quarta-feira, 8 de abril de 2020

Tempos de Páscoa...

  A vida e as infinitas possibilidades pascais que ela agrega



Por Alessandra Leles Rocha

 
É... Fazia tempo que os seres humanos andavam desconectados de si mesmos e indiferentes à significância de sua própria existência. Filosofar sobre “de onde viemos”, “por que estamos aqui”, “para onde vamos” há tempos deixou de caber na grade apertada de um cotidiano essencialmente materialista e superficial. O tempo se transformara em pressa; de modo que, cada vez mais inatingível ia se apagando da memória.
Então, de repente, ficamos sem ar. Literalmente, sem ar. Pelo menos algumas centenas de milhares de nós por aí. E como sem ar não há vida, ela voltou ao centro das atenções. O COVID-19, o grande responsável por essa interrupção repentina do fluxo frenético, ao qual estávamos habituados, colocou diferentes raças, credos, gêneros, idades, status social e níveis de educação rendidos, de joelhos sob um manto de perplexidade jamais visto.
Está claro que a intenção maior desse inimigo sem rosto não seja exterminar um a um a raça humana; mas, certamente, fazê-la refletir por um longo e doloroso período de isolamento e penitência. Nossa indiferença negligente diante da vida superou quaisquer limites. Guerras. Miséria. Desigualdade. Misoginia. Sexismo. Xenofobia. Homofobia. Enfim... a vida passou a valer muito pouco. O SER perdeu espaço para o TER.
E como todas as perdas até aqui pareceram incapazes de fazer o ser humano recobrar a lucidez, esse vírus entrou em ação para fazê-lo. A hierarquia de prioridades estabelecidas pela sociedade ruiu, num piscar de olhos. Entre elementos materiais e imateriais os indivíduos foram se vendo PERDER.  A paz. A liberdade.  A convivência. Os entes queridos. O cotidiano. O dinheiro... A vida. Foi, então, que elas começaram a perceber como muitas dessas coisas já andavam mesmo meio perdidas, meio esgarçadas, meio desligadas.
A partir desse “insight”, tudo começou a fazer sentido. Aliás, a vida retomou o seu sentido; mais inteiro, mais pleno. Justamente em tempos de Páscoa. De maneira muito particular e surpreendente o COVID-19, colocando-se acima de convicções e convenções, inclusive religiosas, está possibilitando à humanidade experimentar uma ressignificação coletiva para a construção de uma liturgia Pascal.
Na qual cada um na sua singularidade humana possa enxergar em si que Páscoa é tão somente renascimento, transformação, libertação, passagem. De modo que nela seja possível compreender a importância do engajamento na luta pela vida, seja essa de quem for. Que nela se promova o resgate e a transcendência daquilo que sempre existiu de mais belo, puro e sagrado dentro de cada um.
Nesse momento, então, percebemos que John Lennon tinha mesmo razão, quando escreveu Imagine 1. Talvez, essa onda de mudança não tenha sido gerada por um impulso propriamente humanitário, altruísta, como ele imaginou; mas, pela força maior de uma conjuntura, de algo além do visível. Já imaginou todas as pessoas vivendo para o hoje (Imagine all the people living for today...)? Todas as pessoas vivendo a vida em paz (Imagine all the people living life in peace...)? Todas as pessoas partilhando de todo o mundo (Imagine all the people sharing all the world...)?
Quer uma Páscoa mais emblemática do que essa?! Impossível. Apesar da distância, nunca estivemos tão próximos. Apesar do medo, nunca fomos tão solidários e fraternos. Apesar das perdas, nunca ganhamos tanto em termos de humanidade. Enfim, apesar de todos o pesares que esse diminuto vírus tem nos feito, e ainda fará enfrentar, sei que mais dia menos dia sentiremos pulsar a poesia dessas palavras “Viver / E não ter a vergonha / De ser feliz / Cantar e cantar e cantar / A beleza de ser / Um eterno aprendiz...”  2, porque nada vale mais do que a vida e as infinitas possibilidades pascais que ela agrega.   


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