Sobre
moralidade, véus e liberdade...
Por
Alessandra Leles Rocha
É fácil acreditar que a questão
do uso do véu islâmico (hijab) é um problema de países muçulmanos, quando a
humanidade teria tantos outros véus para discutir. O fundamentalismo que antes
parecia estar restrito ao Islã, hoje se dissemina pelo planeta, além da
religião, como forças de controle e manipulação social. Queiram ou não aceitar,
os discursos da ultradireita, mundo afora, são um bom exemplo de que ronda
entre nós uma guarda da moralidade, cuja fúria incide principalmente sobre as
mulheres.
Portanto, isso desconstrói a
ideia de que a ação fundamentalista religiosa sobre o Estado é o ponto chave do
problema. Nos países islâmicos pode até ser. No entanto, me parece que o
desarranjo conflituoso das relações sociais no mundo está muito mais atrelado
aos efeitos da contemporaneidade, do que qualquer outro aspecto. De repente, a
humanidade se deparou com uma incompatibilidade concreta entre a manutenção de
seus costumes/tradições e a existência dividida entre o real e o virtual.
Há tempos que nenhum país é uma
bolha de isolamento. Acontece que diante da revolução tecnológica, a
globalização adquiriu uma dimensão nunca antes imaginada. Mais do que um
cenário mercantil, essa mundialização contemporânea elevou seu status para um
campo multicultural sem precedentes, no qual as pessoas não só se veem diante
da oferta de bens, produtos e serviços; mas, de ideias, de comportamentos e de práticas
sociais muito distintas das suas. É como se a vida lhes apresentasse um
cardápio amplo de possibilidades de ser e de estar.
Concomitantemente a todo esse
movimento está o senso de liberdade inerente a toda essa dinâmica contemporânea.
No qual, todos querem ser livres para escolher, para decidir. Essa realidade
trouxe consigo uma flexibilização dos limites que faz com que os indivíduos estejam
teoricamente menos afeitos às regras, aos protocolos, às leis.
Digo teoricamente, porque a existência
de forças conjunturais que determinam e manipulam, de maneira subliminar, os posicionamentos
sociais não se extinguiram totalmente. Houve uma mudança processual de formas e
conteúdos, em que as estratégias de marketing e mídias sociais tiveram um papel
importante. Mas independentemente desses detalhes, fato é que o ser humano
acredita ter o controle da situação nas mãos.
Então, é um tanto quanto óbvio
que os conflitos entre a manutenção dos costumes/tradições e a realidade atual
vai eclodir. Não há como retroceder aos passos que a humanidade já deu até aqui!
Esse é um caminho sem volta! Não se trata apenas de termos conquistado um
arcabouço high tech, com computadores
e softwares de última geração. O pacote dessa metamorfose social incluiu um
conjunto de mudanças cognitivas, subjetivas, ideológicas, que já foram
incorporadas pelas atuais gerações. De modo que o senso de liberdade está tão à
flor da pele que não se sujeita mais a se esconder sob camadas de véus.
É nesse ponto que o olhar precisa
se debruçar sobre o impacto que essa transformação teve na vida das minorias
sociais. Mulheres, negros, imigrantes, LGBTQIA+, idosos, moradores de
comunidades, portadores de deficiência, sem teto, para esse contingente humano
o contexto tecnológico contemporâneo foi de suma importância para oportunizar e
visibilizar as suas demandas. Pelo mundo virtual essas pessoas têm reafirmado o
seu espaço no mundo, os seus direitos, as suas potencialidades, as suas
decisões e escolhas. Vejam, por exemplo, que em um outro momento da humanidade,
a morte de Mahsa Amini 1, pelo
uso incorreto do véu islâmico, não teria deflagrado uma comoção internacional e
uma crise social no Irã.
Quem diria, o véu que parecia
esconder foi, na verdade, revelador! Revelou como o fundamentalismo que se espalha
pelo mundo contemporâneo é insuficiente aos seus próprios propósitos, como
alguém que teima em pegar um punhado de areia e ela escorre entre os dedos. Dizia
John Adams que “Os fatos são coisas
teimosas; e quaisquer que sejam nossos desejos, nossas inclinações ou os ditames
de nossas paixões, eles não podem alterar o estado de fatos e evidências”. Quem
sabe, não seja este o momento de admitir, de uma vez por todas, que nenhuma
guarda ou patrulha da moralidade não é páreo para a dinâmica conjuntural;
sobretudo, a contemporânea 2. Afinal, “O medo é que faz que não vejas, nem ouças
porque um dos efeitos do medo é turvar os sentidos, e fazer que pareçam as
coisas outras do que são! ” (Miguel de Cervantes – Dom Quixote).