Será
culpa do pó de “Pirlimpimpim”?
Por
Alessandra Leles Rocha
O nascer do
Sol é sempre um esconderijo de grandes surpresas! O desenovelar dos segundos apresenta
ao ser humano o inusitado e seu gradual desdobramento diante da sua capacidade
individual de enxergar (além da visão) e extrair da razão o sumo precioso pertencente
aos limites das entrelinhas, o qual quase sempre se perde na ânsia desatinada
das paixões humanas. Foi assim, que me vi frente à notícia sobre uma audiência
de conciliação, realizada ontem, no Supremo Tribunal Federal (STF) para
discutir a adoção de livros de Monteiro Lobato pela rede pública de ensino; já
que, o Instituto de Advocacia Racial (Iara) e o técnico em gestão educacional
Antônio Gomes da Costa Neto entraram com mandado de segurança, afirmando que a
obra de Monteiro Lobato tem “elementos racistas” 1.
É! O mesmo brasileiro que um dia afirmou “Um país se faz com homens e livros” 2; tem, em pleno século XXI, sua obra “sentada
no banco dos réus”!
Desde a
promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil tem se empenhado (e muito)
na busca de efetivamente fazer cumprir o artigo 5º - Todos são iguais perante a lei, sem diminuição de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade” - e reparar as omissões e negligências que marcaram a longa
marcha dos seus quinhentos anos de história. Sobretudo, com relação aos negros,
o Brasil se destaca frente a inúmeras outras nações 3,
as quais também contaram com a presença africana na edificação de sua sociedade
e nos pilares de seu progresso e desenvolvimento; mas, que não promoveram
quaisquer políticas de reparação social pelos anos de injustiça, de escravidão
e de segregação. A história é o espelho que nos norteia para o futuro e nos
ampara a não persistir nos mesmos tropeços e intransigências; entretanto, quando
se fala em reparar os erros pregressos não significa apagar a história e
reescrevê-la com outros fatos. Ao contrário, significa reconstruir um novo
caminho, demonstrando toda a capacidade de romper com paradigmas e evoluir rumo
a uma sociedade livre, igualitária e fraterna.
Porém, a
iniciativa do país ainda não alcançou a compreensão plena, por parte, de alguns
cidadãos. A discussão da temática racial tem perdido, em vários momentos, o
foco principal e elevado o tom para vieses desnecessários, como ocorreu com o
questionamento da obra de Monteiro Lobato. Somos um país plural, miscigenado,
cuja riqueza linguística extraordinária, desde sempre, usou das palavras, das expressões,
dos neologismos, dos regionalismos para mergulhar no universo real e ficcional
contextualizado ao momento histórico, social, político e econômico. Monteiro Lobato
foi apenas um, dos grandes nomes da literatura nacional, a contar histórias do
seu tempo; então, deve haver muitos outros para serem questionados, não é
mesmo?
Levar uma
discussão como essa ao STF parece o ápice do absurdo! Primeiro, porque vivemos
a clamar a morosidade da Justiça para resolver questões tão graves, que se
arrastam pelos séculos e ferem diretamente a dignidade e a cidadania de todos
os brasileiros. Basta flertar com a mídia para se deparar com o aumento no
número de liminares concedendo direito de internação em UTIs, com a explosão
carcerária e a crescente violência, com o baixo número de empregos com carteira
assinada, com a carestia da alimentação e do transporte, com a escalada do
tráfico de drogas,... que atingem a todos sem exceção. Segundo, no campo
das artes, a literatura foi sempre uma ferrenha contestadora da censura, do
cerceamento da liberdade, seja por qual instrumento fosse; pois, ela precisa
nascer sem amarras, para que o pensamento humano possa transcender e entender a
vida com a clareza necessária. Terceiro, porque diferentemente do ser humano
adulto, as crianças (a quem Monteiro Lobato dirigiu a maior parte de sua obra
literária) não enxergam o mundo pelo prisma do preconceito, da segregação, da
afronta, do revanchismo. A pureza de suas almas mergulha no lúdico, na
fantasia, nas travessuras, nas brincadeiras daqueles personagens essencialmente
infantis. Em quarto, pelo contexto histórico, as obras de Monteiro Lobato são registros
de uma época em que a Língua Portuguesa era, de fato, levada a sério;
ortografia e gramática respeitadas por quem ensinava, por quem aprendia e por
quem se propunha a escrever! A sua leitura é uma oportunidade valiosa para as
crianças e um estímulo para conhecerem outros grande nomes da literatura
nacional; os quais são “esquecidos”, na maioria das vezes, pela excelência da
norma culta. Em quinto, Monteiro Lobato teve sua obra recentemente readaptada
para a televisão e desenvolvida para o contexto cibernético 4, sem maiores questionamentos; tornando-se
ainda mais acessível à população brasileira. ...
Diante da notória
crise educacional no país 5, dos inúmeros
desafios para fazer de todos, cidadãos de verdade (inclusive, saírem do
grande lodo de analfabetismo funcional 6
que se abateu sobre a população), será que vale, realmente, à pena fazermos da
literatura “bode expiatório” das mazelas nacionais? Será que essa tentativa de
nos impingir o “crivo da censura” irá realmente depurar a literatura a ponto de
nos oferecer somente “o que há de melhor no mundo”? Enquanto diversos segmentos
da sociedade lutam com todas as forças para desenvolver projetos de incentivo à
leitura, de desenvolvimento de bibliotecas fixas e itinerantes, de redução nos
preços dos livros, de junção da literatura com outras vertentes das artes em
prol de toda a população; alguém ainda não consegue ver com olhos de
enxergar. Então, será culpa do pó de “Pirlimpimpim” 7?
Nada disso! Falta respirar os ares do Terceiro Milênio! Deixar no passado o que
a ele pertence para viajar ao futuro sem pesos desnecessários e improdutivos! Basta
apenas à simplicidade de ler a vida como uma história escrita na colaboração de
muitas e diferentes mãos.
1 http://br.noticias.yahoo.com/supremo-faz-audiência-discutir-polêmica-racismo-obra-monteiro-lobato.html