Falta
de decoro. Será?!
Por
Alessandra Leles Rocha
Especialmente no meio político, não
se escuta outra coisa senão a expressão “falta de decoro”. A toda hora, em todo
lugar, a tal ausência de decência, de honestidade, de pudor, e porque não dizer
vergonha, vai se institucionalizando como uma prática peculiar entre os
mortais. Não está entendendo? Vou explicar.
É que se falta decoro, certamente é
porque as pessoas não andam muito preocupadas em se guiar por valores éticos e
morais adequados ao bom convívio social. Suas ações não se preocupam com os
desdobramentos coletivos, se irão prejudicar pouco ou em demasia os seus semelhantes.
Sob uma consciência de entes especiais, predeterminados a ser e a estar no
mundo sob prerrogativas de notoriedade e poder inimagináveis, seu pensamento é
como se a vida fosse um eterno jogo, onde não cabe nenhum resquício de pudor.
Mas é justamente nesse ponto, que
eu fico intrigada. Observando com especial atenção ao trivialismo do mundo, não
sinto que a falta de decoro signifique uma eliminação plena e irrestrita do
pudor; mas, se o que aconteceu de fato, foi uma estranha inversão de valores na
sociedade. Sob a lógica do bom senso e de uma relação social harmônica e
equilibrada seria de se pensar que o pudor, ou a vergonha, ou o decoro,
deveriam orientar e agir como freio e contrapeso o ser humano. Assim, ele
pulsaria mais forte nos momentos em que as atitudes se mostrassem inevitavelmente
atos terríveis e cujos desdobramentos só pudessem fomentar o repúdio e a
indignação coletivos. Contudo, subvertendo-se a lógica, perder o decoro nessas
ocasiões parece normalizado e sem poder suficiente de constrangimento, numa
ruptura amoral.
Por outro lado, no considerado
justo bom e belo da vida é que o pudor tem aflorado seu ímpeto. Vagando entre o
universo consciente e inconsciente do ser, esse sentimento de decoro inibe a
naturalidade da existência humana e restringe costumeira, ou tradicionalmente,
certos comportamentos e pensamentos com o máximo do escrúpulo. Nessa tal ‘cartilha’
imaterial condena-se o amor, o prazer, as escolhas,... ou seja, a liberdade de
ser segundo a própria cabeça. Os olhos parecem cegamente revestidos de uma
imoralidade sufocante, fazendo com que o nariz se contorça em constante
reprovação de tudo e de todos.
Bons modos de braços dados com a decência
e as aparências, ainda no século XXI? Sim. Tabus de outros séculos resistem
bravamente no mundo novo da tecnologia; senão, como justificaríamos o
cyberbullying, por exemplo? O pudor contemporâneo continua não suportando a
realidade da vida. O beijo gay na teledramaturgia ainda representa um imenso
desconforto; assim como, os casamentos e a adoção por casais homo afetivos, a coexistência
sob o prisma da diversidade social, os namorados (a) levarem seus (a) parceiros
(a) para dormir na casa dos pais, enfim...
Mesmo que mascarado, ou maquiado, o
decoro continua a reafirmar seus estereótipos na sociedade, dentro de questões
tantas vezes de foro íntimo e pessoal, as quais não teriam razão de se
coletivizar dessa forma. E o que é pior, em uma ausência plena de argumentos consistentes
e, até certo modo, passível de alguma aceitação. Não, esse pudor não se vale do
pensamento próprio e legítimo de cada indivíduo; mas, do que “os outros vão pensar”.
Por outro lado, a falta dele ‘deita
e rola’ aonde não deveria. Falta o decoro no combate à corrupção em todas as
suas instâncias e formas, à violência (contra todas as socialmente denominadas
minorias), à desigualdade do empoderamento de gênero, ao esfacelamento e
descrédito da Educação no país, ao cumprimento destorcido da representação
social nos cargos públicos,... Ninguém se preocupa de onde veio à riqueza e a ostentação
alheia, quando quer se beneficiar e ‘tirar uma casquinha’; mas, se preocupa com
a simplicidade da vestimenta do outro no dia a dia. Ninguém se preocupa com a verborragia
deselegante na era cibernética; mas, destila o veneno do preconceito incontrolável
a quem exibe um mínimo de cultura.
Então, minha gente, não falta
decoro. Falta saber emprega-lo onde realmente se deve. Falta recuperar a noção
dos valores éticos e morais, do que é bom e do que é ruim, do que é motivo para
se envergonhar ou não. Longe das desculpas rotas da falta de tempo, da
fugacidade contemporânea, de que isso ou aquilo está ultrapassado. Não, não. Valores
e princípios não são artigos que saem de moda; ou se têm ou não têm. Simples
assim.
O mais importante nesse tipo de
reflexão é ponderar justamente a dimensão do impacto que essa situação toda
provoca sobre o progresso e o desenvolvimento da sociedade como um todo;
sobretudo, em relação ao tipo de linguagem construída e apresentada mundo
afora. O quanto essa inversão fomenta a desigualdade, as linhas divisórias entre
os elementos e os segmentos sociais, pairando no ar, inclusive, um índice de importância
entre os seres humanos; como se a vida de uns pudesse ser mais ou menos do que a
de outros. É assim que nascem os radicalismos, as intolerâncias, a hostilidade
de que tanto se fala por aí. Não preciso nem lembrar o que Rui Barbosa, grande
jurisconsulto brasileiro, já falava lá no século passado: “De tanto ver triunfar as
nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça,
de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a
desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto” 1. Por isso, pare por um
instante e pense: no fundo, o decoro não parte de fora para dentro, mas de
dentro para fora. É essa a verdadeira transformação para qualquer ser humano, constituinte
fundamental de uma sociedade, que almeja mais para si, para os outros e para o
mundo.
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