domingo, 1 de maio de 2022

Eu, Trabalhador


Eu, Trabalhador

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Certamente, em diversos lugares do planeta centenas de milhares de pessoas estarão celebrando o Dia do Trabalho. Para os que não estão, o ato pode parecer pequeno, ou desnecessário, ou sem sentido.

Estão certos? Estão errados? Para responder é necessário dissecar as camadas que compõem esse assunto, ir fundo ao cerne da questão. A começar pelo modo com que a humanidade percebe e se relaciona com o trabalho.

Olhando para história milenar que trouxe nas suas páginas a presença constante da escravização, como algo natural e trivial da desigualdade social, não é de se espantar que o trabalho tenha se tornado um elemento de inferiorização na sociedade. A correlação é direta: trabalha quem precisa.

A ideia do trabalho está, portanto, atrelada diretamente ao servir, à subserviência, à subordinação, à obediência, a fim de obter meios de garantir a própria sobrevivência.  

É claro que, com o passar do tempo, da evolução social, os trabalhos foram, também, sendo estratificados socialmente; sobretudo, a partir da necessidade de conhecimentos, habilidades e competências demandadas para sua realização.

Criou-se, então, uma valoração materializada pela valorização de sua importância dentro do contexto social. Quanto mais complexas as atividades profissionais, mais relevantes elas se tornaram. Inclusive, pelo fato da existência de um contingente menor para supri-las.

No entanto, no fundo, nada disso muda no âmbito do inconsciente coletivo, a velha ideia do servir, da subserviência, da subordinação, em relação ao trabalho. Quando se analisa, por exemplo, o comportamento social em função da sua distribuição entre o público e o privado, percebe-se que pouca diferença há no trato dos profissionais.

No caso do cenário público, muitos profissionais são maltratados, humilhados, no exercício do seu ofício sob a justificativa de serem “pagos com dinheiro público”, o que os torna “funcionários da própria população”. Então, não é incomum a exacerbação de um pseudopoder daqueles que se encontram na posição de utilizar os serviços.

No caso do privado, o que muda é a justificativa. A máxima de que “o cliente sempre tem razão” possibilita a muitas pessoas exacerbarem as tais manifestações de pseudopoder. Além disso, nesses ambientes a facilidade de acesso aos superiores e chefia, vulnerabiliza, sobremaneira, os profissionais, colocando-os em constante posição de vigilância e punição.

Ora, mas que raios de pseudopoder é esse, hein? Onde está escrito esse absurdo? Como se diz na gíria do futebol, “Ninguém joga nas onze, meu amigo! ”. Até para nascer, o cidadão precisa do outro. De modo que, no cotidiano da vida, é natural que sejamos uns pelos outros nas mais diferentes circunstâncias.

Ninguém faz tudo sozinho. Olhe para a sua residência, os seus móveis e utensílios, seus materiais de limpeza, as suas roupas, os seus calçados, os seus materiais de higiene pessoal, a sua comida, o seu meio de transporte, ... Pois é, aqui, ali e acolá há milhões de trabalhadores implícitos.

Gente que você nunca viu, não sabe quem é, não conhece a história. E você, na sua pose de “último refrigerante do deserto”, achando que faz e acontece, no mundo, sozinho! Faz não!

Nem precisa olhar no espelho, para que a sua consciência grite bem alto que você, também, é mais um na legião dos trabalhadores. Que segue o riscado daquela canção do Chico Buarque, “Todo dia ela faz tudo sempre igual / Me sacode às seis horas da manhã [...]” 1.

Lamento, mas você não tem lastro para pseudopoderes, para fazer pouco de ninguém, para destratar ou ofender nenhum trabalhador, para julgar quaisquer celebrações, reivindicações e/ou movimentos de classe, porque você está nesse mesmo barco.

Só uma ínfima; mas, muito ínfima mesmo, parcela da população, não exerce quaisquer atividades laborais porque se beneficia e constrói suas redes de regalias e privilégios a partir do trabalho dos outros. É por isso, que para cada um que você olha de cima para baixo há pelo menos dois fazendo o mesmo com você. Já pensou nisso?

Sem contar que, apesar dessa dinâmica, um tanto quanto esquisita, a verdade é que a realidade contemporânea faz todo mundo temer a perda do seu trabalho. Faz todo mundo entrar em pânico diante dos números aterrorizantes do desemprego, do desalento, do empobrecimento e da miséria.

Afinal, depois do grande salto da mecanização, as edições da Revolução Industrial impuseram a tecnologização que provocou uma redução drástica na necessidade da mão de obra humana. Isso significa que, se o trabalho “inferioriza” de muitas maneiras os indivíduos, a ausência dele pode ser fatal à sua sobrevivência.

Daí muitos preferirem o rótulo da inferiorização, advindo do exercício laboral, seja ele qual for, do que do cancelamento social gerado pelo desemprego.

Acontece que as atuais conjunturas globais – tecnologia, pandemia, violências, entre outras - estão extinguindo de maneira avassaladora as perspectivas de ingresso e sobrevivência no mercado de trabalho.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), “As previsões indicam que o desemprego global permanecerá acima dos níveis pré-pandemia até, pelo menos, 2023. O nível de desemprego para 2022 está estimado em 207 milhões, comparado com 186 milhões em 2019. O relatório da OIT também alerta que o impacto geral sobre o emprego é significativamente maior do que o representado por esses números, uma vez que muitas pessoas deixaram a força de trabalho. Em 2022, a taxa global de participação da força de trabalho deverá permanecer 1,2 ponto percentual abaixo da de 2019” 2.

É preciso, urgentemente, mudar o olhar da humanidade sobre o trabalho, porque, como escreveu George Orwell, “Ver aquilo que temos diante do nariz requer uma luta constante” 3. O trabalho não inferioriza ninguém.

Está na inconsciência, na negligência, no desrespeito da sociedade, todas as atitudes que precarizam e degradam o trabalho no mundo. Que submetem a diversidade humana às mais terríveis condições de indignidade laboral, tantas vezes, beirando as práticas análogas à escravidão.

Sim. É imperioso entender, também, o fato de a sobrevivência ter sido tão intimamente engendrada ao trabalho, a tal ponto em que as pessoas foram induzidas a viver para e pelo trabalho, sem quaisquer possibilidades de desfrutar de tudo o que é importante e fundamental para a sua condição humana.

Engana-se quem pensa que só a legislação trabalhista vem sendo dilapidada e desconstruída. Não. O trabalhador vem perdendo a sua saúde física e mental, o seu bem-estar social, a qualidade da sua alimentação, o seu tempo de lazer e de prática desportiva, o seu desenvolvimento cultural, o seu aprimoramento educacional.

Nesse sentido, ainda que recebesse atenção do empregador, de que adiantaria? Ele está cada vez mais sobrecarregado, cansado, esgotado, exaurido. Para dar conta do recado, dos compromissos econômicos e financeiros do cotidiano, ele precisa se desdobrar em muitas atividades laborais. Ele vive no limite. No limite de todos os aspectos que compõem a sua sobrevivência.

Como escreveu Bertolt Brecht, “Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário. E agora não contentes querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à Humanidade pertence”.

Por isso, toda vez que você ousar lançar um olhar desdenhoso e cruel sobre um ser humano, um trabalhador, faça a seguinte reflexão:  “Ser pela liberdade não é apenas tirar as correntes de alguém, mas viver de forma que respeite e melhore a liberdade dos outros” (Nelson Mandela).



1 Cotidiano (Chico Buarque) - https://www.youtube.com/watch?v=plDmRyYjXgQ

3 ORWELL, G. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 

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