “A coisa mais importante para os brasileiros é inventar o Brasil que nós queremos”.

Mas, enquanto a realidade persiste em agigantar e reafirmar um otimismo acanhado e enviesado, com a ajuda dos meios de informação e comunicação, permanecemos vendo a banda passar 2.  No fundo, e sem se dar conta, se perguntando, “O que são as pessoas de carne e osso? Para os mais notórios economistas, números. Para os mais poderosos banqueiros, devedores. Para os mais influentes tecnocratas, incômodos. E para os mais exitosos políticos, votos” (Eduardo Galeano).

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Será que um coração morto pode fazer pulsar a consciência???


Será que um coração morto pode fazer pulsar a consciência???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Enquanto uns e outros discutem em torno da funesta e onerosa ideia de trazer o coração embalsamado de D. Pedro I para uma exposição comemorativa aos 200 anos da independência 1, eu prefiro analisar tudo por uma perspectiva mais profunda e pragmática.

Não questiono, em absoluto, as referências aos fatos históricos. O que aconteceu, aconteceu. E tem sempre muito a dizer e explicar sobre os caminhos que lhe antecederam e sucederam, como uma corrente em que cada elo tem a sua importância para o todo. De modo que os nossos feriados nacionais têm por finalidade esse papel.

Contudo, isso não os exime de um olhar menos romantizado para ganhar uma análise mais pragmaticamente histórica. Entendo que, para muitas gerações, as narrativas constituídas para a história brasileira lhes parecem agradáveis, cabendo perfeitamente nas suas expectativas e idealizações.

A questão é que, sem se darem conta, elas subtraem sutilmente do cidadão a sua própria cidadania, na medida em que lhes retira a inteireza do conhecimento sobre seu próprio país. Mantendo-o à distância dos questionamentos e reflexões que deveriam surgir naturalmente desse processo. Fazendo da história uma estória inventada e modelada para ficar ali nas páginas dos livros, satisfazendo a curiosidade dentro de certos limites.

Então, voltemos as atenções para a independência do Brasil. Do ponto de vista prático, o ato de D. Pedro I, mais dia menos dia iria acontecer, pela própria força do desmantelamento da estrutura monárquico-absolutista, que já se disseminava pela Europa desde a Revolução Francesa, em 1789.

Nessas alturas do campeonato, as grandes metrópoles da época já estavam às voltas com os feitos da Revolução Industrial, da urbanização, do consumo em larga escala e, principalmente, com a influência de uma nova classe social, a Burguesia. Então, ainda que muitas ex-colônias só tenham conseguido sua emancipação das suas metrópoles no início do século XX, o feito brasileiro foi ter conseguido a façanha mais cedo e sem maiores turbulências beligerantes.

O que do ponto de vista burocrático proporcionou o efeito midiático esperado. Pena, que isso seja pouco para um país que deveria esperar mais da sua independência. Como ocorreu em tantas outras ex-colônias, o ato em si não afetou a população a ponto de transformá-la em nível de ideologia, de comportamento, de organização.

Tornaram-se independentes de uma outra nação a partir do papel decisório de um ou de alguns indivíduos ligados ao poder colonial; mas, não da população em si. A independência chegou, portanto, de cima para baixo, como se deu toda a governança colonial. Afinal, o Brasil se tornava independente; mas, permanecia uma monarquia. Só em 1889, 67 anos depois da independência, é que o regime de governo se tornaria a República.

E tudo isso é sim, muito emblemático, porque ao falar de independência, logo se faz uma associação direta com liberdade. Mas, que liberdade é essa que não acolheu a integralidade da população brasileira, na medida em que muitos de seus filhos permaneciam cativos, segregados, alijados de seus direitos fundamentais?

Os ares da independência não venceram o racismo, a intolerância religiosa, o patriarcalismo, e tantos outros males nefastos emergidos da condição colonial. Por ato simbólico e por decreto não éramos mais colônia da Metrópole portuguesa. Mas, na essência, na identidade, mal sabíamos que iríamos seguir assim, cativos a um modelo de organização social dividido entre a dominação e a subserviência.  

E voltando ao coração de Pedro I, deixem-no em paz! Não façam de sua presença, mais uma cortina de fumaça, para a nossa eterna dependência ao constrangimento! Sua permanência em solo brasileiro, enquanto vivo, foi suficiente para não ser esquecido; bem como, todos os seus atos aqui realizados. De modo que os 200 anos da independência deveriam se restringir ao marco temporal, e só.  

O bom da História é justamente isso. O que foi, foi! Quando trazida à tona pela perspectiva da realidade nua e crua, ela cumpre o seu papel de luzir e aprimorar a cidadania. Nenhum país precisa de história perfeita, de heróis e vilões de almanaque, de fatos descritos com requintes de imaginação. História são fatos que se costuram como uma imensa colcha de retalhos.  

No caso do colonialismo brasileiro, ele foi o retrato de um tempo histórico no mundo. De grandes nações que não se dedicaram a estabelecer uma análise crítica e reflexiva do curso da história ao ponto de desconstruir certos paradigmas, os quais poderiam interromper com a saga da barbárie, por exemplo. O tempo das monarquias absolutistas, infelizmente e mais uma vez na história da humanidade, se corrompeu pela ganância, pela cobiça, pelo poder.

Daí a necessidade de conhecer a história para não se deixar repetir os velhos hábitos. E esse é o nosso “Tendão de Aquiles”! Na medida em que mais de 500 anos de história não se mostraram, ainda, suficientes para transformar a nossa consciência, a nossa cidadania, a nossa identidade cultural.

Afinal, as mudanças que chegaram pelas mãos das conjunturas, por mais importantes e significativas, não se mostraram capazes de nos tornar independentes das sombras da nossa herança colonial. Como se, por aqui, velhos hábitos realmente não pudessem jamais morrer! Talvez, por isso, o coração de D. Pedro I seja só um detalhe, a mais, para compor o contexto bizarro que nos acostumamos a cultuar.