quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Arautos de um flagelo premeditado


Arautos de um flagelo premeditado

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Confesso que me incomoda bastante a perplexidade nacional diante de certos acontecimentos, os quais não passam de tragédias ampla e historicamente anunciadas. Não vejo ninguém se perguntar as razões, por exemplo, que levaram

ao vazamento de óleo de um petroleiro na Baía de Guanabara (1975), ao Vale da Morte em Cubatão/SP (1980), ao incêndio na Vila de Socó em Cubatão/SP (1984), ao acidente com césio-137 em Goiânia/GO (1987), ao vazamento de óleo na Baía de Guanabara (2000), ao vazamento de óleo nos Rios Barigui e Iguaçu no paraná (2000), ao naufrágio da plataforma P-36 na Bacia de Campos (2001), ao rompimento da barragem de Cataguases/MG (2003), ao rompimento da barragem Bom Jardim em Miraí/MG (2007), ao vazamento de óleo na Bacia de Campos (2011), ao incêndio no Porto de Santos (2015), ao rompimento da barragem do Fundão em Mariana/MG (2015) 1, ao rompimento da barragem Mina do Feijão em Brumadinho/MG (2019) 2, as tempestades no vale do Itajaí/SC (2020), aos temporais no Estado de São Paulo (2022), as enchentes na Bahia (2022), as chuvas em Petrópolis (2022) 3, ao abandono e a negligência com os Povos Yanomamis (2019 – 2023) 4.

A presença ou não de um componente ambiental direto na deflagração desses episódios, não reduz ou exime o ponto principal a ser analisado e refletido, que é o papel antrópico. Esse tipo de catástrofe se nutre de um longo e silencioso processo de indiferença humana deliberada, sustentada por uma histórica certeza de impunidade. As classes dominantes no Brasil sentem-se legitimadas e amparadas pela força capital que atrasa e posterga a ação da justiça, a fim de que uma eventual punição não logre êxito pelo fato de o curso processual se arrastar até que se alcance o momento da prescrição do caso.  

Mas, antes disso, essas pessoas têm a convicção de que o seu espaço na sociedade é de tamanha importância, que elas não precisam se curvar às leis, às normas, às diretrizes que regem a dinâmica social. De onde parece surgir um poder paralelo que estabelece os próprios parâmetros para satisfazer às suas vontades e seus interesses, independentemente, das consequências e dos desdobramentos que possam resultar disso. Tudo porque elas têm o poder capital que é, segundo elas, o passaporte para colocar o mundo sob os seus pés, seja em que circunstância for.

Então, qual a razão da perplexidade? O fato de ver os veículos de informação e de comunicação noticiando o clímax da tragédia em tempo real? O espanto deveria emergir da inação que nos levou a permitir que a situação chegasse ao ponto que chegou, ou seja, de todo o silêncio, subserviência, anuência, displicência, indiferença, ... Porque não há acaso.  A vida é feita de processos, de movimentos, que resultam em consequências. Algumas boas. Outras ruins. Mas, a base que os sustenta é o que traz a perspectiva dos acontecimentos em curto, em médio e em longo prazo. Cabe a vigilância, a observação, no acompanhamento dos fatos.

Principalmente, em razão de que os afetados pelas tragédias, quase sempre, são aqueles que estão abaixo do topo da pirâmide social. Aqueles cujo poder capital inexiste, estando subjugados aos que detêm esse poder. Mais do que a desimportância que as classes dominantes atribuem aos menos privilegiados, o pior é constatar que eles próprios são levados a se perceber assim, na medida da construção de uma inação frente aos seus interesses. Como se houvesse uma outorga silenciosa do seu direito cidadão que é, na verdade, inalienável; mas, com frequência acaba corrompido pelas tentações e más intenções do mundo.  

Não sejamos ingênuos diante do óbvio. Os mais afetados pelas calamidades chegam a esse ponto porque foram, primeiramente, alijados do seu lugar de fala no mundo. Os poderosos não têm quaisquer interesses em ouvi-los e, muito menos, permitir que falem, que se expressem. Não querem saber o que pensam, como vivem, quais os seus sonhos, nada. Querem que permaneçam onde estão, cumprindo a sina que lhes foi imposta pela realidade desigual e ultrajante do país. Dentro desse contexto é que os menos ou não favorecidos acabam privados da sua dignidade humana e expostos, à revelia de sua vontade, a todo tipo de desgraça que a irresponsabilidade voluntária e consciente pode promover.

Pois é, fazendo vista grossa para situações tão abjetas, o Brasil conquista as páginas dos veículos de comunicação e informação, nacionais e estrangeiros, com a exibição da vergonha em tamanho natural. Não que ele tenha, necessariamente, algum constrangimento ou pudor nesse sentido. Mas deveria. Porque essas vergonhas estampadas, para quem quiser ver, dizem respeito ao seu mais absoluto descompromisso com a dignidade da pessoa humana.

Mais do que isso, com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Com o desenvolvimento nacional. Com a erradicação da pobreza e da marginalização e da redução das desigualdades sociais e regionais. Com a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, conforme estabelece a Constituição federal vigente.

É preciso, então, virar essa página de tantos absurdos! Essa é, sem dúvida alguma, a sinalização mais clara e objetiva de que o país estaria mesmo convicto no seu propósito de reafirmação democrática. Atento e atuante aos preceitos constitucionais e legais para não mais permitir a expressão da perplexidade oportunista, que não leva nada, nem ninguém, a lugar algum.

Afinal, como escreveu Umberto Eco, “Justificar tragédias como vontade divina tira da gente a responsabilidade por nossas escolhas”. O que reforça implicitamente a noção mais exata de que “A tragédia da vida é o que morre dentro do homem enquanto ele vive” (Albert Schweitzer). Porque é exatamente isso que nos faz arautos de um flagelo premeditado.