Arautos
de um flagelo premeditado
Por
Alessandra Leles Rocha
Confesso que me incomoda bastante
a perplexidade nacional diante de certos acontecimentos, os quais não passam de
tragédias ampla e historicamente anunciadas. Não vejo ninguém se perguntar as
razões, por exemplo, que levaram
ao vazamento de óleo de um petroleiro na Baía
de Guanabara (1975), ao Vale da Morte em Cubatão/SP (1980), ao incêndio na Vila
de Socó em Cubatão/SP (1984), ao acidente com césio-137 em Goiânia/GO (1987), ao
vazamento de óleo na Baía de Guanabara (2000), ao vazamento de óleo nos Rios
Barigui e Iguaçu no paraná (2000), ao naufrágio da plataforma P-36 na Bacia de
Campos (2001), ao rompimento da barragem de Cataguases/MG (2003), ao rompimento
da barragem Bom Jardim em Miraí/MG (2007), ao vazamento de óleo na Bacia de
Campos (2011), ao incêndio no Porto de Santos (2015), ao rompimento da barragem
do Fundão em Mariana/MG (2015) 1, ao
rompimento da barragem Mina do Feijão em Brumadinho/MG (2019) 2, as tempestades no vale do Itajaí/SC
(2020), aos temporais no Estado de São Paulo (2022), as enchentes na Bahia
(2022), as chuvas em Petrópolis (2022) 3,
ao abandono e a negligência com os Povos Yanomamis (2019 – 2023) 4.
A presença ou não de um
componente ambiental direto na deflagração desses episódios, não reduz ou exime
o ponto principal a ser analisado e refletido, que é o papel antrópico. Esse tipo
de catástrofe se nutre de um longo e silencioso processo de indiferença humana deliberada,
sustentada por uma histórica certeza de impunidade. As classes dominantes no
Brasil sentem-se legitimadas e amparadas pela força capital que atrasa e
posterga a ação da justiça, a fim de que uma eventual punição não logre êxito pelo
fato de o curso processual se arrastar até que se alcance o momento da
prescrição do caso.
Mas, antes disso, essas pessoas
têm a convicção de que o seu espaço na sociedade é de tamanha importância, que
elas não precisam se curvar às leis, às normas, às diretrizes que regem a dinâmica
social. De onde parece surgir um poder paralelo que estabelece os próprios parâmetros
para satisfazer às suas vontades e seus interesses, independentemente, das consequências
e dos desdobramentos que possam resultar disso. Tudo porque elas têm o poder
capital que é, segundo elas, o passaporte para colocar o mundo sob os seus pés,
seja em que circunstância for.
Então, qual a razão da
perplexidade? O fato de ver os veículos de informação e de comunicação noticiando
o clímax da tragédia em tempo real? O espanto deveria emergir da inação que nos
levou a permitir que a situação chegasse ao ponto que chegou, ou seja, de todo
o silêncio, subserviência, anuência, displicência, indiferença, ... Porque não
há acaso. A vida é feita de processos,
de movimentos, que resultam em consequências. Algumas boas. Outras ruins. Mas,
a base que os sustenta é o que traz a perspectiva dos acontecimentos em curto,
em médio e em longo prazo. Cabe a vigilância, a observação, no acompanhamento
dos fatos.
Principalmente, em razão de que
os afetados pelas tragédias, quase sempre, são aqueles que estão abaixo do topo
da pirâmide social. Aqueles cujo poder capital inexiste, estando subjugados aos
que detêm esse poder. Mais do que a desimportância que as classes dominantes
atribuem aos menos privilegiados, o pior é constatar que eles próprios são
levados a se perceber assim, na medida da construção de uma inação frente aos
seus interesses. Como se houvesse uma outorga silenciosa do seu direito cidadão
que é, na verdade, inalienável; mas, com frequência acaba corrompido pelas
tentações e más intenções do mundo.
Não sejamos ingênuos diante do
óbvio. Os mais afetados pelas calamidades chegam a esse ponto porque foram,
primeiramente, alijados do seu lugar de fala no mundo. Os poderosos não têm
quaisquer interesses em ouvi-los e, muito menos, permitir que falem, que se
expressem. Não querem saber o que pensam, como vivem, quais os seus sonhos, nada.
Querem que permaneçam onde estão, cumprindo a sina que lhes foi imposta pela
realidade desigual e ultrajante do país. Dentro desse contexto é que os menos
ou não favorecidos acabam privados da sua dignidade humana e expostos, à revelia
de sua vontade, a todo tipo de desgraça que a irresponsabilidade voluntária e
consciente pode promover.
Pois é, fazendo vista grossa para
situações tão abjetas, o Brasil conquista as páginas dos veículos de
comunicação e informação, nacionais e estrangeiros, com a exibição da vergonha
em tamanho natural. Não que ele tenha, necessariamente, algum constrangimento
ou pudor nesse sentido. Mas deveria. Porque essas vergonhas estampadas, para
quem quiser ver, dizem respeito ao seu mais absoluto descompromisso com a
dignidade da pessoa humana.
Mais do que isso, com a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Com o desenvolvimento nacional.
Com a erradicação da pobreza e da marginalização e da redução das desigualdades
sociais e regionais. Com a promoção do bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, conforme
estabelece a Constituição federal vigente.
É preciso, então, virar essa
página de tantos absurdos! Essa é, sem dúvida alguma, a sinalização mais clara
e objetiva de que o país estaria mesmo convicto no seu propósito de reafirmação
democrática. Atento e atuante aos preceitos constitucionais e legais para não
mais permitir a expressão da perplexidade oportunista, que não leva nada, nem
ninguém, a lugar algum.
Afinal, como escreveu Umberto
Eco, “Justificar tragédias como vontade
divina tira da gente a responsabilidade por nossas escolhas”. O que reforça implicitamente a noção mais
exata de que “A tragédia da vida é o que
morre dentro do homem enquanto ele vive” (Albert Schweitzer). Porque é
exatamente isso que nos faz arautos de um flagelo premeditado.