domingo, 23 de janeiro de 2022

Quem protege o Brasil do Brasil?


Quem protege o Brasil do Brasil?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quem protege o Brasil do Brasil? Leis temos aos milhares. Algumas muito boas. Outras nem tanto. Há aquelas que demandam a efetividade da fiscalização e aí acabam pelo caminho. Enfim... Pessoas, também, temos aos milhares. Mas, na maioria dos casos, vivem na base do “cada um por si e Deus por todos”, sem nenhuma noção de todo, de coletividade. Cada um no seu canto exercendo um tipo bizarro de cidadania, enviesado desde os interesses mais banais até os mais complexos.

Pois é, isso explica porque o “Ministério da Saúde diz que Hidroxicloroquina é segura, mas vacinas não; nota técnica contraria OMS e cientistas” 1. Aos que ainda não entenderam, os negacionismos que se aportaram no país, nesses últimos três anos, se fundamentam na mercantilização da vida. Em cada decisão, em cada documento expedido, em cada discurso, as palavras depuradas sintetizam o dinheiro. Quanto custa? Quanto rende? A roda da vida girando sob os ditames do “vale quanto pesa”.  

É por isso que os envolvidos nos negacionismos se enraivecem, se enfurecem, diante da Ciência ou de quaisquer organismos e entidades que contrariem o seu movimento mercantilista, o qual não está restrito apenas aos acontecimentos da pandemia. Não. Tendo em vista de que todas as relações sociais presentes no mundo giram em torno do capital, não seria diferente aqui no Brasil, onde as marcas das desigualdades se acentuam cada vez mais ao longo desses 522 anos de história.

Há três dias, por exemplo, foi noticiado que “Cientistas e moradores suspeitam de contaminação no rio de uma área conhecida como o ‘Caribe Amazônico’, em Alter do Chão (PA) ”; pois, a “Universidade Federal do Oeste do Pará monitora a área desde 2014 e identificou aumento nos níveis de mercúrio no sangue dos moradores de Santarém. De acordo com a PF, garimpeiros despejam 7 milhões de toneladas de rejeitos no Rio Tapajós” 2.

Assim, por trás dessa gigantesca engrenagem, a vida vai sendo consumida, destruída lenta e gradualmente, ou seja, ela perdeu completamente o seu status de prioridade número um.  Viver ou morrer não faz mais parte do cálculo dos empreendimentos, das negociatas, de nada. Cada dia mais, o ser humano é visto e entendido como mera peça de reposição nesse processo. Afinal, a cifra de mais de 214 milhões de habitantes parece destacar a presença de gente em excesso, de modo que eventuais perdas poderiam se diluir nesse montante sem causar impactos. Mas, não é assim.

Sobre toda essa mercantilização imposta pelo governo federal paira, portanto, uma atmosfera funesta. Enquanto eles se concentram nas estatísticas contábeis dos seus lucros e dividendos, a sociedade contabiliza e faz projeções do seu obituário. Afinal, as mortes estão sendo meticulosamente aceleradas pelo engendramento dos mais cruéis e perversos mecanismos. Kit Covid. Fake News sobre as Vacinas. Desemprego. Fome e miséria. Agrotóxicos. Deficiências no planejamento urbano e na produção das cidades. Uso e ocupação equivocados do solo. Obstaculização ao acesso aos serviços de Saúde e Previdência Social. Etc.etc.etc.

É. Então, mais uma vez eu lhe pergunto, quem protege o Brasil do Brasil? A pergunta é interessante, porque nas suas entrelinhas ela deixa escapar que já se reconhece a existência de uma lista bem definida dos nossos verdadeiros inimigos. Gente que está assistindo a tudo de camarote, no conforto dos ares-condicionados de salas suntuosas, fumando charuto e bebendo uísque de altíssima qualidade.  Gente que nos faz entender exatamente o significado da expressão “separar o joio do trigo”, porque nos impulsiona o desconforto diante de certos discursos e narrativas, os quais têm sido secularmente repetidos com uma naturalidade quase que trivial.

Através dessas pessoas é que o Brasil vem sendo amarrado pelas teias dialógicas que não chegam a lugar algum. Como diz um clássico do rock nacional, “Eu presto atenção no que eles dizem/ Mas eles não dizem nada [...]” 3. E é isso mesmo. Emoldurados por teatrais manifestações, quando interpelados pela imprensa e opinião pública, no “frigir dos ovos” nada acontece. É sempre mais do mesmo, mais do nada. Enquanto eles se deleitam no luxo, o povo só faz padecer o bucho, até quem sabe, morrer à míngua.  

Como escreveu Rachel de Queiroz, “A piedade supõe uma condição de superioridade e a gente só pode se compadecer de quem sofre mais do que nós” 4. E essa gente está tão distante de entender tudo isso, está tão no topo da pirâmide. Desse modo, “... da inocência da infância até à velhice extrema, continuará exatamente assim, só atribuindo interesse e grandeza àquilo que está a serviço da sua pessoa e da sua importância” 5. Pois é, “Fala-se muito na crueldade e na bruteza do homem medievo. Mas o homem moderno será melhor? ” 6. Essa é a grande reflexão que nos cabe fazer, antes de pensar em emitir qualquer juízo de valor a esse respeito.